quarta-feira, 31 de dezembro de 2008
Hilarious
Hello. Please do not be surprised this message is not spam mailing.
You probably will be very surprised that I write you a letter. But yesterday, I was surprised, too, when my e-mail address, came a letter, which said about love, about the feelings among people. The main motto of this letter was the phrase «Looking for love and you will be happy». I liked the letter. In the list of e-mail address, I saw your e-mail and decided to write to you. Perhaps you are looking for love? Maybe this letter - the fate? I do not know how the man who sent me the letter, hear my personal e-mail. But I think it is not important. The most important thing is that now I can write you a letter. You know, I want you to learn more. But first, I want to tell a little about me. My name is Sona. I'm from Armenia. I am 27 years old. I have never been married and have no children. I am pretty, quiet, kind and sociable girl. I would be interested to talk with you and know you closer. I compose their communication with the primary objective - creating serious relationships. Relations without deception, without any games. I want to find this man who can love and respect me. I hope that you just want to find their love? I believe in romantic relationships, appearance and age is not the most important thing. The most important thing is that people know how to love and respect on this! I have different hobbies and interests, among them - sports, cooking, reading, music. Of particular interest to me a matter of housekeeping, cleaning the house. I like to experiment in the kitchen. I love animals. I am leading a healthy lifestyle. I do not smoke nor drink alcohol. My new friend, can you tell me about you? I want you to learn more. The following letters, I will tell you about me, in more detail.
I give you my e-mail address: shahbsona@gmail.com
Of course, I will send you a lot of my photos, of whom you know my life. In my photo showing all the moments of my life - joy, muse, and even in some sad moments. I eagerly await your response will be. I really want you to learn more. Please do not forget about me. Your new friend from Armenia, Sona.
2009
Tende um excelente 2009, pois sois todos altamente! :)
E quem não vier cá ler isto... Não vou ao ponto de dizer que não merece um bom 2009, mas... viesse.
Tinha decidido não ter resoluções de ano novo, mas esta manhã já arranjei algumas:
1 - Comprar um guarda-chuva. Dá bastante jeito para ter no carro;
2 - Não escrever mais posts realistas como este, só ficção.
terça-feira, 30 de dezembro de 2008
Novidades
segunda-feira, 29 de dezembro de 2008
Ritual
- Calma, calma. Isto resolve-se.
- Tenho que te lembrar que foi esse tipo de atitude que nos pôs nesta situação? Se não fosse essa onda do "vai correr tudo bem" não estávamos agora aqui.
- Até podes ter razão, mas desesperar também não vai ajudar em nada.
- Não estou a desesperar. Estou apenas a descarregar a minha raiva. Onde é que eu estava com a cabeça para te deixar convencer-me a alinhar contigo nisto?
- Preciso de mencionar que fizeste tudo de livre vontade?
- De livre vontade porque tu me garantiste que não podia correr mal! Eu bem que perguntei se o ritual era seguro, se não havia a possibilidade de acontecer algo assim. E o que é que tu disseste? Que era tranquilo, que era tão simples que nada poderia correr mal.
- Pois...
- Pois! E eu, infantil, alinhei. Que besta que sou...
- Pronto, tens razão, o ritual não era assim tão seguro. Podemos ultrapassar essa fase e concentrar-nos em sair daqui?
- Por agora sim, mas não penses que o assunto vai ficar por aqui.
- Bom... Não vejo grande alternativa senão tentar o ritual outra vez...
- A minha vontade agora era desancar-te, não repetir o ritual, mas infelizmente tens razão. Não deve haver outra maneira.
- Vamos lá então?
- Dá-me uns momentos para me mentalizar. Senão, com a sede com que te estou, vai correr ainda pior de certeza.
- ...
- ...
- Então?
- Não estou mesmo com nenhuma inspiração para isto. Mas tem que ser, não é?
- Pois... Vá, põe-te lá na posição.
- Seja... Assim?
- Sim, não está mal, dobra só mais um bocadinho os joelhos... Isso, perfeito. Agora eu ponho-me aqui...
- Calma, calma, assim não vai dar!
- Dá, tens só que passar a perna para este lado.
- Isto vai correr mal outra vez...
- Cuidado, cuidado!
- Merda!!! Onde é que estamos agora?
- Realmente começo a achar que isto não foi das minhas melhores ideias...
- Achas? Não sei porquê?...
- Em vez de fazeres comentários sarcásticos, que tal colocares-te outra vez na posição para tentarmos de novo?
- Pois... Que remédio, não é? Mas eu ainda me vou vingar disto.
- Sim, sim, depois logo te vingas, mas por favor concentra-te agora.
- Vá, já estou em posição, despacha-te lá com isso.
- Pronto, já está, podes passar para a segunda posição. Calma, devagar...
- Vá, despacha-te mas é com isso!
- Não me pressiones! Agora ponho a perna aqui... Já está... Falta pouco, aguenta agora a posição um bocadinho... Pronto, já está!
- Parece tudo normal... Acho que resultou. Faz o favor de te afastares de mim e acho que o melhor é mesmo não falares comigo durante algum tempo.
- Mas...
- Mas??
- Mas, agora já temos alguma prática... Tenho a certeza que agora correria tudo bem...
terça-feira, 23 de dezembro de 2008
Movimento perpétuo
Lá está o velhote. Esquelético e encurvado, sempre no mesmo banco do jardim. Horas esquecidas num movimento lento e repetitivo, aparentemente perpétuo, a atirar pedaços de pão para um chão onde nem um único pássaro pousa. Parte-me o coração, vê-lo ali, estoicamente, dia após dia, e nem um pássaro. Sento-me ao seu lado e fico alguns momentos em silêncio a desenhar mentalmente constelações com os inúmeros pedaços de pão abandonados pelo passeio. Se calhar migraram. Digo eu em jeito de piada, para quebrar o gelo. Quem? Pergunta o velhote sem alterar a sua postura nem o seu movimento eterno. Os pássaros. Respondo. Que pássaros? Pergunta o velho com um laivo de genuína surpresa na voz, continuando sempre na sua posição encurvada e sem nunca virar a cabeça na minha direcção. Pois. Digo eu, já com algumas dúvidas se teria sido boa ideia tentar falar com o velhote. Porque continua então a atirar o pão? Pergunto. Para os pássaros. Responde tranquilamente o velhote. Mas, não existem pássaros! Exclamei. O velho levanta a cabeça, roda-a na minha direcção e fita-me com os seus olhos completamente brancos. E eu existo? Perguntou-me enquanto me pegava na mão e a colocava sobre o seu peito onde não se sentia qualquer pulsar. Olho em frente, os pássaros juntam-se no passeio. Tiro um pedaço do pão que tenho na mão e, num movimento perpétuo, lanço-o às aves que se amontoam no chão à minha frente.
segunda-feira, 22 de dezembro de 2008
Pesadelo 1/?
Acorda querido, já é tarde, disse uma doce voz. Só mais um bocadinho... AAARGH!!! Quem és tu? O que és tu??? O homem saltou da cama em terror. Ofegante, encostado à parede, tentou organizar os seus pensamentos. Tentou lembrar-se de uma explicação para, na sua cama, estar uma horrenda e aterrorizante criatura, mas não conseguiu. Não estava a ser fácil raciocinar com aquele ser estranho mesmo ali a olhar para si com os seus olhos de pupilas disformes, mas não achou que fosse isso que o estivesse a impedir de formular uma explicação. Era um pesadelo, só podia ser um pesadelo. Respirou fundo e tentou acalmar-se. Isto é um sonho, não é real, disse para si mesmo. O que é que não é real, perguntou a criatura. O homem limitou-se a fitá-la incrédulo. Questionou-se onde teria a sua mente ido buscar uma criatura tão medonha. Era como se tivessem envolvido com um enorme polvo, arroxeado e viscoso, o esqueleto de um chimpanzé mutante, com inúmeros braços e pernas. Naquilo que eventualmente se podia considerar a cabeça, havia apenas um par de enormes e estranhos olhos. A voz parecia sair de uma série de orifícios em redor da cabeça e a parte inferior do corpo estava ainda coberta com o lençol, pelo que poderiam ainda haver mais surpresas.
Querido, estás a assustar-me, disse a criatura. Estou a assustar-te? Estou a assustar-te??? Só podes estar a gozar comigo! Eu tenho é que acordar! Ao terminar a frase, o homem deu uma violenta palmada na sua própria face. Não percebo porque é que te estás a comportar assim. Apesar da aparência repelente, a voz da criatura era doce e melodiosa. Ao aperceber-se que a única alteração na situação que a palmada tinha conseguido era uma dor na bochecha e um apito no ouvido, o homem percebeu que não ganharia nada em manter-se em negação em relação ao que lhe estava a acontecer. Olha, desculpa lá, mas eu não sei o que me está a acontecer. Não sou de certeza quem tu pensas e não sei sequer onde estou. Enquanto proferia a última frase, o homem olhou em volta para pela primeira vez se aperceber da peculiaridade do local onde se encontrava. Era mais que óbvio que não era a sua casa, mas também não era nada que alguma vez tivesse já visto. A arquitectura parecia extra-terrestre, em todo o quarto não era visível uma única linha recta, todas as formas eram curvas e retorcidas. Acho que posso assumir que não pretendes fazer-me mal, continuou, mas eu preciso de saber o que se está a passar. Eu também gostava de saber o que se está a passar, disse a criatura num tom trinado, acordas, olhas para mim e parece que viste um bicho estranho, ao menos pensa nos meus sentimentos. Está a desviar a atenção para os seus sentimentos, para o seu problema, pensou o homem, posso pelo menos assumir que é uma fêmea. Mas eu nem me lembro de me ter deitado com uma fêmea, e mesmo que estivesse extremamente bêbedo, acho que nunca me deitaria com uma fêmea destas. Ela parece conhecer-me, mas isto não pode estar a acontecer, só posso estar a sonhar. Mas porque é que ela não tira aqueles olhos estranhos de mim? Olha, disse tremulamente o homem, eu percebo que isto também não seja fácil para ti, mas tens também que compreender que é um choque acordar na cama de alguém que não é humano. Humano? O que é isso? Perguntou a criatura. Eu sou um humano, um ser da espécie humana, respondeu o homem. Olha, eu não sei o que se passou durante a noite, mas o que estás a dizer não faz sentido nenhum. Nem percebo o que é que queres dizer com isso de humano. Aparentemente não te lembras, mas juraste-me amor e fidelidade eternos. A criatura continuou o seu discurso, mas a mente do homem acabou por divagar. Começou por ponderar a melhor forma de fugir daquela repulsiva criatura, que aparentemente tinha exigências para si. Pensou em fugir a correr do quarto, mas o facto de não saber o que poderia encontrar do outro lado fê-lo vacilar. Bem que as minhas irmãs me tinham dito que eras maluco, mas ou liguei? Não, claro que não, e casei contigo na mesma, para um dia me acontecer isto. A última frase dita pela criatura fê-lo desviar-se dos seus pensamentos. Desculpa lá, disse o homem dirigindo-se à criatura, mas não te parece estranho teres casado com um ser de outra espécie? Achas tudo isto normal? Tu ficaste mesmo demente, retorquiu a estranha criatura, que história é essa de seres de outra espécie? Ah, agora já não és da minha espécie, é isso? Tanto que me avisaram e apesar disso, aqui estou eu, a ouvir destas. Para o que eu haveria de estar guardada. Mas, continuou o homem, já olhaste para ti e já olhaste para mim? E tu já fizeste isso, perguntou a criatura. A frase atingiu o homem como um raio. De facto não tinha ainda olhado para si e a ideia de poder ver uma criatura igual à que estava à sua frente petrificou-o. Fitou as pupilas disformes da criatura durante alguns momentos com verdadeiro temor no rosto. Depois, muito lentamente levantou a mão. Mais lentamente ainda, baixou a cabeça para olhar para a sua mão e gelou ao ver um tentáculo. Não, não pode ser, disse em pânico, o que é que me fizeram? Só te peço que tenhas calma, disse a estranha criatura demonstrando algum temor, qualquer que seja o problema, nós havemos de o resolver. Qualquer que seja o problema, nós havemos de o resolver? Repetiu ironicamente o homem. Eu sou um ser humano, não sou esta coisa! Como é que propões resolver isso? Disparou o homem. Sinceramente não sei como vamos resolver isto, disse tristemente a criatura, o que eu sei é que quando nos deitámos éramos um casal e eu nunca tinha ouvido essa palavra que estás sempre a dizer. Agora estás a dizer-me que não és quem eu conheço e partilho a vida há tanto tempo, não podes querer que eu saiba o que fazer. A única coisa que posso fazer, e fiz, é dispor-me a ajudar-te a resolver o problema. As palavras da criatura quase comoveram o homem. Assumindo que o que dizia era verdade, não passava também de uma vítima desta história, que ainda tinha a esperança não passar de um terrível pesadelo.
