quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Fado

Talvez o problema tenha começado muito antes de eu me aperceber, mas foi há coisa de uns meses que comecei a reparar que ela andava a olhar para mim de uma forma diferente. Comecei a apanhá-la a mirar-me com um ar desconfiado, que depois disfarçava, cada vez pior. Tentei por várias vezes saber o que se passava, mas nem por uma delas ela disse algo que pudesse lançar alguma luz sobre o que estaria a acontecer dentro da sua cabeça. Se ela tivesse falado comigo, talvez ainda tivesse sido a tempo de fazermos alguma coisa, de resolver a questão sem recorrer a medidas extremas. Mas isso não aconteceu. Quando consegui ter um vislumbre do real problema, já ele assumia proporções devastadoras.
Se me disserem que, mesmo não compreendendo o problema, devia ter tentado fazer alguma coisa, eu concordo, mas ingenuamente fiquei à espera que ela finalmente procurasse a minha ajuda. Sim, quando começou a manter uma distância mínima de dois palmos entre ela e eu, a nunca adormecer antes de mim, a deixar de falar comigo com excepção do estritamente essencial, eu devia ter percebido que tinha que intervir. Quando comecei a apanhá-la a dormir no sofá quando me levantava de noite, deviam ter soado alarmes.
Agora, sentado a ver o sangue a escorrer das minhas mãos, penso se teria sido isto que ela previu. Se calhar, por muito que tentemos abafar a nossa verdadeira forma, não conseguimos escapar ao nosso destino.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Demónios

- Estamos a criar uma sociedade de conas moles, pá!
- Ai é?
- É. Com as merdas das simpatias e das mentiras piedosas. Ninguém está preparado para ouvir duras verdades sem se sentir atacado.
- E tu estás?
- Sim, tenho consciência que não sou um ser perfeito, como tal, é natural que haja opiniões negativas a meu respeito. E não tenho que assumir que se alguém me diz uma coisa que eu não gosto de ouvir, será porque me quer atacar. Até pode ser exactamente pelo contrário, para me ajudar a evoluir.
- Sim, acho que tens alguma razão…
- Se não houvesse esta cultura de proteger as pessoas de encarar os seus defeitos, todos estaríamos habituados a receber comentários negativos e já não fazíamos um grande filme por causa disso. Mas não, longe de nós viver na realidade e admitir que temos coisas feias . Não, isso nunca! Se fingirmos que os nossos demónios não existem, é quase o mesmo que eles não existirem mesmo. Tem é a grande desvantagem de assim nunca os exorcizarmos. Para lidar com eles precisávamos de reconhecer que existem, e isso é impensável para a maioria das pessoas.
- Verdade…
- E eu culpo esta sociedade do politicamente correcto! Do “ai, coitadinho, eu sei que é verdade, mas não lhe digas isso que o magoa. Vamos antes falar disso só nas costas dele e deixá-lo pensar que todos o achamos a pessoa mais bonita à face do planeta”. Digo mais, eu sou da opinião que alguém dar-se ao trabalho de nos fazer ver um ponto negativo em nós é uma manifestação de apreço. Se nos estivermos borrifando para uma pessoa, certamente não nos vamos prestar à maçada de a criticar e sério.
- Sabes, é provavelmente a primeira vez que te ouço falar de uma questão realmente pertinente e interessante. Normalmente as tuas conversas não interessam a ninguém. Tendem a ser praticamente todas sobre ti, e quando não são, é desconcertante a merda de assuntos de que te lembras. Ao ponto de, na grande maioria das vezes, não me ocorrer absolutamente nada para dizer excepto um “hum, hum”.
- Vai-te foder, grande filho da puta!

terça-feira, 21 de junho de 2011

Já começava a perder a fé no que a minha mãe me disse quando era pequeno: “Está bem que és parvo, feio, esquelético e duvido que o teu sexo cresça mais que isso, mas alguma coisa hás-de ter que agrade às mulheres”.
Ontem descobri finalmente! Pela boca da otorrinolaringologista (“otorrina” soa estranho…), com uma voz notoriamente excitada: “Tem um belo canal auditivo. Sem cera nenhuma e tão largo que se vê o tímpano todo. Fantástico!”
Tinhas razão, mamã!!

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Monodiálogo #8

Às vezes sinto-me mesmo farto de ti, pá! Não é que ache que sejas má pessoa e mesmo não achando também que és assim uma excelente pessoa, pelo menos acredito que te esforças por evoluir e aperfeiçoar os teus pontos mais negativos, aquelas coisas que aposto que também concordas precisarem mesmo de ser revistas.
Não tem também nada a ver com o facto de gostar ou não gostar de ti, porque até gosto, mas aborreces-me. Estou fartinho de me levantar todas as manhãs, chegar à casa-de-banho e lá estares tu, sempre, dia após dia, no espelho, a olhar para mim com aquele teu ar reprovador.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Adrenalina #3

No dia combinado, o Bonifácio e o Matias lá foram à sua aventura, com um nó no estômago causado pelo extremo nervosismo. O Bonifácio estranhou que, ao contrário do que pensou que aconteceria, o Matias não aparentava estar tão nervoso como ele. Começou a perceber que, também ao contrário do que pensava, a forma como o Matias vivia a sua vida era mesmo por uma questão de opção e não propriamente por ter medo de nada. “Quem diria…”, terá pensado o Bonifácio, “que ele manteria esta calma a uma hora de se atirar de um penhasco?”. Claro que a pulsação do Matias estava tão acelerada como a do Bonifácio mas, desde que tomou a decisão de alinhar na aventura proposta pelo seu amigo, não se viu mais nele um instante sequer de hesitação. O Bonifácio estava radiante.
Preparativos feitos, lá estavam os dois prontos a saltar, com a adrenalina a escorrer-lhes pelos poros. O Bonifácio foi à frente e, depois dos momentos do misto de pânico e excitação que sentiu após os seus pés terem perdido o contacto com a superfície terrestre, ao olhar para trás em busca do seu amigo, um novo pânico instala-se, este já sem qualquer excitação, ao ver o Matias a cair a pique rumo ao chão. O resto da viagem decorreu em completo terror e este não tinha qualquer relação com a emoção de voar. Aliás, a emoção de voar foi completamente abafada pelo pavor de não saber sequer se o seu amigo teria sobrevivido à queda. Depois do que lhe pareceram horas, lá aterrou em segurança apenas para, depois de saber que o Matias  tinha sido levado para o hospital, disparar ao encontro do seu amigo.
Mais de três dias esteve o Bonifácio a velar o seu comatoso amigo, a chafurdar em culpa, sem nunca se ausentar mais que dez minutos. Durante este tempo, angustiado por não poder fazer mais, conversou constantemente com o Matias, que teimava em não reagir. Por fim, ao quarto dia, os olhos do Matias abriram-se lentamente, facto que causou ao Bonifácio algo próximo da euforia. Depois de alguns minutos a recuperar a consciência, os lábios do Matias mexeram-se, produzindo um som ténue que o Bonifácio tentou perceber aproximando o seu ouvido da boca do seu amigo.
Os olhos do Bonifácio brilharam ao ouvir as primeiras palavras que o seu amigo proferia depois do acidente. Com visível esforço, já que tinha o maxilar partido em três sítios, o que saiu da sua boca foi: “Quando é que vamos outra vez?”