sexta-feira, 12 de dezembro de 2008
Writer's block
O macaco sentou-se na sua almofada e olhou lúgubre para o seu tratador e amigo, enquanto este tirava a maquilhagem com a ajuda das lágrimas que escorriam. É sempre desolador ver um palhaço a chorar, mas aquele não era um palhaço qualquer. Era a única pessoa que poderia considerar família. A única pessoa que realmente alguma vez se tinha preocupado consigo desmoronava-se à frente dos seus olhos e o macaco não fazia a mais pequena ideia do que fazer. Ainda com a cara meio esborratada, o palhaço fitou no espelho o reflexo do seu único amigo e esforçou um sorriso. Deixa lá, não te preocupes comigo, isto passa, disse. O macaco limitou-se a baixar a cabeça. Mais tarde ou mais cedo isto teria que acontecer, continuou o palhaço, além do mais já estou velho, algum dia teria que arrumar a peruca. O macaco voltou a levantar a cabeça, olhando o seu amigo com tal tristeza que não foi preciso abrir a boca para que soubesse como se sentia. Estamos ultrapassados, continuou o palhaço, sem saber muito bem se falava com o seu fiel amigo, se consigo próprio. O macaco respondeu com um guincho estridente. O quê, perguntou o palhaço, reinventarmo-nos? Não achas que estamos um bocado velhos para isso? Os miúdos agora não acham piada a trambolhões e tartes na cara. Agora, algo que não meta sangue e desmembramentos não tem piada nenhuma. O macaco emitiu uma série de ruídos enquanto esbracejava freneticamente. Eu também sinto isso, respondeu o palhaço, sei a minha idade mas também acho que ainda tenho muito para dar, sinto-me, no entanto, desenquadrado, antiquado. O macaco deu um único guincho enquanto estendia o dedo indicador na direcção do palhaço. Sim, já sei, reinventarmo-nos, retorquiu o palhaço, mas como? O macaco abriu os braços e soltou uma sequência de grunhidos. Tens razão, respondeu o palhaço, estamos na era da comunicação, quem não está na internet não existe. Hum... É isso... É isso!!! É isso que eles querem, não é? Então tê-lo-ão. Depois de proferir a última sílaba, o palhaço manteve um sorriso tão maquiavélico que fez o macaco estremecer...
Foi aqui que a coisa deixou de fluir, e quando a coisa não flui não há nada a fazer. Por isso, se alguém quiser, pode pegar a partir daqui. Até se pode fazer aquele jogo estúpido de quando éramos putos de cada um inventar uma parte da história, e tal :)
sexta-feira, 5 de dezembro de 2008
1093
- Alípio, para mim chega, nunca mais vou esfregar o pernil de porco com aquela mistura de alho e ervas, com uma pitada de pimenta e paprika.
- O quê?
- O pernil, Alípio! O pernil!!!
- O que é que tem o pernil?
- Nunca mais terá o tempero a que sempre estiveste habituado.
- Não?! Mas... Sem alho e ervas e uma pitada de pimenta e paprika tudo é mais insípido... Porquê Genoveva, porquê???
- Porque estou farta Alípio. Porque nunca mereceste uma pitada que fosse da pimenta ou da paprika. Porque sempre tomaste o tempero como garantido sem nunca, nunca mostrares que tivesse qualquer tipo de importância para ti.
- Mas, mas...
- Acabou Alípio, o pernil não terá mais alho. Não terá mais ervas, nem pimenta, nem paprika. Muito menos terá o equilíbrio perfeito entre todos os ingredientes que eu conseguia só para ti.
- Ai é? Ai é? Então podes esquecer aquelas amêijoas à Alípio. Nunca mais lamberás os dedos a escorrer aquele molho fenomenal. Não, as amêijoas não terão mais coentros. Não terão mais a quantidade de jindungo perfeita para ti!
- Ó Alípio, já não fazes essas ameijoas há mais de dez anos...
- Então e tu? Quando é que foi a última vez que fizeste aquele empadão de arroz que eu venero? Quando é que foi a última vez que te deste ao trabalho de escolher a carne certa, de a desfiar em vez de a picar, de fazer o molho mesmo picante como eu gosto? Quando??? Acho que já nem me lembro do sabor.
- Porque não dás valor, Alípio. Porque enfardas tudo como um porco! Porque me fazes duvidar se vale a pena o esforço. Às vezes penso que mais valia dar-te feijoada todos os dias, e não era daquela que tanto gostas, em que desfaço uma farinheira no molho para ficar mesmo ao teu gosto, não. Era feijoada de lata, daquela cheia de couratos!!!
- Ai... Que já sinto aqui o olho a tremer... Então e tu? Dás valor a alguma coisa? Na minha última folga, chegaste a casa e tinhas o jantarinho feito. Um peixinho no forno inventado exclusivamente para ti. Eu sei que lhe chamei peixe MacGyver e não peixe Genoveva, mas foi só porque tive que trabalhar com o que tinha à mão. Mas foi criado para ti, cada ingrediente que colocava era contigo em mente. A cebola tinha a tua cara, o manjericão cheirava a ti. Cheguei até mesmo a pensar que um dos cournichons que espetei no peixe tinha a tua silhueta. Tudo, tudo a pensar em ti. E tu... tu chegaste a casa de trombas, emborcaste mais vinho que peixe e quando eu cheguei com o café, aquele café com o toque de canela que tu adoras, com a quantidade certa de açúcar, já estavas tu a dormir no sofá e eu tive que passar o resto do serão sozinho. Que valor deste tu ao manjericão? Ao pimento vermelho? Àquela colher de maizena que diluí no molho para que ficasse mais aveludado como tu gostas? Que valor? Diz-me!
- Sabes, esta conversa está mesmo a abrir-me o apetite...
- A mim também... Hum... Tirinhas de porco panado com molho agridoce, daquele que só eu sei fazer para ti...
- Uff, Alípio... Espetadinhas de lulas, daquelas que eu faço com extra pimento, e aquele molho de manteiga com piri-piri e salsa e limão...
- Oh, Genoveva...
- Oh, Alípio...
sexta-feira, 28 de novembro de 2008
Monodiálogo #2
- Então, como é que vai isso?
- ...
- Porque é que estás com essa cara de espanto? Nunca tinhas conversado contigo próprio?
- Sim, muitas vezes... Mas isto é ridículo!
- Não sei porque há-de ser ridículo. É a mesma coisa.
- Não é bem a mesma coisa. Nos outros diálogos que tenho comigo, sou eu quem decide o que é dito. E não me parece que esteja a decidir o que tu dizes.
- Isso é porque eu não sou o teu consciente. Mas sou na mesma tu.
- És o meu subconsciente?
- Algo do género. Se quisermos ser mesmo específicos, sou aquilo que existe na tua mente entre o inconsciente e o subconsciente, mas um bocado mais para o lado do subconsciente. Ali mais para o lado do inconsciente mora o meu irmão, mas ele não gosta muito de aparecer.
- OK... Então e... O que te traz aqui?
- Venho alertar-te para a batalha que se avizinha.
- Batalha?
- Sim, uma batalha de cujo desfecho depende a tua liberdade de pensamento.
- Explica lá isso melhor...
- Até há pouco tempo viviamos cá todos em perfeita harmonia. Toda a gente fazia a sua parte e se dava bem. Mas o equilíbrio começou a desaparecer quando alguns de nós decidiram tentar assumir um controlo total. Acredita que não queres que consigam, não ias gostar daquilo em que te tornariam.
- Mas... Nós, quem?
- Nós, tu. Ou pensas que uma pessoa é algo uno, indivisível? Nada disso, tu és o produto resultante da conjugação das inúmeras entidades que constituem a tua mente.
- Isto parece-me mais um produto resultante de todas as drogas que consumi na década passada.
- Pensa o que quiseres. O importante é que fiques do nosso lado, que o teu consciente fique sempre do lado do pensamento livre e nunca te passes para o outro lado. Podemos contar contigo, soldado?
- Yessir!!! Defenderei o pensamento livre com toda a minha sanidade mental!
Requiem pela paixão
- É fodido, o destino. Chega a ser cruel, o filho da puta. Se um gajo é amorfo e só curte estar em casa a ver o futebol e a beber cerveja, tem uma gaja que se farta de queixar que ela não lhe liga nenhuma e que não a leva a fazer nada. Mas um gajo que curta viver mais intensamente tem sempre que se apaixonar por uma gaja apática e anti-social que não alinha em nada. Foda-se...
- Estás num daqueles dias, não é?
- É como se o amor fosse uma obra-prima de um grande artista, sublime. Só que em determinado momento alguém rouba a merda do quadro e deixa lá uma imitação. Para os observadores casuais é como se tudo estivesse igual, para quem passa e olha parece genuíno, mas um conhecedor percebe facilmente a diferença pelos pormenores. Distingue, às vezes nos detalhes mais insignificantes, que não é o traço do mestre, que só pode tratar-se de uma imitação. Neste ponto o conhecedor tem um leque de opções, em que a negação é uma das mais populares, para quê ir à procura do original se a imitação está tão bem feitinha?
- Diz-me lá uma merda. Ela não te fode a cabeça, pois não? Quando vamos beber copos e chegas tarde, ela não te fode a cabeça. Apesar de não querer sair, não te fode a cabeça se tu saíres, mesmo que só chegues no dia seguinte. Não é?
- É.
- Então? Porque é que estás tão fodido?
- Porque é mais que óbvio que isso não me chega, meu. Eu quero sentir aquela cena que nos faz vibrar, que nos faz andar estupidamente bem dispostos, num estado constante de euforia, como num rush de adrenalina permanente, que nos faz sentir que podemos podemos fazer qualquer coisa, que somos donos do mundo, que conseguiríamos desviar a órbita da Terra se isso fizesse a outra pessoa feliz!
- Meu... ... Cai na real...
quinta-feira, 27 de novembro de 2008
Explorar o Inconsciente
Fonte: http://www.di.ubi.pt/~paraujo/Curiosidades/ConscienteInconsciente.htm
quarta-feira, 26 de novembro de 2008
Vi-me
Hoje vi-me. Vi-me com o dobro da idade. Senti orgulho, mas também uma pontinha de comiseração. Nem sei bem o que pensar...
quinta-feira, 20 de novembro de 2008
Anões de Circo ou Irreal Surreal
- Mas… Isto é ficção, tudo é possível…
- Claro que tudo é possível, desde que faça sentido.
- Então, mas não disseste nada sobre a parte em que o personagem desenha uma cara num saco de papel e depois tem um diálogo com ele. O saco responde-lhe e tu não reclamaste.
- Claro que não reclamei, isso faz sentido.
- Um saco de papel a falar faz sentido?
- Sim.
- Então porque é que a gravidade da Terra começar a aumentar e o pessoal começar a ficar todo atarracado não faz?
- Um diálogo com um objecto inanimado pode ser visto como uma introspecção, e mesmo que seja literal, embora não seja provável, quem sabe não é possível, em determinada circunstância, um saco de papel responder-te?
- Então e não será possível, embora muito pouco provável, que a gravidade da Terra aumente desenfreadamente?
- Não.
- Porquê?
- Bom, além da questão física de que para aumentar a gravidade teria que aumentar a massa e que essa matéria extra teria que vir de algum lado, que faz com que não faça qualquer sentido e que seja impossível, é estúpido.
- Estúpido? Isso é um termo técnico? Belo mentor que me saíste…
- Eu estou a fazer o que é suposto, estou a ensinar-te. E sim, é um termo técnico. Agora se não consegues perceber uma questão desta simplicidade, acho que vai ser um longo e tortuoso caminho.
- Pronto! Está bem, a gravidade da Terra não aumenta, ninguém fica pequeno, é o anão que começa a crescer de uma forma inexplicável. Que tal?
- Olha, estás a ver? Isso já faz sentido. E não é, de todo, absurdo.
- Uff…
O anão começou a aperceber-se que algo estava a acontecer quando, ao deitar-se, reparou que os seus pés tocavam no fundo da cama. No dia seguinte confirmou o que já calculava, tinha crescido mais de dez centímetros. Enquanto, radiante, se olhava ao espelho, não conseguiu evitar um pulo de alegria…
- Ahem, ahem…
- O que foi agora?!
- Eu não sei se isto vai resultar… Por acaso ocorreu-te que se um anão adulto reparasse que estava a crescer, o mais provável seria ficar preocupado? Ainda por cima o teu anão trabalha num circo, o seu emprego depende de ser anão. Fará sentido que ele fique radiante por estar a crescer? Além do mais, toda a gente sabe que os anões têm uma enorme dificuldade em saltar.
- Argh! Isto é ficção, é suposto ser surreal. O meu anão pode muito bem ficar contente e até mesmo saltar como uma gazela!
- Surreal não é o mesmo que irreal. E ainda há o facto de ser estúpido.
- Acho que tens razão no facto de isto se calhar não vir a resultar…
Enquanto, preocupado, se olhava ao espelho, ponderou sobre como a sua vida se alteraria se crescesse até uma altura normal. Ficou apreensivo por achar que as alterações não seriam positivas.
No circo, o contorcionista sem pernas…
- Porque é que estás a assobiar assim?
- Por acaso imaginaste o que estás a escrever?
- Mais ou menos.
- Pois, mais ou menos não chega. O que tu queres não é que quem ler consiga visualizar a cena?
- Sim… acho que sim…
- Então como é que achas que isso vai resultar se nem tu a imaginaste?
- Cada um que imagine à sua maneira.
- Está bem, isso não é necessariamente errado, mas imagina lá um contorcionista sem pernas.
- Estou a imaginar. O que é que tem?
- Não te parece um bocado estúpido? Um gajo sem pernas a fazer contorcionismo. O que é que ele tem para contorcer?
- Pode ser um bocadinho de humor inglês.
- Não te metas nisso, pá. Ainda nem rastejar sabes e já queres correr? Escreve lá a tua historieta e deixa-te de tentar ter piada.
- Sim, mestre.
No circo, o contorcionista sem braços reparou que o anão não estava bem. Então Zé, estás cá com uma cara. O que é que se passa? Perguntou o contorcionista. Nem sei bem o que se passa, só sei que nos últimos dias cresci mais de dez centímetros. Respondeu o anão. O contorcionista abriu muito os olhos. A sério? Não te esqueças que, aconteça o que acontecer, tu vais ser sempre tu, independentemente da altura que tenhas, ok? Não queremos cá crises de identidade. E já sabes, desde que não seja para um abraço ou para uma palmada nas costas, podes contar comigo.
- Muito bem, gostei. Focar a questão da identidade. Faz sentido. E um bocadinho de humor português também não ficou mal, não senhor. Verei uma luz no fundo do túnel?
- Importas-te?
- Desculpa.
Obrigado Rogério, és um bom amigo. Dá cá mais cinco!
- Não abuses!
- ...
Os dois riram com gosto. Era o que o anão realmente precisava, de uma boa gargalhada. Sabes Rogério, esta é uma das coisas que mais gosto em ti, a capacidade de te divertires com os teus problemas. Quando conseguimos fazer isso é como se deixassem de ser problemas. Disse o anão. Quais problemas? Respondeu o contorcionista com um sorriso gozador. Imagina lá, por exemplo, eu dizer ao Flávio qualquer coisa como “Então Flávio, estás fino?”. Riram durante mais alguns minutos. Estou a ver onde queres chegar. Pois, contigo sei que posso estar à vontade, sem ter que estar com atenção ao que digo. Se a minha cara não ficasse à altura dos teus genitais, até te dava um abraço! Mais algumas gargalhadas depois, chegou a hora de pegar ao trabalho e cada um foi para o seu sítio.
- Nada mau, nada mau. As piadas já estão a ficar um bocadinho forçadas, mas não está nada mau. Se calhar é dos uísques que já bebi, mas até está com graça. Então e o que é que vai acontecer agora? Como é que vais transformar a ideia de pôr o anão a crescer num enredo, numa mensagem?
- Não faço a menor ideia. Isto não é nada do que eu tinha pensado inicialmente.
- Ainda bem! Lição número um, a nossa criatividade não está no consciente mas sim no subconsciente. Quando pensamos muito na história e nos esforçamos para que seja complexa e profunda, o mais provável é sair algo frio e artificial. O melhor é começar simplesmente a escrever sem pensar muito nisso e é aí que as coisas saem realmente profundas. Tens que deixar que seja o subconsciente a decidir o rumo das coisas.
- Ok, vamos lá ver…
Quando o anão acordou, assustado, verificou que para caber na cama estava praticamente em posição fetal. Horrorizado, saiu da cama para constatar que durante a noite o fenómeno se tinha agravado. Estava praticamente com o dobro da altura!
- Pronto, já estamos a descambar outra vez para a estupidez…
- Olha, sabes que mais?
- Que mais?
O anão foi crescendo, crescendo. Quando atingiu um metro e setenta arranjou emprego num banco. The end.
- Até amanhã.
- Até amanhã.
quarta-feira, 19 de novembro de 2008
Há sempre alguém
Dos ensaios em casa do Bigodes, naquele prédio inacabado que foi ocupado por famílias pobres como a dele; da minha velha guitarra rosa choque, sempre a desafinar, e que agora está para lá num canto, coitada, como um testemunho silencioso daqueles tempos tão barulhentos; da pinta das poses de palco, em que o guitarrista tinha que tocar com a guitarra o mais abaixo possível e o baixista o mais acima possível; das excursões matinais de Sábado, a pé até à escola de música onde o Celestino nos aturava com infindável paciência; até da péssima ideia de ensaiar na Sociedade Recreativa Cabo-Verdiana, com as janelas pejadas de pequenos africanos, já que os grandes estavam todos lá dentro a assistir e que, muito curiosamente, foi a única vez que um solo de improviso me saiu realmente bem, só que a confusão ao fim, em que até porrada houve, nos fez desistir, mas graças a isso fiquei sempre tido como um virtuoso naquela comunidade; do nosso primeiro e último concerto na garagem do Chouriço, em que o povo cantou tão alto que nem sequer se conseguia perceber quão mal tocávamos e que foi, portanto, um sucesso; da Minhoquinha; da Morte; do Salvador Dali... Ah, saudade...
sexta-feira, 14 de novembro de 2008
Magia 1/4
E agora, senhoras e senhores, para o meu próximo número vou precisar de um preservativo e de um voluntário. Por razões diversas, os olhos de toda a gente na plateia ficararam esbugalhados. Calma, ha ha, estava a brincar em relação ao preservativo, vou precisar só de um voluntário, ou quem sabe até uma voluntária. Porque não, por exemplo... a menina! Aquela menina tão engraçada de óculos, você, de camisola côr-de-rosa e gancho no cabelo. Sim, você, não se acanhe, suba para o palco, e também não precisa de ter medo, estará segura nas minhas mãos, disse o velho ilusionista com o seu melhor sorriso.
Hesitante e pouco à vontade, Maria subiu os três degraus já gastos que facilitavam o acesso ao palco. Uma salva de palmas para a nossa corajosa voluntária, senhoras e senhores, continuou o prestidigitador enquanto encaminhava Maria para dentro do baú recentemente trazido pela sua assistente. Assim que fecha a tampa do baú com Maria lá dentro, num ápice, pega numa enorme espada e trespassa-o. O público estremeceu, não de assombro pelo acto, já que toda a gente da plateia tinha já visto centenas de truques destes, mas apenas pela brusquidão. O prestidigitador continuou frenético e ao fim de menos de meio minuto já o baú estava cravejado com perto de uma dezena de espadas. O público respondeu ao abrir de braços do prestidigitador com um pouco efusivo aplauso, que este retribuíu com uma vénia excessivamente teatral. Com um gesto, o artista pediu silêncio, o público acatou, entra o rufar da tarola enquanto o prestidigitador começa a retirar as espadas e termina com um toque de pratos no momento em que o velho artista abre o baú e um bando de pombas sai a esvoaçar. O público irrompe em aplauso, muito provavelmente mais pela simpatia e pela carismática figura do velho ilusionista do que pela espectacularidade do número.