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Adrenalina #2

– Temos que correr riscos, pá!
– Porquê? Não percebo porque é que havemos de correr riscos desnecessários. Eu prefiro estar confortável e seguro no meu canto.
– Não são desnecessários! Só dizes isso porque ainda não experimentaste o clímax do perigo. Porque nunca saíste da tua minúscula zona de conforto.
– Eu gosto da minha minúscula zona de conforto.
– Mas só saindo dela é que a consegues alargar. Algum desconforto é um preço mínimo para o que podes ganhar. Se não fizeres esse esforço a tua zona de conforto vai acabar por te estrangular e transformar-te num velho sozinho e amargo.
– Hum… Uma visão algo fatalista… E o que é que tu propões para evitar isso.
– Não tenho propriamente um plano, mas por acaso agora que estamos a falar disto, ando numa de experimentar asa delta.
– Endoideceste, não foi?
– Aquilo é seguro. Caem mais aviões que asas delta.
– E que tal escolheres uma coisa que não requira um curso?
– Não é preciso saberes nem fazeres nada. Vais tipo pendura com um profissional a conduzir aquilo. Estás a imaginar-te a voar? A sensação de liberdade? Deve ser diferente de tudo o que já experimentámos. Vá lá, diz que sim.
– Que sim
– A sério?
– Sim, vamos lá experimentar isso. Mas tens que prometer que depois não me chateias mais com este assunto.
– Está prometidíssimo! Deixa-me que te diga que foi infinitamente mais fácil do que eu poderia esperar.
– Se calhar não me conheces tão bem como pensas.
– Se calhar tens razão. Ou se calhar isso é sempre verdade, independentemente das pessoas.
– Se calhar…

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Adrenalina #1

Depois de o conseguir arrastar para fora de casa para beber uma cerveja e desfrutar um pouco do fim daquela tarde quente tão agradável, o Bonifácio deu por si a olhar o seu amigo com um inconfundível sentimento de comiseração. Era a primeira vez que se apercebia disto, mas sim, era verdade, o que sentia pelo seu velho amigo Matias, além de uma profunda e inabalável amizade, era pena. Esta constatação chocou-o ao ponto de o seu amigo quebrar o silêncio perguntando-lhe se se passava alguma coisa. Era pouco frequente ser o Matias a preencher o silêncio que muitas vezes se gerava quando estavam juntos, mas isso não era um problema para qualquer dos dois. Não era um silêncio constrangedor. Simplesmente nenhum deles tinha nada que achasse que devia dizer naquele momento e nenhum deles se sentia na obrigação de dizer qualquer coisa com o único intuito de preencher o vazio verbal. Ao Bonifácio, ocorriam-lhe com mais frequência temas de conversa, mas isso não queria dizer que o Matias fosse um tipo calado. Nada disso. O mais frequente era até envolverem-se em acesos debates, mas isto só acontecia quando, de forma natural e espontânea, surgia um tema conceptual sobre o qual ambos tinham opinião. Acontecia com frequência mas não era sempre, que não eram daquelas pessoas que têm opinião sobre tudo, inclusivamente sobre assuntos sobre os quais não sabem absolutamente nada. Não, as opiniões do Bonifácio e do Matias eram sempre fundadas, embora, como eles próprios tinham consciência, pudessem estar completamente erradas. Simplesmente, como não eram pessoas de contar tudo o que lhes passava na vida, tinham vários momentos de ausência de conversa, durante os quais se permitiam, tranquila e confortavelmente, perder nos seus pensamentos sem que ninguém se sentisse obrigado a falar do estado do tempo, que, por sinal, estava tão agradável naquele dia que também não daria grande tema de conversa senão o tradicional: “Está calor hoje!”, “Olha, pois que de facto está. É de extrema clarividência e lucidez a sagaz constatação desse facto”.
Foi uma forte revelação para o Bonifácio, mas era inegável. Tinha pena da vida vazia do seu amigo. Faça-se a ressalva que, apesar de considerar que a vida do seu amigo era vazia, tinha consciência que isso era apenas verdade à luz da sua forma de ver as coisas. Tinha também consciência que a sua forma de ver as coisas não era necessariamente a universalmente verdadeira. Era-o para si, mas respeitava qualquer outra perspectiva tanto como a sua. Isto para não se ficar a pensar que o Bonifácio era daqueles que acha que toda a gente devia viver a sua vida da forma que os próprios vivem. Não. Ao Bonifácio, apesar de ter bem definida a forma como achava que devia viver a sua vida, não lhe passava pela cabeça impingir essa visão a mais ninguém como sendo o correcto. No entanto – talvez isto fosse uma aresta que ainda precisasse de algum desbastamento – fazia-lhe algo que creio se poder descrever como “impressão”, que as pessoas atravessassem este mundo sem aproveitar o (na sua opinião) pouco tempo de vida que lhes é concedido. Causava-lhe confusão, por exemplo, que houvesse gente que passava horas esquecidas sozinha, mesmo estando na companhia de outros, em frente à televisão. Mais confusão ainda lhe causavam pessoas que despendiam anos da sua vida a limpar e arrumar coisas. Ele até gostava de ter as coisas limpas e arrumadas, mas achava que havia uma infinidade de coisas melhores com que ocupar esse tempo. Achava que a razão de estar vivo era tentar passar o maior número de momentos de satisfação e viver o maior número de emoções que fosse possível até que a fria e inevitável mão da morte se pousasse no seu ombro. “Pois”, diria o Bonifácio se estivesse a acompanhar este relato, “a vida é demasiado curta para se perder tempo com ninharias”.
Racionalizou naquele momento que achava que o seu amigo estava a desperdiçar a sua vida, fechado em casa com as suas maquetas e os seus filmes clássicos. Achava que precisava de se apaixonar, de ter o seu coração partido, de curar essa mágoa e apaixonar-se de novo, de experimentar descargas de adrenalina, outros estados de consciência. No fundo, achava que a vida do seu grande amigo começava a perder o significado, dados os anos que já tinha vivido e as parcas, se algumas, ocasiões em que, qual pára-quedista que com metade do seu pé direito e metade das suas mãos fora do avião, com a deslocação do ar a empurrar-lhe as bochechas, pronto para saltar para o vazio assim que a ordem for dada, sentiu todas as células a fervilhar, não só compreendendo a razão de estar vivo, como sentindo essa mesma razão a percorrer-lhe todo o corpo. Só os saltadores sabem porque é que os pássaros cantam, ouvi algures dizer, e é uma bela metáfora. Só quem se dá às emoções é que sabe qual o sentido da vida.
Sentiu que tinha que fazer alguma coisa. Fez um esforço por respeitar as escolhas do seu amigo, impondo-se um limite na tentativa de persuasão, mas achou que ele precisava de ser espicaçado. Tentaria não abusar, mas achou que não seria de amigo não tentar dar alguma emoção à vida do Matias. Se depois achasse que queria voltar à sua vidinha pacata, tudo bem, mas faria-o com conhecimento da alternativa.