Peço desculpa, senhoras e senhores, começou o prestidigitador, mas isto não correu bem como era esperado. Estava a contar ver sair do baú a nossa voluntária, mas isso não aconteceu. Peço alguns momentos de silêncio para tentar recuperá-la, senão poderá ficar para sempre perdida no limbo. A maioria das pessoas do público entrou na brincadeira e fingiu preocupação. O ilusionista voltou a fechar o baú, recitou uma ladaínha numa língua que aparentava ser latim, voltou a abri-lo e, ao som daquele pequeno excerto musical, vulgarmente conhecido como tcha-ran, eis que sai Maria do baú, algo envergonhada, entre balões e serpentinas. Foi a apoteose do espectáculo! Os falsamente expectantes espectadores, paternalistas, aplaudiram sonoramente de pé. O velho artista desfez-se em vénias e por fim apresentou a sua assistente - certamente a sua mulher que, embora provavelmente já não lhe ficasse tão bem como antes, ainda era bem capaz de estar a usar o mesmo fato de lantejoulas de quando tinha iniciado a sua carreira, vinte ou trinta anos antes - para que tivesse também o seu momento de protagonismo sob os focos do palco. Em conclusão, o artista agradeceu a presença dos espectadores e convidou-os a voltar. Estes calmamente começaram a abandonar o velho teatro enquanto o ilusionista guiava Maria pela mão até às escadas que a permitiam descer do palco. Muito obrigado pela sua participação, disse, e deixe-me que lhe diga que eu não acredito que seja o acaso que leva ao meu palco os voluntários para os meus números. Acho que as pessoas acabam a participar nos meus truques por uma razão, uma razão superior, continuou, devo também avisá-la que é possível que haja efeitos secundários, mas não se preocupe, não correrá qualquer risco, concluiu o ilusionista com o seu simpático e permanente sorriso. Maria franziu a sobrancelha ao ouvir as palavras do velhote, mas rapidamente se tranquilizou pensando que aquilo ainda faria parte do número, para manter a ilusão e a fantasia. Despediu-se cordialmente do simpático prestidigitador e dirigiu-se para a porta onde Joaquim já a esperava.
Aquilo não enganou ninguém, até uma criança percebe que o baú tem um fundo falso e que aquilo se faz com os alçapões que há no palco, disse Joaquim enquanto caminhavam até ao carro. Era de facto verdade. Era também verdade que os truques já estavam bastante vistos e ultrapassados. O espectáculo não deixava de ser divertido, mas em termos de ilusionismo já não conseguia competir com os novos talentos, que tinham a tecnologia do seu lado e conseguiam deixar o público estupefacto. Sim, respondeu distraidamente Maria, não tem grande truque. Assim que ele fechou a tampa do baú, alguém me tirou de lá por um alçapão e fiquei debaixo do palco até ser altura de voltar para o baú. No entanto... Foi estranho. Estranho como? Não sei bem explicar, mas parecia que, apesar de tudo, havia ali magia. Magia? Repetiu Joaquim colocando o seu sorriso jocoso que ela tanto odiava. Nem sei porque me dou ao trabalho de falar contigo sobre estas sensações estranhas que tenho. Pronto, não fiques chateada, sabes que me custa compreender essas coisas. A mim também. Achas que compreendo? É um feeling... Mas não quero falar mais sobre isso.
Ninguém proferiu mais nenhuma palavra e estavam já a meio caminho de casa quando Maria avista ao longe, à beira da estrada, o que lhe parece ser um grupo de anões. A estupefacção foi total quando, ao aproximar-se, verificou que eram sete, todos tinham barretes vermelhos e transportavam pás e picaretas. Joaquim reparou na sua boca aberta de espanto e perguntou o que se passava. Maria respondeu que nada se passava, sabia perfeitamente que se lhe dissesse que tinha visto sete anões à beira da estrada, a única coisa que conseguiria era ser gozada durante vários dias.
O resto da viagem decorreu em absoluto silêncio. Normalmente incomodava-a a capacidade de Joaquim para suportar o silêncio, mas não desta vez.
Chegados a casa, Maria apercebe-se de um enorme vulto sobre o telhado, se não soubesse que não existiam, teria achado ser um dragão. Depois de, incrédula, esfregar os olhos, viu o vulto levantar vôo com um par de asas semelhantes às dos morcegos, mas que achou serem demasiado pequenas para permitirem um animal daquele porte voar. Ainda com a perplexidade espelhada na cara, desta vez conseguiu coragem para perguntar a Joaquim se tinha visto alguma coisa. Este, com um ar intrigado, respondeu que não.
Assim que entraram em casa, Maria deixou-se instintivamente cair sobre o sofá. Pensou no ilusionista e no que este lhe tinha dito e achou que estava a ser vítima de sugestão. O ambiente do espectáculo e o que o velho artista lhe tinha dito, associados à sua susceptibilidade e alguma fadiga estavam a fazer a sua mente pregar-lhe partidas. Era isso, de certeza!
Percebendo a sua apatia, Joaquim voltou a perguntar o que se passava, se se sentia bem. Maria desculpou-se com o cansaço, disse que depois de um banho relaxante e de uma noite bem dormida estaria recuperada. Despediu-se e subiu a escada de madeira que dava acesso ao primeiro andar e começou a preparar o seu banho.
Estava tranquilamente deitada na banheira quando a sua visão periférica detectou movimento. Quando olhou nessa direcção teve apenas tempo para ver uma cauda de aspecto réptil desaparecer por debaixo do armário das toalhas. Involuntáriamente soltou um grito que alertou Joaquim. Num ápice, Joaquim irrompe pela casa-de-banho. Está ali um bicho enorme, disse Maria quase em estado de choque, atrás do armário. Joaquim olhou-a incrédulo, mas vendo a sua expressão, sem proferir qualquer palavra, dirigiu-se ao armário. Assim que o afastou, Maria teve que usar toda a sua força para conseguir manter a compostura. Estava uma porta atrás do armário! Uma pequena porta! Pela ausência de reação, facilmente se apercebeu que Joaquim não a via e não hesitou na decisão de não dizer nada. Não vejo bicho nenhum, disse ele desinteressadamente, deves tê-lo imaginado. Maria já não sabia o que dizer e acabou por responder afirmativamente para fechar o assunto.
Deitou-se e tentou descontrair, tarefa que foi dificultada pelas pequenas criaturas brilhantes que esvoaçavam pelo quarto e completamente impossibilitada pela visão de uma enorme aranha a subir pela parede. Puxou os cobertores para que lhe cobrissem completamente a cabeça e voltou a pensar no velho ilusionista e no que este lhe tinha dito. Achou que as visões teriam que estar relacionadas com ele, talvez a tivesse hipnotizado. Lembrou-se então que ele lhe tinha dito para não se preocupar pois não corria qualquer risco. Esta memória conseguiu tranquilizá-la um pouco, mas só conseguiu dormir quando Joaquim foi para a cama.
Magia 2/4
Assim que abriu os olhos, sem qualquer controle da sua parte, lembrou-se da pequena porta por detrás do armário da casa-de-banho. O silêncio dizia-lhe que Joaquim tinha já saído. Algo hesitante, pé ante pé, dirigiu-se para a casa de banho e parou a olhar desconfiadamente para o armário enquanto mordiscava nervosamente a unha do dedo médio da mão direita. Cautelosamente aproximou-se e tentou espreitar por trás do armário mas não conseguia ver nada. Encheu-se de coragem e afastou finalmente o armário da parede e o seu coração disparou ao ver a porta. Simples, de madeira visivelmente envelhecida, apenas com um orifício a servir de puxador e tão pequena que mesmo de gatas teria alguma dificuldade em passar. Tentou acalmar-se recordando o velho ilusionista. Pensou que se estivesse mesmo sob alguma forma de hipnose, a porta seria apenas uma alucinação, que se a tentasse abrir deparar-se-ia com uma parede. Aproximou-se devagar e depois de, sem sucesso, ter tentado vislumbrar algo através do orifício, aproximou o dedo, confiante que constataria que tudo não passava de uma ilusão e que o dedo embateria na parede. Quando o dedo atravessou o buraco, um formigueiro subiu-lhe pela coluna vertebral e com um movimento brusco retirou a mão. Começava a duvidar dos seus sentidos, sabia perfeitamente que nunca tinha ali existido nada e no entanto lá estava a porta. Ponderou alguns minutos depois do que, resoluta, empurrou a porta com força e deu um passo atrás. A luz do outro lado era muito ténue e não permitia distinguir muito, mas aparentava ser uma gruta. Não correrá qualquer risco, não correrá qualquer risco, repetiu mentalmente as palavras do prestidigitador enquanto se espremia através da pequena porta.
O medo começou a ceder à beleza do local. Estava numa enorme galeria do que parecia ser uma gruta, o tecto era altíssimo, no entanto, as formações rochosas não se assemelhavam a nada que tivesse já visto em qualquer outro sítio. As estalagtites e estalagmites tinham formas retorcidas e cresciam em todas as direcções, as poças e pequenos lagos no chão formavam padrões intrincados e a luz ambiente, da qual não conseguia perceber a origem, apresentava suaves variações de côr. É impossível este sítio existir, disse alto e a sua voz ecoou pelo espaço reverberando estranhamente nas paredes. Estava tão maravilhada com o local que já não se preocupava minimamente se era real ou não.
Curiosa e decidida a explorar as redondezas, atravessou a galeria e seguiu por um túnel que a conduziu a outra galeria mais pequena onde um lago de água borbulhante libertava um exótico e agradável aroma. Ouvia ao longe sons de animais, alguns que julgou serem de morcegos, mas havia outros que não conseguia identificar com nenhum animal que conhecesse. Seguiu por túneis e galerias, tentando memorizar o caminho para o regresso e acabou por chegar a um espaço onde, como se estivesse fundido com a própria rocha, vislumbrou um muro que não podia ser natural. Uma parede de blocos de pedra geométricos e ordenados que pareciam nascer da base rochosa. Aproximou-se cautelosamente mas gelou ao ouvir ruído por trás de si. Virou-se e quase desmaiou ao deparar-se com uma gigantesca criatura, algo como um ogre saído de uma qualquer história fantástica, que bramia um pau aproximadamente do tamanho de Maria. Sem sítio por onde escapar, ao ver a criatura elevar o pau acima da cabeça, Maria pensou que os seus dias terminariam ali, mas, como que caído do céu, ou neste caso do tecto, eis que com um sonoro relinchar aparece um imponente cavaleiro, de cavalo branco e armadura resplandecente, empunhando uma enorme espada. Vai-te, vil criatura, não te atrevas a importunar essa doce donzela, disse o cavaleiro. Maria, apesar do pânico, conseguiu ainda ruborizar nas maçãs do rosto e esboçar meio sorriso. A criatura hesitou, mas rapidamente decidiu que a parca refeição que Maria proporcionaria não valia o risco e acabou por se retirar, desajeitado, a correr. O cavaleiro desmontou e, colocando um joelho no chão, a espada à sua frente com a ponta também no chão e as mãos sobre a extremidade do punho, apresentou-se com reverência. Obrigado por me ter dado a honra de a defender, melíflua donzela, disse. Maria corou integralmente e lá conseguiu dizer, sem gaguejar muito, que ela é que devia estar agradecida. Permita-me que a transporte para a segurança, continuou o cavaleiro, esta masmorra não é um lugar adequado para uma dama, principalmente uma tão bela e formosa. Se é que tal era possível, Maria ficou ainda mais vermelha, mas instintivamente entrou na onda. Fico-lhe eternamente grata, gentil senhor, foi verdadeiramente uma sorte ter aparecido tão nobre e bravo guerreiro para me salvar das garras daquele monstro infame. Não é mais que o meu dever, bela senhora, com a sua permissão, disse ainda o cavaleiro enquanto, sem qualquer esforço, pegava em Maria pela cintura e a colocava sobre o dorso do cavalo. Montou depois por detrás dela e com um quase imperceptível toque dos seus calcanhares, o cavalo seguiu a passo até à pequena porta.