Fleuma

Como é que se aguenta uma tarde fechado num escritório depois de um repasto num terraço em pleno Chiado, em excelente companhia, a ver os barcos a passar no Tejo e a partilhar mesa e almoço com os pardalitos que, afoitos como nunca vi, só faltava virem comer ao nosso prato?
Haja tabaco!

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Crustáceos

O Aníbal até era boa pessoa. Quero dizer… Acho que até era boa pessoa, porque o verdadeiro Aníbal estava tão enterrado debaixo de uma camada tão espessa e intrincada que era muito, mesmo muito difícil, até para os que conseguiram relacionar-se com ele o suficiente para conseguir esgravatar alguma coisa, ter um pequeno vislumbre da sua verdadeira personalidade. Sim, acho que era boa pessoa, mas não tenho a certeza.
Podia ser por insegurança, mas também podia ser por saber-se de coração tão frio que não lhe restou alternativa senão esconder ao máximo essa característica dos que o rodeavam. Eu opto por achar que era insegurança. Por pensar que o seu verdadeiro eu nunca teria tanto sucesso com os demais humanos como o personagem que foi aprimorando ao longo dos anos para apresentar ao mundo em vez de si. A verdade é que nunca deixava ninguém aproximar-se o suficiente para penetrar naquela carapaça dentro da qual se escondia.
Compreendo o sentimento de vulnerabilidade a que nos expomos quando deixamos que o nosso interior, mole e frágil, fique à mercê do cruel mundo exterior. Compreendo que esse sentimento nos incite a fazer tudo para proteger o nosso âmago, qual crustáceo que acabou de largar a sua casca e se esconde no buraco mais fundo que encontra até se sentir novamente suficientemente duro para voltar a enfrentar o mundo.
Mas acredito também que, assim como o tal crustáceo precisou de abandonar a sua couraça para poder crescer, também o ser humano tem essa necessidade. É só quando abandonamos a segurança da grossa camada que colocamos entre nós e o exterior, que conseguimos realmente crescer. Nunca antes me tinha apercebido o quanto temos em comum com essa forma de vida tão básica e apetitosa.
Tenho pena que o Aníbal não tenha percebido isso a tempo e no seu funeral estivessem apenas pessoas que afinal prestavam a sua derradeira homenagem a outra pessoa. Uma pessoa que nem sequer tinha existido realmente. Mas também não sei se isso fez diferença para o Aníbal, já que se calhar, para o fim, já ele próprio tinha perdido o contacto com a sua verdadeira essência e já acreditava piamente na farsa que tinha começado a criar em tão tenra idade.
Se calhar até morreu feliz, sei lá… Sei, no entanto, que não é isso que quero. Não acho que conseguisse morrer feliz sem aceitar quem sou, com todas as maravilhas e perfídias que compõem esta obra prima da natureza, que somos.
Pois que provavelmente haverá muito menos gente no meu funeral, mas vou tentar que os que lá estiverem o façam por mim e não por um qualquer personagem ficcional, muito estimado e elogiado por todos mas que, na realidade, nunca existiu.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Os vermes

Eu sei que não acreditas, que achas que estou doido, mas eu sei que eles lá estão. Sinto-os debaixo da minha pele. Ouço-os de noite, no silêncio, lentamente a corroer-me os músculos. Eles estão lá, eu sei que estão. Os vermes! Sinto-os a retorcer-se lá no fundo, aos milhares, a comer-me por dentro.
Ouve, ouve! Estás a ouvir? Ouve-los a alimentar-se? São tantos… E crescem.
Tu acreditas em mim, não é? Sabes que eles lá estão, não sabes? Sabes que eles me deglutem aos poucos, não sabes? Sabes que não estou doido. Sabes, não sabes?...

quinta-feira, 5 de maio de 2011

São Paulo 666

Começou por ser uma história inocente inspirada no São Paulo 451 dos Belle Chase Hotel e, sem qualquer controlo da minha parte, acabou por ir descambando até se transformar num texto sem sentido; mórbido, grotesco e nauseante. Um texto demoníaco que não deve ser lido por ninguém e capaz de condenar à danação eterna os tementes a qualquer dos deuses. Se calhar devia procurar ajuda profissional…

Estais avisados.

José desligou a água do duche. Inspirou fundo, endireitou as costas, levantou a cabeça de forma a que o seu nariz ficasse a um ângulo de cerca de trinta e cinco graus em relação ao plano do chão e, com uma enérgica expiração deu o primeiro passo para enfrentar o mundo naquele dia, saindo da banheira. Ainda a pingar, continuou o seu ritual diário untando cuidadosamente todo o seu corpo com óleo. Nunca percebi porque alguém faria uma coisa destas, já que sempre achei que um dos objectivos do banho era exactamente remover o excesso de gordura que vamos segregando, pelo que me parece absurdo repô-la assim que acabamos de a retirar, mas o que interessa aqui não é a minha opinião e sim contar a história, portanto… Adiante. Enrolou uma toalha no cabelo e foi para o quarto, deixando pegadas húmidas, número quarenta e quatro, pelo caminho. Abriu a porta do roupeiro para revelar o espelho de corpo inteiro. Aproximou o rosto e, acariciando o queixo, acenou afirmativamente para o seu reflexo. O creme depilatório que usava para a barba era eficaz, mas por vezes causava-lhe irritação na pele, mas não naquele dia. Afastou-se do espelho de forma a conseguir ver mais de si e sorriu. “Está quase, pequenas”, disse. “Só mais…”. Olhou para um papel pousado na mesa de cabeceira. “quarenta e oito clientes. Se as coisas correrem de feição, é um mesito ou menos”. Olhou para o vestido roxo escuro que tinha escolhido na noite anterior e colocado nas costas da cadeira. “Não, não, não, não, hoje não”, disse ao vestido na cadeira. Dirigindo-se ao roupeiro, foi direito ao vestido rosa choque curtíssimo. “Tenho um bom pressentimento para hoje”, disse ao vestido rosa enquanto o retirava do armário juntamente com umas meias de rede. Vestiu-se, maquilhou-se e, ao terminar de pintar os lábios, penteou-se com os dedos e fez uma pose para o espelho. “Linda”, exclamou, e despediu-se do seu gémeo com um beijo nos lábios do reflexo.
“Tenho que comer bem, sinto que vai ser um dia atarefado. Hoje vou mimar-me. Vou almoçar ao Gomes e vou convidar a Manuelle”, disse às paredes.
Ao chegar ao rés-do-chão, já ouvia o sinal de chamada no telemóvel que rapidamente foi substituído pela esperada voz.
– Quériiida!! – Disse alegremente José.
– Gaija!! – Respondeu Manuel no mesmo tom – Que andas a fazer?
– Estou a sair agora e apetece-me qualquer coisa diferente. Não sei porquê, mas estou muito bem disposta. Vamos ao Gomes? Pago eu.
– Mulher, nem imaginas o bem que me estás a fazer. Tinha saudades de te ver assim. Estou lá daqui a meia hora.
– Ok, até já.
– Eu lhe amo, sua boba – Disse Manuel com sotaque brasileiro.
– Chérie!! – Respondeu José.
Ambos produziram simultaneamente o som de um beijo repenicado e desligaram.

Como chegava ao restaurante em menos de quinze minutos, José decidiu tomar primeiro um café na cervejaria da esquina. Já estava habituado a que toda a gente olhasse para ele quando entrava em algum sítio, mas naquele dia sentia-se tão deslumbrante que conseguiu mesmo achar que era pela sua sensualidade que os homens olhavam para si e não por o acharem uma aberração. Era algo que tentava combater, mas era tremendamente difícil achar que o olhar de outro homem poderia ser de interesse emocional e não por uma qualquer curiosidade científica ou mórbida.
Chegado ao balcão, pediu o seu café a três quartos, pegou no jornal e foi sentar-se numa mesa ao fundo a lê-lo, ignorando os demais clientes. Ocasionalmente fazia o movimento “instinto fatal” e sorria, espreitando as reacções embasbacadas dos presentes. Bebeu o café, fumou um dos seus cigarros de puta, como lhes chamava, e saiu deixando a moeda na mesa.
Ao chegar ao restaurante, Manuel estava à porta a fumar o seu SG filtro. Não gostava daquelas coisas que o outro fumava. “Só um cigarro de homem macho é que me satisfaz”, costumava dizer. Entraram, comeram, beberam e divertiram-se prevendo maravilhosas viagens que nunca fariam e inflamadas histórias de amor com príncipes encantados que nunca viriam a conhecer.
Bebido o café e o brandy, o Sr. Gomes ofereceu-lhes cigarrilhas. Era burro como um tijolo e bruto que nem um cepo de madeira, mas, vá-se lá perceber as pessoas, tinha uma mente mais aberta à diferença do que muitos jovens urbanos e nunca discriminava ninguém fosse por cor, credo ou originalidade de apresentação.
– Vais deixar-me retribuir-te este excelente almoço. Que tal tirarmos o serão e jantarmos em minha casa? Ando doida para experimentar uma receita nova.
– Boa ideia. Apareço lá pelas oito, nove. Pode ser?
– Perfeito!
Saíram do restaurante, deram dois beijos na atmosfera e cada um seguiu na direcção do seu local de trabalho de eleição.

As expectativas de José confirmaram-se e a tarde foi de facto muito azafamada. Melhor, só teve que exercer o papel activo em apenas um dos clientes, e ainda por cima era aquele rapaz musculado que o fazia estremecer quando o via. Não é que não gostasse de se vir, mas ser o activo impunha-lhe um nível de pressão que não existia na outra situação, em que não tinha que pôr nada em pé e podia muito bem estar a pensar numa praia tropical ou a ouvir música na sua cabeça. Era sempre um stress quando lhe aparecia um daqueles velhos asquerosos a querer ser enrabado, coisa que acontecia muito mais do que esperava quando se tinha iniciado naquela vida. Era uma merda quando o seu rendimento dependia de conseguir excitar-se e em vez de pensar em praias paradisíacas ter que se obrigar a recorrer às memórias que ia guardando dos homens que realmente o agradavam. Um destes era exactamente o jovem musculado que, ditou a sorte naquele dia, foi o único que o obrigou a ter uma erecção. Apesar do agrado, causava-lhe alguma confusão que o rapaz recorresse a ele, já que alegadamente teria um namorado fixo. Achava que, no fundo, o rapaz, já que o escolhia a ele e não um gay macho, daqueles de farto bigode, correntes, óculos escuros e boné de couro preto; nem devia ser  homossexual. Que o mais provável era gostar apenas de levar na anilha e isso causava-lhe um certo sentimento de comiseração que, além do corpo que o fazia babar, o tornava mais empático com o jovem. De resto, os vários velhos asquerosos quiseram apenas servir-se dele. Foi, portanto, um dia bom.