Está entregue, bela senhora, atravesse e estará em segurança, disse o cavaleiro quebrando o silêncio. Desmontou, e com extrema suavidade retirou Maria do cavalo e colocou-a no chão. Probo senhor, como poderei agradecer tal obséquio, perguntou Maria que, sem medo e sem questionar a realidade dos acontecimentos, conseguia já estar a divertir-se com a situação. O cumprimento do meu dever de proteger os inocentes é agradecimento mais que suficiente, doce donzela. Com a sua licença, continuou enquanto voltava a montar o seu imponente corcel, retiro-me em busca dos fracos e dos oprimidos. Mais uma vez obrigada, espero que os nossos caminhos se voltem a cruzar, disse ainda Maria enquanto se acercava da pequena porta. Nada é impossível, respondeu o cavaleiro ao mesmo tempo que dava meia volta. Depois desapareceu para dentro da gruta e Maria espremeu-se de volta através da pequena porta.
Magia 3/4
Estás particularmente bem-disposta hoje, disse Joaquim ao jantar, enquanto se servia. É verdade, retorquiu Maria, não sei bem porquê, mas sim, estou. Tenho pena, mas hoje não vou poder usufruir da tua boa-disposição, combinei ir ver o jogo com o pessoal. Tudo bem, não faz mal, eu não me importo de estar bem-disposta sozinha, disse Maria com um sorriso tão genuíno que fez Joaquim franzir uma sobrancelha. Passa-se alguma coisa, perguntou. Não, nadinha, respondeu Maria tentando controlar o contentamento por ter a possibilidade de fazer outra incursão pela pequena porta.
Poucos minutos depois de Joaquim sair, já Maria olhava ansiosa para a pequena porta. Não demorou mais que alguns instantes a, decidida, irromper porta adentro para descobrir que, ao contrário do que esperava, não estava na gruta onde tinha saído antes mas no que parecia ser um bosque. Olhou para trás e viu que a porta estava no tronco de uma grande árvore.
Também vieste para o baile, perguntou uma vozinha. Maria, intrigada, olhou à volta sem ver ninguém. Aqui em baixo. Maria olhou para baixo e abriu um enorme sorriso ao reparar num pequeno ouriço-cacheiro. Olá, eu sou a Maria, disse divertida. Que baile é esse, perguntou. Peço desculpa pela indelicadeza de não me ter apresentado, Osvaldo Riço, ao dispor. Muito prazer, respondeu Maria sem conseguir tirar da cara o sorriso incrédulo. Não vieste para o baile, perguntou o ouriço Osvaldo. Não, por acaso vinha só para passear, mas que baile é esse, não fui convidada, respondeu Maria tentando dar alguma tristeza às palavras. Que baile é esse, repetiu o ouriço atónito, que baile haveria de ser, o baile no bosque, naturalmente, e ninguém precisa de convite para o baile no bosque. Que bom, então adorava ir também. Calha bem porque já estamos atrasados, mas, se me deres boleia, com umas pernas desse tamanho de certeza que chegamos lá num instante. Vamos lá então, disse Maria enquanto, com muito cuidado, pegava no ouriço Osvaldo e seguia caminho. Pouco tempo depois, seguindo as indicações do ouriço, a música que começaram a ouvir disse-lhes que estavam perto.
Ao chegar à clareira onde estava a decorrer o baile os olhos de Maria arregalaram-se de um misto de estupefacção e euforia. Dezenas de animais dançavam alegremente ao maravilhoso som de uma banda de elfos e sátiros. Ficou literalmente paralisada de queixo caído a olhar para a fenomenal cena, que podia muito bem ter nascido da imaginação de La Fontaine.
Caros amigos, disse Osvaldo ao acercar-se do magote, temos hoje o raro privilégio da companhia de um humano adulto, peço-vos que a façam sentir acolhida, já deu para reparar que ela já não está habituada a estes bailes. Esta é a Maria, concluiu. Olá Maria, cumprimentaram em coro os animais. Olá a todos, retribuiu Maria, obrigado por me receberem neste vosso divertido baile. Vem, dança connosco, disse um urso estendendo-lhe a pata. Maria esticou a mão e num ápice deu por si numa roda, dançando alegremente com a miríade de animais que se divertia no baile. Muitas voltas depois, cansada, Maria saiu da roda e sentou-se encostada a uma árvore.
Então, estás a gostar? Maria virou a cabeça na direcção da voz. Uma enorme iguana descansava ao seu lado. Estou simplesmente a adorar, respondeu excitada Maria. Maria, não é? Sim. Chamo-me Isabel, e apesar de não ser muito de danças, não perco um baile no bosque, gosto da oportunidade de conversar com outros animais. Muito prazer, Isabel, deixa-me adivinhar, o teu apelido é Guana, certo? A iguana Isabel olhou-a espantada. Como é que sabes, perguntou desconfiada. Foi um palpite sortudo, respondeu alegremente Maria. Eu também estou a gostar muito de poder conhecer animais tão interessantes, continuou, desviando o assunto, está a ser um verdadeiro deleite. Sabes, é pena, mas não costumamos ter muitas visitas de humanos adultos, só as crianças é que normalmente cá vêm. Pois, é pena, mas tenho a certeza que muitos adorariam vir, só que não devem saber o caminho. Pois, eu já tinha ouvido dizer que os humanos têm uma péssima memória.
Apercebendo-se que tinha já perdido a noção do tempo que tinha passado, pediu licença à iguana Isabel e levantou-se. Muito obrigado caros amigos, disse dirigindo-se aos outros, foi verdadeiramente fantástico mas tenho que ir. Adeus Maria, até à próxima, responderam os animais em coro. Prometo que vou voltar, disse ainda Maria enquanto iniciava a curta caminhada de volta à grande árvore, onde atravessou a pequena porta de regresso.
Assim que acabou de voltar a encostar o armário à parede ouviu Joaquim a entrar. Mesmo a tempo, disse alegre para si própria. Maria, chamou Joaquim ao entrar em casa. Aqui, respondeu ela descendo as escadas, ainda com resquícios de estupefacção no rosto. O que se passa, porquê essa cara, perguntou ele. Maria teve uma enorme vontade de partilhar com Joaquim as suas experiências recentes, mas sabia que, não vendo nada do que ela via, nunca iria acreditar, mais, iria certamente pensar que não estaria boa da cabeça. Não se passa nada, está tudo bem. Joaquim não acreditou, mas não insistiu.
Magia 4/4
Quando os primeiros raios de luz solar investiram quarto adentro, Maria recuperou rapidamente a consciência e com ela veio a expectativa sobre o que a esperaria naquele dia, do outro lado da pequena porta. Olhou para o lado, Joaquim ainda dormia profundamente. Deve ser ainda muito cedo, pensou, posso ir dar uma espreitadela antes de ele acordar. Levantou-se cuidadosamente para não acordar Joaquim e foi directa à casa de banho.
A desilusão foi avassaladora quando afasta o armário e a porta não estava lá. Ficou ainda alguns minutos estática a olhar para a parede nua sem saber muito bem o que fazer. Aquela era a sua porta, a sua escapatória dos problemas do mundo real, precisava dela, porque é que já não estava lá, ponderou. Não se conformava com a situação, queria poder continuar a visitar aquele mundo paralelo, já lhe custava até imaginar a sua vida sem ele, seria monótona e difícil. Só havia uma coisa que poderia fazer, procurar o velho prestidigitador.
Descobriu onde e quando era o próximo espectáculo e compareceu. Esperou ansiosa, na última fila, pelo fim da apresentação em que o prestidigitador, como sempre, conseguia facilmente a simpatia do público através do seu carisma natural. Esta simpatia era amplificada pela incontornável evidência de que, quando estava no palco, cada gesto seu estava carregado de amor pelo que fazia, pela sua arte.
Quando, depois do inevitável aplauso de pé, os espectadores começaram a sair, Maria dirigiu-se ao artista. Lembra-se de mim, perguntou hesitante ao velho ilusionista. Claro que sim, minha cara, apesar da minha idade, nunca me esqueci de ninguém que tenha participado num dos meus números, respondeu, o que posso fazer por si? Num tom de quase súplica, Maria contou ao velho artista tudo o que tinha acontecido desde a última vez que o tinha visto, que ouviu tudo sem demonstrar qualquer surpresa. Por fim contou-lhe do desaparecimento da pequena porta e implorou-lhe que a fizesse voltar a aparecer. Com um sorriso paternalista, o velho ilusionista demorou alguns momentos a responder. Minha querida, a porta continua a existir, disse. E continua no mesmo sítio de sempre, aqui, prosseguiu o velho prestidigitador dando duas suaves pancadas no centro da testa de Maria com o dedo indicador, tens apenas que aprender a abri-la sem a minha ajuda.
terça-feira, 11 de novembro de 2008
Música
- Eh, olha lá ali o cromo.
- Escuta. Estás a ouvir? É maravilhoso.
- Não ouço nada, estava era a ver ali aquele marado descalço a tocar piano invisível.
- Fenomenal! Nunca tinha ouvido música tão sublime.
- Estás a gozar? Que música?
- O piano. Não ouves?
- Não, claro que não. E tu também não ouves nada e estás só a gozar com a minha cara.
- O teu problema é estares a tentar usar os ouvidos quando a música se ouve com o coração.
terça-feira, 28 de outubro de 2008
quarta-feira, 22 de outubro de 2008
Coração Sertanejo
Não! Você não vai me destruí! Vociferou Anísia enquanto as lágrimas lhe escorriam copiosamente. Januário encolheu os ombros. Estava já habituado às cenas que as mulheres, que tinha ao longo do percurso que fazia com a sua manada, faziam. Eu lhe amo, sua boba. Mentiu. Me deixe seu cafageste, volta para suas vaca, vai. Januário virou calmamente as costas, montou o seu cavalo e partiu. Vida de boieiro sertanejo é fogo. Pensou. Tranquilizou-se depois pensando que as planícies até perder de vista o fariam esquecer Anísia quando lhe enchessem a alma, mas isso não aconteceu. Não conseguia perceber porquê, mas nada conseguia apagar da sua memória a última lágrima que vira Anísia verter. Porquê? Questionou-se. Pruque é que as mina se liga tanto a eu? Meu coração é do Sertão, não é de mulé! Disse a si próprio noutra vã tentativa de a fazer desaparecer da mente, mas não resultou. Via Anísia em todo o lado, nas nuvens, nas longínquas montanhas, chegava até a vê-la no olhar meigo das suas vacas. Isso num pode sê não! Rematou. Tenho que chegá depressa à próxima vila, os braço de Celina me vão fazê esquecê essa bobagem. Acelerou o passo da manada e levava já o coração mirrado quando bateu à porta de Celina.
Celina era a mãe de santo da vila, conhecida pelas suas famosas leituras de búzios e por frequentemente incorporar o espírito de Ayrton Senna, embora muitos pensassem que era tudo teatro. Ao contrário do que Januário esperava, Celina não o recebeu de braços abertos mas sim com um tição na mão e um olhar nada meigo. Sabe, me disseram que você tem mulé em tudo o que é lugá por aqui. Disparou. Ô gata, num fala bobagem. Cê sabe que é só você que eu amo. Mentiu novamente. Celina vacilou, mas quando Januário terminou a frase seguinte. As outra mina num siguinifica nada para mim. Já o tição viajava através da sala numa rota de colisão certeira com a sua testa, que só não acertou graças aos reflexos felinos de Januário. Eta mina é fogo, pensou, enquanto o instinto o levava a aproximar-se e dar-lhe uma sonora chapada. Cê viu que quase me partia a cabeça, sua jararaca? Gritou enquanto lhe aplicava mais uma palmada, desta vez na nuca. Quantas vezes tenho de lhe dizer? Se quisé pode ter meu corpo, mas meu coração é do Sertão. Ao acabar a frase, colocou-lhe a mão na parte de trás do pescoço e puxou-a firmemente para ele. O calor da sua pele e o másculo cheiro de suor misturado com bosta de vaca fizeram-na perder a força nas pernas e soltar um discreto suspiro. Estava quase a render-se ao corpo musculado de Januário quando reuniu todas as suas forças e, gritando impropérios, o conseguiu pôr fora de casa ficando a arfar de costas encostadas à porta enquanto uma lágrima rebelde lhe escorria pelo rosto.