José premiu o desgastado botão da campainha do quinto esquerdo. “Sim?”, perguntou uma voz rouca no intercomunicador. “Sou eu, querida”, respondeu José. A porta abriu-se e ele subiu.
Ao chegar, deu dois toques na porta com os nós dos dedos e esta abriu-se para revelar um Manuel desgrenhado, com um aspecto terrível, embrulhado num roupão sujo de sangue. “O que é que te aconteceu?”, perguntou José, atónito. Manuel levantou os seus olhos esborratados por alguns segundos, apenas para se desmoronar de joelhos no chão e rosto enterrado nas mãos a chorar inconsolavelmente. José afagou-lhe ternamente a cabeça. “De onde é que veio este sangue?”, perguntou, tentando manter a calma. Manuel afastou o roupão para revelar uma grande laceração na nádega direita. José recuou com o choque. “Vou chamar um táxi e vamos já para o hospital!”, exclamou enquanto pressionava nervosamente as teclas do telefone. Manuel retomou o choro compulsivo enquanto levantava o indicador na direcção do quarto. “Depois!”, vociferou José, “Agora temos que ir tratar disso”.
O táxi chegou e lá foram para as urgências. José, louríssima e espampanante, com o seu vestido rosa choque, as suas meias de rede e os seus saltos agulha. Manuel, morena e despenteada, de roupão, chinelos e ar de quem passou os últimos anos numa prisão turca.
Talvez pela gravidade do ferimento, talvez pela comoção que provocaram ao irromper espalhafatosamente pelo hospital naquele estado, Manuel foi imediatamente assistido. José, indiferente às indicações dos profissionais, não saiu do seu lado e segurou-lhe carinhosamente a mão enquanto lhe cosiam o golpe. “Não sei em que andanças se meteu, mas agora não se vai poder sentar como deve ser durante umas duas semanas. Espero que tenha valido a pena”, disse o médico. Manuel retomou o choro e José olhou para o médico de tal forma que este temeu pela sua segurança. Desculpou-se a despachar e desapareceu num ápice. “Grande filho da puta!”, ainda ouviu a ecoar pelo corredor enquanto se afastava.
– Agora vamos para casa para descansares e amanhã vamos à polícia – disse José.
– Não sei se é grande ideia ir à polícia – Disse Manuel sem levantar a cabeça.
– O pulha que te fez isso vai ter que pagar! – Respondeu José irritado.
– O pulha já pagou. Era o que te estava a tentar dizer lá em casa. O filho da puta está esticado no meu quarto com um balázio na testa e outro no peito. Nem sei como é que não lhe enfiei também um nos colhões…
– Meu deus! – Exclamou José, atónito – Mas afinal o que é que aconteceu?
– Não sei o que se passou na cabeça daquele anormal, que decidiu espetar-me uma faca a meio do serviço. No segundo a seguir já eu tinha aberto a gaveta da mesa de cabeceira e estava de arma em punho. Ainda me pareceu que ele ia tentar implorar, mas num instante já estava com os dois balázios em cima.
– Porra… - Disse José mais para si próprio que para o outro – O teu treino dos fuzos ainda está bem apurado.
– Há coisas que nos ficam tão marcadas que nunca mais passam – Respondeu Manuel com um misto de orgulho e vergonha – E agora, o que é que eu vou fazer?
– Acho que devíamos ir na mesma à polícia.
– Desculpa, mas não posso fazer isso. Sabes como é que ia ser. Ia ser o bobo da corte e não me safava da prisão. Eu não sobrevivia  uma semana preso atrás de grades sem poder sair para ir comprar uma roupita ou um creme novo nem poder ir passear pela baixa a ver as montras. Não, isso não!
Ainda ouviram o taxista gritar “Paneleiros!” quando arrancou depois de os deixar à porta da casa de Manuel. Subiram e, lentamente como se temessem que o cadáver se tivesse levantado e estivesse num qualquer canto à espera do momento certo para os atacar, acabaram por chegar ao quarto onde, deitado numa imensa poça de sangue, jazia nu um homem de cerca de quarenta anos. O seu crânio estava parcialmente desfeito e um buraco no peito maior que um punho deixava vislumbrar um pouco do enorme estrago nos órgãos torácicos.
– Nove milímetros derrubantes fazem um bocado de estrago… – Desabafou José meio absorto, absorvendo o grotesco cenário em que o seu quarto se tinha tornado.
– Minha querida amiga – Disse José sem tirar os olhos arregalados do cadáver – Eu apoio qualquer decisão que tomes. Mas o que é que vamos fazer a isto?
– Temos que o fazer desaparecer, mas primeiro temos que recolher as balas.
José desviou o olhar do corpo morto e pregou-o no seu amigo, intensificando ainda mais a expressão atónita que tinha adquirido desde que entrara no quarto.
– Estás muito frio, para quem parecia uma Madalena há menos de uma hora!
– Já me passou o estado de choque. Agora quero é ver-me livre de toda esta situação. E não há nada que me diga que este pedaço de merda não merecia morrer – Fez uma pausa para cuspir no cadáver – Por isso não me vou sentir mal com isto.
– Ainda bem, porque apesar de parecer estar a levar isto tudo muito na boa, sou capaz de me ir abaixo a qualquer momento. E por favor, não me peças para lhe enfiar a mão.
– Eu faço isso.
Enquanto introduzia a mão no buraco deixado pelo impacto da bala no crânio do infeliz, Manuel ainda tentou aliviar a tensão dizendo que era um desperdício pois o homem até era bem parecido. José limitou-se a manter o olhar na parede, cantarolando numa vã tentativa de evitar que os seus sentidos conseguissem processar o som horripilante do esmigalhar de massa cerebral. A do peito foi mais difícil. Deve ter feito ricochete na coluna vertebral e partiu-se em vários pedaços, alguns dos quais obrigaram José a enviar quase todo o braço pelo buraco no peito do cadáver para os encontrar dispersos pela cavidade abdominal.
O seu sangue-frio pareceu ter sido mesmo à conta, já que assim que retirou o que pensou ser o último pedaço de metal e se pôs de pé, iniciou uma extravagante dança que consistia em dar pequenos pulos alternando os pés enquanto agitava os braços a dupla cadência, tudo acompanhado por estranhas vocalizações. A dança terminou na banheira, onde se esfregou prolificamente com o esfoliante mais áspero que tinha entre os seus incontáveis produtos para o banho.
José sentou-se no tampo da sanita a olhar pensativamente para o rasto ensanguentado.
– Nem acredito que estou a dizer isto, mas vi num filme que os porcos conseguem digerir tudo de um corpo humano menos os dentes, só temos que o cortar em bocados muito pequenos.
– Se tivéssemos possibilidade de o cortar em pedaços pequenos, até ia pela sanita! – Respondeu Manuel algo irritado – Como é que propões que o cortemos em pedaços pequenos?
– Pois… Não é fácil… E se o atirássemos ao rio com uns pesos agarrados?
– Parece que também já recuperaste a compostura.
– Está assente que temos que fazer o corpo desaparecer, não é? Então temos que pensar na melhor maneira de o fazer. E para isso temos que pôr a comoção de lado e raciocinar. É o que estou a fazer. Acho que em vez de estares com essa atitude devias estar a ajudar-me, já que foste tu quem nos meteu nisto.
Manuel afastou violentamente a cortina do duche e lançou um olhar fulminante a José.
– Desculpa lá a crueza, mas é a verdade. E acho que mais vale acalmares-te que eu só te estou a tentar ajudar. Se preferires fazer tudo sozinho é só dizeres – Terminou José secamente.
– Tens razão. Desculpa. Começamos por separar a cabeça e a ponta dos dedos do resto.
– O quê??
– Não vês séries de homicídios? Sem as pontas dos dedos e a cabeça é praticamente impossível identificar um cadáver.
– E o ADN?
– Isto é Portugal, não é o CSI.
– Certo…
– As pontas dos dedos vão para o liquidificador. O crânio, vou ter que o desfazer com o martelo da carne.
– Estás a assustar-me Manuel.
Tê-lo tratado pelo nome que os pais lhe tinham posto foi prova suficiente que falava muito a sério. Manuel já nem se lembrava da última vez que o tinha feito, mas instintivamente levantou os olhos para confirmar pela sua expressão o que já tinha inferido.
– Tem que ser, amiga, é a minha sobrevivência. Não te censuro se, a qualquer momento, quiseres afastar-te.
– E quem é que vai tomar conta de ti se eu me afastar? E quem é que vai tomar conta de mim? És a minha família. Estou aqui para o que der e vier.
Manuel saiu do banho, enrolou-se na toalha e acariciou o cabelo de José.
– Obrigado, querida. Que tal tomares um banho para descontrair enquanto eu trato desta parte?

Manuel observou o cadáver por alguns momentos. “O que tem que ser tem que ser”, disse ao morto e foi em busca de ferramentas. Retirou um cutelo e uma tábua de corte da cozinha e foi à caixa de ferramentas encontrar uma serra. De uma forma quase maquinal, como se fosse totalmente desprovido de emoções, Manuel colocou a tábua debaixo da mão do morto e, com golpes seguros, separou as falangetas do corpo. Repetiu o processo para a outra mão. Sem perder a compostura, virou o cadáver de barriga para baixo e investiu, serra em punho, no pescoço do defunto. Foi mais difícil do que esperava, mas lá encontrou o espaço entre a terceira e a quarta vértebras cervicais e conseguiu por fim separar a cabeça. Colocou as pontas dos dedos no liquidificador com um pouco de água e rapidamente tudo se transformou numa papa avermelhada que despejou no lava-louça. “Agora a parte mais difícil” disse à cabeça da sua vítima, que envolveu em inúmeros sacos de plástico numa tentativa de sujar o menos possível. Num canto, colocou o mórbido embrulho no chão. Levantou o martelo, reuniu toda a sua força e desferiu o primeiro golpe no crânio que desabou sobre si próprio. “Mal tu sabias, mãezinha, que o martelo que me trouxeste e que eu achei que seria inútil, ia servir para isto…”, disse olhando para cima. A mãe de Manuel ainda não estava morta, mas mesmo assim ele tinha sempre a sensação de que ela o observava de cima. Desferiu mais alguns golpes mas rapidamente percebeu que não conseguiria destruir o crânio de forma a que conseguisse deitá-lo sanita abaixo. Envolveu a pasta de onde protuberavam pedaços de osso em mais alguns sacos de plástico e decidiu que a deitaria num contentor de lixo. Esperaria até que visse o camião a vir, deitaria o despojo no contentor e ia ficar à espreita a ver se alguém reparava em algo estranho. Achou que era o mais seguro e decidiu fazer o mesmo com o resto do corpo. Cortá-lo-ia em pedaços manejáveis e distribuía-os por vários contentores do lixo em sítios distintos. Se fosse cuidadoso nunca o apanhariam. Mas, mesmo serrando pelas articulações, despedaçar um corpo humano não é tão fácil como pode parecer e quando José apareceu, passada mais de uma hora, Manuel ainda só tinha conseguido separar um pé e investia vigorosamente com a serra no outro tornozelo.
– Se hoje de manhã me tivessem dito que neste dia ia assistir ao desmembramento de um cadáver, eu não acreditava. E até acordei tão bem disposta hoje – Disse José num lamento.
– Pois, eu também não estava a contar que me esfaqueassem a peida – Disse Manuel enquanto, já com um brilho lunático nos olhos, pegava novamente no cutelo e atacava o tornozelo até que o segundo pé se separou do resto do corpo – Não aguento mais. Hoje levamos a cabeça e os pés e depois logo se trata do resto.
– Qual é o plano?
– Acho que o mais seguro é embrulhar bem e deitar no lixo. Assim que for para o compactador do camião, mais ninguém o vê.
– Parece-me arriscado. E se alguém repara naquilo? E se alguém for mexer naquilo na lixeira?
– Tens outra sugestão?
– Estava no banho a lembrar-me das aulas de biologia no liceu. Sabias que o vinagre dissolve o cálcio dos ossos? Se triturarmos as partes moles, podemos deitar tudo na sanita e depois pomos os ossos de molho em vinagre até ficarem suficientemente moles para os desfazermos também.
Manuel olhava incrédulo para José, como se só agora tivesse percebido o nível de gravidade da situação.
– Eu não acredito no que acabei de ouvir. Não acredito que isto me esteja a acontecer. Não acredito que acabei de cortar os pés a uma pessoa morta! Não vou aguentar isto. Não aguento! – Gritou agitando as mãos junto aos ombros.
– Começámos isto, agora não temos opção senão ir até ao fim. Controla-te, mulher. Tens que te aguentar.
– Tenho que me aguentar?? Por acaso pensaste no que acabaste de propor? Quem é que vai separar a carne dos ossos?
– Fazemos como se fosse um animal. Esfolamos a pele e vamos cortando até chegar ao osso.
– Agora és tu que me estás a assustar.
– Se conseguíssemos arranjar ácido sulfúrico suficiente…
– Nem estou a acreditar que estás a falar a sério!
– Já sei! Enchemos a banheira com aquele produto para desentupir os canos e deitamos o corpo lá para dentro. Aquilo é altamente corrosivo para a matéria orgânica. Deixamo-lo lá uns dias e depois deitamos água e abrimos o ralo para a nhanha sair. Repetimos até ficarem só os ossos e depois usamos o vinagre – José não conseguiu evitar mostrar uma ponta de excitação, apesar de tudo o seu sonho sempre tinha sido ser engenheira bioquímica.
– Estás a divertir-te com isto??
– Estou só a ser racional.
– Se não envolve serrar mais ossos nem cortar fatias de carne humana, eu alinho.
– Ficas em minha casa durante o processo. É capaz de deitar cheiro.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Escárnio