Depois de várias cachaças na taberna local, encontrou finalmente conforto no colo de Rosana, a galdéria da vila. A bondade e compaixão de Rosana eram lendárias, já que, benemérita, era o consolo dos renegados e a companhia dos solitários velhinhos. Inté mais. disse Januário ajeitando o chapéu, depois de o desejo amplificado pela cachaça o ter feito entregar-se sofregamente à paixão. Rosana ficou calada, acariciando a zona ainda quente do lençol.
Januário partiu, rumo ao horizonte. A memória de Rosana desvanescia-se à medida que a sua manada investia pelo terreno. Anísia? Celina? Não sabia quem eram. O seu coração? Esse era só do Sertão.
quinta-feira, 16 de outubro de 2008
quarta-feira, 15 de outubro de 2008
Tempus Fugit - Capítulo 1.2.2.2
Milhões de gigantescos escaravelhos com cabeças humanas! O pavor atingiu o seu máximo expoente quando o bando iniciou um vertiginoso vôo picado na sua direcção e conseguiu perceber que todos tinham a cara do Helmut Kohl!
Correu o mais depressa que podia, mas os seus perseguidores aproximavam-se. Um suspiro de semi-alívio surgiu das suas entranhas ao avistar ao longe o que parecia ser uma arma anti-aérea. Estranhamente conveniente, conseguiu ainda pensar enquando reuniu as suas últimas forças para um disparo final na corrida em direcção ao aparelho. O enorme reservatório acoplado ao engenho ter-lhe-ia provocado um sorriso, não estivesse a lutar pela sua vida. Quase não conseguia acreditar na sua sorte! Era um projector de coelhos, a arma conhecida mais eficaz contra escaravelhos gigantes, e parecia carregada.
Com um pulo quase felino sentou-se no engenho e apontou para o enxame. Apertou o gatilho e soltou instintivamente uma gargalhada quando os coelhos, projectados de rajada a alta velocidade e com um ritmo alucinante, começaram a atingir os escaravelhos. Embora não tenha conseguido atingir muitos dos seus atacantes - devido à fraca aerodinâmica do coelho, a precisão era um dos pontos fracos desta fascinante peça de artilharia - o factor surpresa foi fundamental. Os escaravelhos, claramente desorientados, começaram a perder o seu ímpeto e acabaram por dispersar.
Rejubilou. Torrentes de adrenalina ainda corriam nas suas veias e demorou até conseguir acalmar-se e parar de tremer. No entanto, a calma não durou muito tempo e a adrenalina voltou a subir ao avistar uma nuvem negra a formar-se no horizonte. Os escaravelhos reorganizaram-se e estavam de volta para uma segunda investida. Mais, vinham melhor preparados, munidos de envelhecidas sandes de carne enlatada, capazes de levar à náusea o mais bravo.
Assim que se apercebeu da nova ameaça, avaliou a sua situação numa fracção de segundo. O reservatório de coelhos estava a menos de um quarto e o ambiente iria ficar insuportavelmente nauseabundo, só lhe restava procurar abrigo. No segundo seguinte já estava novamente em marcha a alta velocidade, mas os escaravelhos eram muito mais rápidos e facilmente ganharam terreno. Todas as casas estavam em ruínas e certamente não aguentariam o ataque, mas conseguia ver por detrás das casas, uma enorme torre amarela que curiosamente parecia ter o formato de um colossal e hirto dedo médio. Correu para lá, mas o enxame estava já perigosamente perto.
Por uma infeliz fatalidade do destino, ou pela teoria do caos, como talvez alguns defendessem, quando o seu pé direito estava prestes a atravessar a arcada que anunciava a segurança, a força de Coriolis afectou a gravidade inversa exactamente da forma necessária para maximizar a inércia de uma sandes de carne enlatada, largada pelo escaravelho que se deslocava na linha que formava um ângulo de trinta e sete graus com a linha da sua trajectória, fazendo com que esta o atingisse na nuca com uma força tal que, violentamente projectado para a frente, aterrou atordoado de cabeça no chão.
Rapidamente surgiram dois pares de esqueléticas mãos com membranas interdigitais que o agarraram pela roupa e o puxaram mais para dentro. Não tinha ainda recuperado da desorientação quando uma das criaturas, que além dos volumosos lábios verdes não pareciam ter mais que uma fina e viscosa camada sobre a sua estrutura óssea, se aproximou e lhe deu duas vigorosas chapadas.
Paf, paf! Então pá? Ainda estás connosco ou não?
Esfregou os olhos e reconheceu as pessoas na sua frente. O que aconteceu, perguntou. Não faço a mínima ideia do que aconteceu, mas acho que da próxima vez é melhor meteres só um ácido.
terça-feira, 14 de outubro de 2008
Tempus Fugit - Capítulo 1.2.2.1
O cenário era atemorizador. Uma gigantesca sombra fantasmagórica que, apesar de translúcida, permitia distinguir contornos, flutuava na sua direcção. Não conseguiu perceber se se tratava de uma única entidade ou se pelo contrário era um enorme grupo delas, para o seu cérebro apenas importou o facto de ser enorme e aterrorizante.
Correu enquanto pôde, mas cada vez que parava, pensando estar a salvo, a grandiosa sombra reaparecia sobre si. Rapidamente percebeu que era inútil. Esgotado, deixou-se ficar imóvel enquanto a sombra pairava sobre si. Quando esta começou lentamente a descer, abriu os braços numa atitude de entrega e deixou que esta o envolvesse por completo. Sentiu, impotente, a consciência a fugir-lhe enquanto os pés perdiam o contacto com o solo.
Acordou na sua cama. Tudo teria sido um sonho... O tempo nunca mais parou mas, curiosamente, nunca deixou de ter a estranha sensação de que não estava a viver a realidade.
sexta-feira, 10 de outubro de 2008
Tempus Fugit - Capítulo 1.2.1.2
Quem és tu? Perguntei. Quem sou eu? Tu é que devias saber. Eu nem sequer tenho nome. Respondeu. Ah, és tu... Mas tu não existes, o que é que estás aqui a fazer? Sei lá eu! A última coisa que me lembro é de um médico me injectar qualquer coisa, portanto isto deve ser outra viagem dentro da minha cabeça. E sabes quem eu sou... Sim, não sei como nem porquê, mas sim, sei. Curioso, muito curioso. Olha, a mim já nada me espanta, mas acho que isto se calhar é para me dar a oportunidade de te dizer que estou cansado, que já não me apetece mais. Acredita que compreendo perfeitamente, a mim também já me chateia um bocado, e nem está a sair grande coisa, mas acho que pelo menos pelo valor como exercício criativo, não devíamos desistir. Não sei quanto mais vou aguentar... Onde é que está o teu espírito? É o teu propósito, algo ao qual não podes escapar. É óbvio que tens razão, mas às vezes o ímpeto esmorece. Pedires-me para desistir é perfeitamente absurdo, tu és um sobrevivente! Agora vá, desanda daqui e cumpre o teu fado.
Abriu os olhos de repente, como se tivesse sido empurrado para a realidade. Era noite e tudo estava envolvido numa tranquila penumbra. Respirou fundo e tentou descontrair enquanto se lembrava do sonho que tinha tido. Questionou-se sobre o que significaria, se teria sido mesmo um sonho, já que estava tão vívido na sua mente como qualquer acontecimento real. Parecia tão real como a aprisionante inactividade do seu corpo. Ponderou sobre quem seria aquela pessoa. No sonho conhecia-a, mas não sabia quem era. Apesar disso, percebeu um ódio visceral, Não sabia porquê, mas odiava aquela pessoa. Um ódio tal que o assustou quase a um ponto de choque. Desisto, ouviste? As frases formavam-se no seu cérebro, vindas de um qualquer recanto do seu subconsciente. Para mim chega! Não sou o teu fantoche! A confusão aumentava, não sabia porque a sua mente parecia fora do seu controle, nem a quem se dirigia. Desisto! Tenho esse direito! A sensação de impotência era atroz. Era como se fosse um mero espectador enquanto a sua mente proferia iradas exclamações. Liberta-me, filho da puta! Liberta-me! Quem? Quem? Só podia ser aquela pessoa. Mas quem era? Porque a odiava assim?
Começou a recuperar o controlo da sua mente. Conseguiu tranquilizar-se lentamente, mas uma palavra permaneceu indelével, "desisto", a palavra acabou por ocupar todo o seu pensamento. Calmamente fechou os olhos. Concentrou-se no seu coração, visualizou-o na sua cabeça, tranquilamente, cada vez com maior detalhe. Passado algum tempo, era como se estivesse a olhar para dentro do seu peito. Via nitidamente o seu coração a pulsar, conseguia ver até os pequenos vasos que o irrigam. Concentrou então nele toda a sua força, toda a sua vontade, e ele parou.
quinta-feira, 9 de outubro de 2008
Tempus Fugit - Capítulo 1.2.1.1
Alguns segundos depois de abrir os olhos, a realidade atingiu-o como um raio. Seria melhor uma existência solitária num mundo congelado, mas onde se podia mexer, ou uma existência fisicamente vegetativa num mundo compartilhado? O dilema fervilhava no seu cérebro e embora uma parte dele o tentasse convencer que o importante era a mente e não o corpo e que poderia ter uma vida gratificante, não conseguia acreditar. O dilema era fictício, sabia perfeitamente que nunca escolheria a sua situação actual, a que mais cruelmente se apresentava como real.
Doutor, quero voltar a estar em côma, disse assim que o médico atravessou a porta do quarto. Desculpe? Retorquiu incrédulo. Sei que é possível induzir um côma, quero que me façam isso, insistiu. Não podemos fazer isso. Esse procedimento envolve muitos riscos e é usado apenas em casos de dor extrema, como acontece, por exemplo, em casos de queimaduras muito extensas. Além do mais, não pode ficar aqui indefinidamente, existem outras pessoas a precisar dessa cama e, como a sua condição já se encontra estabilizada estamos até a pensar dar-lhe alta dentro de uma semana, tem que começar a fazer os preparativos para voltar para casa e refazer a sua vida. Já percebi que não vale a pena insistir, mas como é que propõe que eu faça esses preparativos? O hospital está a tentar entrar em contacto com a sua família, certamente alguém virá para o ajudar.