Perguntou-me se o rímel lhe ficava bem. Eu respondi que tanto que faria inveja ao Alice Cooper nos seus primórdios. Ficou radiante.
Deve ser tão mais simples viver quando não se conhece o conceito de sarcasmo…

terça-feira, 22 de março de 2011

Fanal

O zumbido da lâmpada era quase inaudível, mas estava lá. Sempre. Bastava que parasse por uma fracção de segundo para que se apercebesse. Já não conseguia dormir, viver sequer, sem a companhia daquele familiar zumbido.
Além dele, estava lá o mar para confortar a sua solidão. O mar… Velho e fiel amigo. Lar dos fantasmas de inúmeros lobos do mar que por vezes também o visitavam. Não estava só, ou, pelo menos, não se sentia só. Nunca tinha tido jeito para as pessoas. Nunca tinha conseguido conversar com alguém como o fazia com as ondas que, incansáveis, teimavam em entregar-se às rochas lá em baixo.
Aquele era o seu mundo, onde se sentia seguro. Um mundo que, apesar de diminuto, o satisfazia plenamente.
Se acaso duvidasse, bastava esperar pelo pôr-do-sol, altura em que acendia o seu cachimbo e se recostava a ver as gaivotas no céu, embaladas pelo vento, sobre aquele fundo repleto de cor. Verdadeira obra de arte da natureza. Um dia deixará ali o seu velho corpo e voará com elas.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Dia 7 - Epílogo

É provavelmente estúpido estar a terminar este relato, já que terá que ser destruído, mas pelo menos não fico com a sensação que deixei algo inacabado.
A rapariga continuava encolhida ao canto, mas estava silenciosa. Os seus olhos esbugalhados fixos em mim como se tivesse percebido que o seu destino estava irremediavelmente traçado. Levantei-me devagar, com a caneta na mão e aproximei-me dela. Pedi-lhe que se levantasse e se encostasse à parede. Ela fê-lo. Sem pensar, como se o meu braço tivesse decidido sozinho, espetei a caneta por detrás da sua traqueia e puxei com toda a minha força. Nunca poderia adivinhar a emoção que me provocou ver os seus olhos perderem o brilho enquanto o seu sangue escorria pelo meu braço, pingando pelo cotovelo. Um orgasmo não chega aos calcanhares do êxtase daquele momento. É indescritível a sensação que tive enquanto a minha mão rasgava freneticamente o seu interior e os seus olhos ficavam eternamente fixos nos meus. Era como se algo dela se estivesse a entranhar em mim. Foi a melhor sensação da minha vida.
Não sei quanto tempo passei em deleite, ensopado em sangue, sentado junto ao cadáver. Já não estava preocupado com absolutamente nada. Senti-me realizado e o facto de a minha existência poder estar em risco de terminar já não me preocupava absolutamente nada. Nunca me tinha sentido tão tranquilo. Quando a porta se abriu limitei-me a levantar calmamente o olhar. A sua expressão era um misto de satisfação e orgulho. Sorriu para mim. Eu sorri para ela.
E foi assim.

Dia 7

Ontem revi as minhas parcas opções e preparei-me psicologicamente para o acontecimento.
Nunca o fiz assim, com as minhas próprias mãos. Gosto de coisas elaboradas, e não sou grande adepto de me sujar. Se a quero impressionar, não vai ser com um vulgar pescoço partido que o vou conseguir. Tem que haver sangue, claro. Seria uma boa prova para mim próprio da minha capacidade de enfrentar e ultrapassar estas barreiras mentais, mas não me agrada mesmo nada a ideia. Preferia deixar isso para quando for mais velho, para quando a coisa começar a deixar de ser gratificante, se lá chegar.
Inevitavelmente, vai ser sujo e rude, mas pronto, é uma ocasião especial. Independentemente do que vai acontecer depois, é nítido o que tenho que fazer.
Vamos a isto!