Estava já instalado na sua casa, a família tinha já contratado uma enfermeira para tratar dele, a quem decidiu não dirigir mais palavras do que as estritamente necessárias, quando, no meio de toda a sua revolta surgiu um refrescante pensamento positivo. Nem parecia seu, era como se lhe tivesse sido enviado de fora e dizia-lhe que uma pessoa é a sua mente e não o seu corpo, o corpo era apenas uma ferramenta. Dizia-lhe que a evolução pessoal não era feita no mundo físico, mas no campo espiritual, que era este o importante e que não lhe estava vedado. Lembrou-se das crenças budistas e obrigou-se a acreditar que a libertação do plano terreno era de facto possível. Começou a passar a grande maioria do seu tempo em meditação e libertou-se aos poucos das amarras dos apegos às coisas do mundo físico. Quando finalmente conseguiu sair do seu corpo estava já num ponto tal da sua cultivação pessoal que não sentiu qualquer euforia. Estava já livre de todas as paixões. Compaixão era o único sentimento que perdurava.
Viajou por inúmeros planos de existência e estabeleceu contacto com vários seres iluminados. O seu corpo passou o resto dos dias imóvel até perecer, mas a sua mente percorreu o universo e perdurou.
quarta-feira, 8 de outubro de 2008
Tempus Fugit - Capítulo 1.1.2.2
Por muito confortável que se sentisse durante o momento morto, não conseguia evitar que o aterrorizasse a ideia de estar completamente sozinho, de não vir a ter outro contacto com um ser humano. Este temor provocou-lhe uma torrente de recordações. Lembrou-se da sua família, dos seus amigos. Lembrou-se dos passeios à beira-mar, com as ondas a acariciarem-lhe os pés. Do vento na cara. Do que apreciava observar as pessoas nas suas vidas. Sentiu saudades de ter emoções. Pela primeira vez a tranquilidade pareceu-lhe insuficiente. Não queria tranquilidade, queria emoções. Não as conseguiria voltar a ter se não eliminasse o momento morto. Já não lhe interessava qual a verdadeira realidade, apenas queria viver numa em que existisse mais gente. Não queria ficar sozinho.
Procurou a pessoa e sem mais hesitações assinou o documento que lhe permitiria voltar a ser normal. A pessoa sorriu. Disse-lhe que tinha tomado a decisão certa e, retirando o cadeado que trancava o armário por trás de si, retirou um frasco a partir do qual encheu uma seringa. É provável que com esta dose deixe completamente de ter lapsos de consciência. Acenou afirmativamente com a cabeça, autorizando a intervenção.
Viveu de forma normal o resto dos seus dias, valorizando e acarinhando cada experiência, agradável ou não, crescendo e aprendendo com ela. Apreciou cada momento que passou com outras pessoas, evoluindo com o que com elas aprendia. Poucos talvez tenham sido os momentos em que voltou a experimentar verdadeira tranquilidade, mas isso não o incomodava. Dava-se por feliz por esta lhe ser negada pelas emoções que o inundavam.
terça-feira, 7 de outubro de 2008
Tempus Fugit - Capítulo 1.1.2.1
Sem a certeza que teria sido fruto de raciocínio lógico ou de divagação alienada, decidiu que não iria acreditar na pessoa. Não conseguia ter como certo que esta realidade, aquela em que estaria a ser tratado, seria a verdadeira. A verdade é que nem lhe interessava assim tanto se seria ou não a verdadeira. Optou por escolher a que lhe parecia mais confortável, e esta era sem dúvida a que envolvia o momento morto. Concluira que o momento morto era a altura em que sentia maior tranquilidade, plenitude até. Não lhe interessava que tudo existisse apenas na sua mente e que o seu corpo estivesse em catatonia numa cela de um qualquer manicómio. Viveria sozinho num mundo congelado no qual seria um deus. Deus de ninguém, era certo, mas bastar-lhe-ia seu o seu próprio deus.
Estava decidido, não assinaria o termo de responsabilidade. Não aceitaria qualquer tipo de tratamento. Apressou-se a procurar a pessoa para a informar da sua decisão.
Não quero, disse, não quero ser tratado. Nem tenho a certeza de estar de facto doente. Tenho a obrigação de o aconselhar contra essa decisão, respondeu a pessoa, se desistir do medicamento é possível que nunca mais venha a ter momentos de lucidez como este. Como lhe disse, não tenho a certeza que este seja de facto um dos meus momentos de lucidez, retorquiu, e a minha decisão é final, não autorizo que me sejam administrado mais nenhum tipo de drogas. Se essa é a sua decisão, teremos que a respeitar. Considere cancelado o tratamento. Espero que apesar disso ainda venha a ser possível mantermos outra vez um diálogo.
Imediatamente após a última palavra proferida pela pessoa, tudo congelou novamente. De forma tão instantânea que a pessoa ficou imóvel mantendo a posição dos lábios que originou a última sílaba que proferiu. Olhou para o relógio e verificou que este, ao contrário do que acontecia antes, não marcava a meia-noite e doze. Não sabia como, mas sabia que o momento morto que se tinha iniciado não acabaria. Manteve-se tranquilo ao aperceber-se que sabia que não iria mais ter qualquer contacto com outra pessoa. Sabia que o mundo em que iria existir seria só seu. Sabia que estava sozinho. Sabia tudo.
segunda-feira, 6 de outubro de 2008
Tempus Fugit - Capítulo 1.1.1.2
Com todo o conhecimento de tudo o que havia para saber, limitava-se a passar longos períodos em meditação. Períodos que no mundo físico representavam eras. Assistiu ao desenvolver da humanidade e de inúmeras outras civilizações espalhadas pelo universo, que sentia cada vez mais distantes de si. Criou vida em milhões de outros planetas e acompanhou a sua evolução. Invariavelmente, acabavam por desenvolver inteligência e era o início do fim. Umas mais depressa, outras mais devagar, todas as civilizações que emergiam acabavam por se autodestruir.
Houve no entanto, por uma curiosa sequência de evolução, uma que se distinguiu. Provavelmente bastaria mudar um pequeno acontecimento na sua história para que tudo tivesse descambado, mas a verdade é que, contra todas as expectativas, esta civilização persistiu e conseguiu ultrapassar o ponto chave em que o egoísmo é tal que corrói tudo por dentro. Passado este ponto, foi com genuína expectativa, tal que teve que fazer um verdadeiro esforço para não dar uma ajuda, que acompanhou o seu progresso. Testemunhou com um orgulho paternal a erradicação da crueldade e deixou-se invadir pela paz que aquela sociedade tinha conseguido atingir. Seguiram-se o ódio, a ganância, o egoísmo, a ira. Muitas gerações passaram, milhares, mas conseguiram mesmo finalmente libertar-se do materialismo. Esta momento foi acompanhado com um imensurável regozijo. Estavam mesmo quase, bastava mais um pequeno passo para chegarem a si e sabia que iam conseguir. Tinham conseguido soltar-se dos grilhões do mundo físico, era uma questão de tempo até o conseguirem descobrir.
Num ápice, inúmeras consciências partilhavam a sua. Tinham conseguido. Desafiando todas as probabilidades, tinham conseguido atingir o máximo nível de evolução. Estavam consigo, todos eles. A sensação era de extremo conforto, quase inebriante. Já não estava sozinho, finalmente. E a harmonia durou para sempre.
sexta-feira, 3 de outubro de 2008
Tempus Fugit - Capítulo 1.1.1.1
Sabia tudo o que acontecia. As atrocidades que testemunhava eram inimagináveis e começou a aperceber-se que estava a adquirir algo que poderia definir-se como repulsa pelo ser humano. Não por nenhum em particular, por todos. Começava mesmo a desprezar todos os humanos. Imaginava-se a esmagá-los um a um como se de pequenos vermes se tratassem. E para ele não tinham mesmo mais importância que qualquer outro verme.
Pensava no seu antecessor, no que o teria levado a procurá-lo e passar-lhe as suas responsabilidades e soube que tinha sido esta mesma aversão. Apercebeu-se que se não se tivesse afastado acabaria por sucumbir à vontade de eliminar toda aquela espécie repugnante. Pensava no que lhe tinha dito sobre o livre-arbítrio e agora compreendia. No entanto, a sua não intervenção começava a fazê-lo sentir-se sem propósito. Ponderava qual seria o seu papel, a sua utilidade. Por que razão existiria um deus se não se manifestava. Porque não tinha o seu antecessor simplesmente desaparecido sem deixar ninguém no seu lugar?
Decidiu enfim deixar de ser meramente passivo. Queria fazê-los sofrer, obrigá-los a viver tragédias que só conseguiriam ultrapassar se se aproximassem uns dos outros. Iria despertar a compaixão pela necessidade. Mandou terramotos, pragas, inundações e todo o tipo de catástrofes de proporções bíblicas. Assistiu impávido enquanto morriam aos milhões, acreditando que desta forma, através de um processo de selecção natural, faria com que os altruístas sobrevivessem através da entreajuda. Verificou no entanto que, apesar de toda a miséria e sofrimento, havia sempre, sempre alguém disposto a usufruir da desgraça alheia. Percebeu que o instinto de sobrevivência fazia com que tudo fosse permitido e testemunhou actos de impensável crueldade. Aceitou finalmente que era inútil, nada poderia salvar aquela mesquinha criatura. Tinha um defeito de fabrico. Não, era ainda mais profundo que isso, era um erro de concepção. Não havia nada a fazer.
Com um pensamento, todos os primatas desapareceram da superfície da Terra e, depois de minucioso planeamento, decidiu tentar de novo noutra ponta do universo.
quinta-feira, 2 de outubro de 2008
Tempus Fugit - Capítulo 1.2.2
Embora a antecipação lhe provocasse um ligeiro nervosismo, porque nos tempos que corriam - metaforicamente falando, dadas as circunstâncias - era o sinal que marcava o início do período em que saia para o exterior, foi com perfeita naturalidade que encarou o momento em que tudo parou.
Havia também alguma excitação pelo facto de ter decidido estudar este fenómeno, conduzir uma pesquisa o mais científica possível que conseguisse pelo menos proporcionar-lhe algumas pistas sobre as suas origens e sobre o seu efeito. Queria também saber o que tinha visto da última vez, aquela variação de luminosidade era também uma fonte de grande curiosidade.
O plano, que não considerou propriamente uma obra prima saída do cérebro de um grande estratega, mas que o satisfez minimamente, consistia em percorrer a cidade de forma sistemática e atenta, de forma a detectar alguma coisa que escapasse ao congelamento e que eventualmente lhe permitisse ter alguma ideia do que tinha provocado o que tinha presenciado e que lhe permitisse recuperar a confiança na sua lucidez, já que o acontecimento tinha sido tão rerpentino e ténue que deixava alguma dúvida se teria mesmo acontecido ou se, pelo contrário, não teria passado de uma partida da sua imaginação. Complementarmente iria também observar com algum rigor o comportamento dos corpos celestes, bem como o do seu próprio corpo durante o momento morto. Obteve uma planta da cidade, traçou itinerários para cada incursão e reuniu material para registar as suas observações. Esperava que dentro de algum tempo, aquele caderno contivesse informações sobre algum outro ser ou entidade que, como ele, conseguisse escapar à acção deste estranho fenómeno.
As primeiras expedições apenas conseguiram revelar que o fenómeno se extendia aos corpos celestes. Tanto a lua como as estrelas se mentinham estáticas, não descrevendo os seus movimentos naturais. Apesar de não ser de todo uma situação expectável, achou que, dadas as circunstâncias, fazia sentido, dado que o momento morto aparentava já durar bastante mais que uma noite, sem no entanto se verificar qualquer alteração ambiental.
Quanto à observação do seu próprio corpo, achou curioso só após ter decidido efectuar esta análise de forma mais cuidada, se ter apercebido que, apesar de se sentir de perfeita saúde e do seu corpo aparentar funcionar normalmente, não sentia qualquer necessidade fisiológica. durante o momento morto nunca sentia fome, sede nem necessidade de excretar os subprodutos do seu metabolismo. No entanto, apesar da de não ingerir absolutamente nada durante o momento morto, nunca sentiu qualquer tipo de fadiga ou fraqueza, pelo contrário, sentia-se muito mais enérgico que durante a parte da sua vida que se poderá considerar mais normal.
O período que se seguiu seria certamente considerado extremamente aborrecido por muitos, no entanto a paz reinava na sua mente enquanto percorria as ruas que, apesar de pejadas de pessoas imóveis, era já como se estivessem desertas para ele.
Esta paz durou, no entanto, pouco. Numa altura em que a possível existência de algo desconhecido que se movimentasse no momento morto já não era algo sobre que ponderasse com frequência, eis que algo provoca o fenómeno que cada vez mais era categorizado como uma partida da imaginação. Pior, em vez de um acontecimento momentâneo, este teve uma duração que lhe permitiu concluír que não se tratava de algo criado pelo seu cérebro. Era notória a variação na luz ambiente, como se algo o sobrevoasse, como se um bando de gigantescas aves planasse sobre si. A curiosidade transformou-se em terror ao olhar para cima. Arrependeu-se de ter querido saber o que, além de si, se movimentaria durante o momento morto.
Enquanto tentava obrigar o corpo a reagir, combatendo a paralisia provocada pelo medo, uma frase teimava em não desaparecer do seu pensamento: "Cuidado com o que desejas".
quarta-feira, 1 de outubro de 2008
Tempus Fugit - Capítulo 1.2.1
Vagueava pelas ruas intrigado com a sobra que acreditava ter visto. Na sua situação corrente, era já algo difícil confiar completamente nos seus sentidos, mas tinha praticamente a certeza que algo tinha acontecido, que tinha detectado movimento. A ideia de não ser a única pessoa activa durante o momento morto causava-lhe, por um lado algum conforto pelo facto de ser possível que não estivesse sozinho, mas também algum desconforto por sentir de alguma forma que a sua privacidade estava a ser invadida. O desconforto começou a ganhar terreno quando ponderou que, o que quer que estivesse a partilhar consigo aqueles momentos não seria provavelmente humano. A sensação com que tinha ficado era de que alguma entidade etérea teria flutuado por cima dele. Enquanto se perdia nestes pensamentos, o seu coração acelerou ao aperceber-se que algo estava novamente a influenciar a luminosidade. Assim que concentrou a sua atenção no fenómeno começou mesmo a distinguir um vulto. Tornava-se cada vez mais nítido, até que começou a distinguir o contorno de alguém, alguém vestido de branco. Deitou-se enquanto sentia a consciência a fugir-lhe. A pessoa de branco aproximava-se cada vez mais e esforçou-se por manter a consciência enquanto deixava de sentir o seu corpo.
As suas pálpebras abriram-se e deixou-se permanecer imóvel, permitindo apenas movimento aos seus olhos para reunir informação sobre o que o rodeava numa tentativa de perceber onde se encontraria, aparentava ser num hospital ou algo semelhante.
Concluiu que tinha perdido os sentidos e entretanto o momento morto teria terminado. Provavelmente teria sido encontrado inconsciente e trazido para o hospital onde acordou quando começou a ver a pessoa de branco. Pessoa esta que olhava para si como que à espera de um sinal de reconhecimento da sua presença, que acabou por acontecer quando, algo incredulamente ainda, fitou o homem nos olhos.
Parece que está a acordar. Disse o homem de bata branca enquanto o observava, não aparentando no entanto estar a falar consigo. Você está a acordar de um coma prolongado. Continuou, agora dirigindo-se notoriamente a ele. Não se esforce, deixe que a consciência volte naturalmente.
Coma prolongado? Pensou. Teria toda a história do momento morto tinha sido uma mirabolante fabricação do seu cérebro? Consegue ouvir-me? Perguntou o homem de bata branca. Respondeu afirmativamente com um ligeiro aceno da cabeça. Houve alturas em que achámos que o perdíamos. Continuou. Mas você conseguiu e já está fora de perigo. Perguntou o que tinha acontecido, mas o homem de bata branca exortou-o a descansar por algum tempo prometendo que voltaria para o pôr ao corrente de tudo e, sem lhe ter dado qualquer hipótese de argumentar, esgueirou-se através da porta por onde entrou de seguida uma jovem, também vestida de branco que com uma voz extremamente meiga lhe perguntou se precisava de alguma coisa. Perguntou novamente o que lhe tinha acontecido e ela respondeu apenas que tinha tido um acidente muito grave mas que o doutor lhe explicaria tudo o que quisesse saber. Aconselhou-o também a descansar e, antes de desaparecer novamente pela porta, disse que a chamasse caso precisasse de alguma coisa.
A consciência voltava lentamente e com ela alguma ira. Uma pessoa acorda de um coma e ninguém lhe diz nada? Praguejou silenciosamente. Nem sequer a consideração de me dizerem onde estou, e a enfermeira nem sequer me deixou aqui o interruptor para a chamar. Estará à espera que eu grite caso precise dela? Continuou.
Decidido a chamar alguém e obter as respostas que achava ter direito, percorreu com os olhos a parede da sua cabeceira e lá vislumbrou o desejado interruptor. Tentou alcançá-lo e ainda demorou um ou dois segundos a perceber que o braço não estava a responder à ordem do cérebro. Demorou outro segundo ou dois até o pânico se instalar por completo. Abriu a boca para permitir a saída do grito que se formava nas profundezas do seu ser, que apenas terminou quando o homem de bata branca apareceu e, munido de uma seringa, lhe administrou qualquer coisa que o fez novamente perder a consciência.
quarta-feira, 17 de setembro de 2008
segunda-feira, 15 de setembro de 2008
RIP Wright
Podia não ser um grande virtuoso, mas que sabia escolher o som certo para o momento certo, isso sabia!
Continuará certamente a dar grandiosos concertos no céu.
quarta-feira, 6 de agosto de 2008
Tempus Fugit - Capítulo 1.1.2
Por muito que se esforçasse, não conseguia obrigar-se a acreditar que tudo o que lhe estava a acontecer era real. Era tudo demasiado surreal para ser credível, no entanto a única outra explicação envolvia problemas mentais. Conquanto, o seu cérebro parecia funcionar normalmente, conseguia raciocinar, conseguia questionar os acontecimentos, conseguia facilmente atribuir a conversa com Deus a um lunático devaneio da sua mente, mas não era tão fácil atribuir a essa causa todo este fenómeno do momento morto. A clareza do seu raciocínio provocava-lhe uma resistência para assumir a insanidade mental como um ponto assente.
Será que um louco consegue ponderar sobre a sua demência? Meditava tranquilamente sobre esta questão, flutuando a alguns centímetros do chão, quando sentiu que iniciava uma longa queda que culminou com um grito vindo do seu âmago. Abriu os olhos e, encandeado pela iluminação fluorescente, conseguiu ainda ver alguém a retirar uma agulha do seu braço. Não estava à espera que fizesse efeito tão depressa, disse.
Onde estou? Perguntou confuso. Foi encontrado a deambular pelas ruas a falar sozinho. Dizia coisas sem sentido e não reconhecia a presença das outras pessoas. Fomos avisados e como não conseguimos saber a sua identidade nem descobrir alguém que o conhecesse, tivemos que o trazer para aqui. Respondeu a pessoa. Aqui onde? Insistiu, fazendo um esforço para se lembrar dos acontecimentos recentes. Está numa instituição para pessoas com problemas mentais. Um manicómio, portanto. Nós não gostamos de usar esse termo, mas sim. Já cá está há algumas semanas, sempre num estado cataléptico. Decidimos administrar-lhe uma droga experimental que parece resultar muito bem, melhor do que eu esperava. Consegue lembrar-se que alguma coisa? Sim, lembro-me que o mundo estava congelado e que Deus me pediu para o substituir. Compreendo... Vamos elaborar uma terapêutica e ver como a situação evolui, estou confiante que esse problema não será permanente.
Limitou-se a passear calmamente pelos corredores, mas um nervosismo incontrolável instalou-se ao passar da meia-noite. Olhava estático para um relógio na parede à espera do minuto doze, apenas para verificar que, ao cair deste, tudo congelou novamente à sua volta. Teria já terminado o efeito do medicamento? O que realmente estaria a acontecer? O que seria real? Colocou a si próprio estas e muitas outras questões, mas a verdade é que não conseguiu responder a nenhuma de forma satisfatória. Agora que supostamente estaria de volta ao mundo real, encontrava-se novamente naquilo a que para si era vulgarmente designado por momento morto, designação que não significaria o mesmo para mais ninguém.
A sua tendência para o racionalismo acabava de ditar a única explicação plausível. Definitivamente estava mentalmente doente. Doente seria um termo relativo, pois a única coisa que faria os "sãos" achar que os "dementes" é que seriam os doentes era uma mera questão de números. Como os "sãos" eram mais que os "dementes", eram levados a crer que a sua realidade era a verdadeira, mas não havia qualquer garantia nisto. Nada conseguia provar sem qualquer dúvida que não seriam os "dementes" a ver a realidade como ela efectivamente é.
Uma catadupa de questões invadia-lhe a mente. A principal sendo se seria ele a estar mentalmente doente ou se estaria sim mais lúcido que as restantes pessoas.
Sem qualquer noção de quanto tempo teria passado, quando a pessoa com quem tinha falado antes o abordou, apercebeu-se que, não sabendo também há quanto tempo, tudo já tinha voltado ao normal. Teria terminado o momento morto. Pensou. Mas de seguida, como uma sequência normal de pensamentos que não se controla, pensou que não existia momento morto. Que tudo acontecia apenas no seu cérebro. Teve ainda tempo para se aperceber que a pessoa que o abordava era a única com quem tinha falado nos últimos tempos, tempos dos quais já tinha perdido completamente a noção da extensão.
Então? Como se sente? Perguntou a pessoa. Na mesma, respondeu, acho que continuo na mesma. Acabo até agora de sair de um momento em que tudo fica estático à minha volta e acho que só agora voltei à realidade. Isso é muito positivo, significa que o medicamento está a ter efeito a longo prazo. Acredito que com mais uma ou duas semanas de terapêutica, ficará praticamente curado. Mas que garantia tenho eu que esta é a verdadeira realidade? Como é que sei que você não passa de uma alucinação? Pois, de facto não sabe, terá que acreditar em mim. Vamos supor que acredito. Qual será o plano? Vamos manter uma administração diária do medicamento durante uma semana, reduzir para metade na semana seguinte e logo veremos como evolui a situação. Há apenas uma questão, como se trata de um medicamento que ainda está em fase experimental, será necessário que assine este termo de responsabilidade. Estou portanto a ser uma cobaia. Não creio que seja necessário ver as coisas assim. Pense que está a contribuir para o avanço da medicina, que estará a ajudar pessoas com problemas como o seu. Desculpe-me, mas vou precisar de algum tempo para pensar nisso. Com certeza. Só peço que não demore muito, estaria já na altura de tomar a segunda dose.
Apenas uma frase perdurou na sua mente. "Pessoas com problemas como o seu". Haveria mais pessoas com um problema como o seu? Ponderou. E seria de facto um problema?