quinta-feira, 3 de março de 2011

Dia 6

Ainda respiro. Para a maioria das pessoas é algo normalíssimo e sobre o qual nem se pensa, mas, na minha situação, respirar significa muito mais. Significa que ela está indecisa. Sei perfeitamente que, caso ela não estivesse a ponderar confiar em mim, eu já não estaria vivo, portanto, é uma excelente notícia! Claro que não me dá qualquer garantia de que vou sair daqui pelo meu pé, mas pelo menos diz-me que existe uma probabilidade disso.
Fui acordado pela tranca da porta. Uma jovem rapariga foi introduzida no local onde estou cativo. Ainda meio trôpego, olhei para a porta apenas para ver fugazmente um relance do seu rosto a espreitar. Um segundo depois a porta estava novamente trancada. Deixei-me estar deitado de costas, fixando um ponto no tecto, a ponderar a situação. Não estava em questão a razão da presença da infeliz, essa era certa, mas percebi que como o faria poderia definir o meu destino. Esta era a minha oportunidade de lhe mostrar que era digno do seu respeito. Tentei avaliar as minhas opções, mas acabei por não conseguir ignorar por mais tempo a histeria da rapariga. Olhei para ela contendo o impulso de lhe partir o pescoço e ela aparentou perceber que a sua salvação não passava por gritar descontroladamente.
Estranhei ter-se acalmado tão depressa, mas a verdade é que me perdi novamente nos meus pensamentos e não sei ao certo quanto tempo terá passado. Perguntou-me porque estava ali, o que estava a acontecer. Disse-lhe calmamente que ia morrer e, em vez da gritaria para a qual me estava já a preparar, ela limitou-se a encolher-se num canto a soluçar, quase inaudível. O soluçar era muito mais fácil de ignorar e fiquei satisfeito por verificar que conseguia pensar e escrever muito melhor.
Considerando as minhas possibilidades, tentei inferir a que me proporcionaria um maior respeito da parte dela, mas questionei-me imediatamente se seria a abordagem certa. Deveria ser aquilo que achava que ela desejava que eu fosse? Não. Por muito graves que fossem as consequências a única coisa certa a fazer seria ser genuíno. Não queria o respeito dela por algo que eu não faria sem essa pressão.
Com isto coloca-se um problema. Sou uma pessoa meticulosa, alguns diriam até compulsiva. Sigo os meus protocolos quase religiosamente e não estou nada habituado a, qual McGyver, trabalhar com o que tenho à mão. E o que tenho à mão é mesmo muito pouco.
Decidi que não vou fazer nada hoje. Muitas vezes é quando a nossa cabeça repousa na almofada, almofada esta que, neste caso, é completamente metafórica, que as coisas parecem mais claras. 

quarta-feira, 2 de março de 2011

Dia 5 - Hoje

E eis que o meu relato chega ao dia presente. Interessa referir que, neste momento, tenho um doloroso hematoma na cabeça e estou trancado numa cave em sítio incerto. Só estou a ter a possibilidade de escrever isto porque ela, não sei se por condescendência ou por algum prazer cruel, me deixou papel e uma caneta.
Sinto-me um atrasado mental por achar que o cuidado dela era devido a inexperiência. Eu é que sou o inexperiente! Ela teve sempre a situação perfeitamente controlada e eu é que me tornei descuidado. Eu é que tenho que aprender com ela e não o contrário.
Mas… Alguma coisa ela há-de ter visto em mim, já que, ao contrário do que tenho a certeza ter acontecido com os anteriores hóspedes desta divisão (são visíveis os vestígios nas paredes, com vários graus de envelhecimento. É curioso como o sangue vai esverdeando), me foi concedida não só a possibilidade de deixar este testemunho, como o privilégio de ainda ter batimento cardíaco. Dadas as circunstâncias, tenho que me satisfazer com a situação. E tenho ainda a esperança de conseguir alterar o meu fado.
Já escrevi e destruí várias cartas para ela. Concluí que não vai ser com palavras que vou conseguir o que quero. Vou tentar descontrair e esperar que algo aconteça.

terça-feira, 1 de março de 2011

Dia 4 - Ontem

Dizem os livros que as pessoas como eu são extremamente calculistas e pacientes. Eu não o sou. Não tinha ainda tido muito contacto com esta faceta minha, mas apercebi-me que paciente era algo que eu definitivamente não era. Foi aqui que as coisas começaram mesmo a correr mal.
Esperei que ela saísse e, provavelmente disfarçando muito mal, fingi que foi por acaso que acabámos a caminhar juntos. Não aguentei mais e disse-lhe que sabia. Perguntou-me o que é que eu sabia e foi notória a sua preparação para esta situação. O desconhecimento que demonstrou sobre o assunto pareceu tão genuíno que, se não estivesse tão certo das minhas convicções, teria desistido. Isso teria sido sensato, mas não foi o que fiz. Estupidamente, como quem mergulha de cabeça num local desconhecido, sem saber o que se esconde debaixo da superfície da água, disse-lhe. Disse-lhe que sabia o que significava o brilho que ela tinha nos olhos. Disse-lhe que sabia o que ela era e que não precisava de fingir comigo. Erro crasso. Erro que só percebi quando acordei hoje, depois de, sem sequer pensar, ter ontem aceite o convite para passar o serão na sua casa. Esta é a última coisa que consigo recordar deste dia.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Dia 3

Convidei-a distraidamente para um café. Ela, aparentemente desinteressada, acedeu. Depois de alguns minutos a debater a clima ameno que aquele dia nos apresentava, olhei bem dentro dos seus olhos. Não resisti e perguntei-lhe se já tinha percebido e foi visível o nervosismo que se apoderou dela. Desviou o olhar, o assunto e, com uma péssima desculpa, rapidamente me deixou sozinho na mesa.
Senti-me imbecil por não ter antecipado que ela seria menos experiente que eu. Provavelmente muito menos do que eu supus. Ainda algo insegura e exacerbadamente cuidadosa. Quem sou eu para contestar tal cuidado? É uma postura que eu devia ter sempre mantido e que já perdi, apenas por desleixe e excesso de confiança. Mas o que importa é que não a interpretei correctamente.
Provavelmente pela emoção, coisa ainda estranha para mim, de finalmente ter encontrado alguém com quem me consegui identificar, tornei-me vulnerável. Saí do caminho e dei o flanco. Foi obviamente uma má ideia, mas a verdade é que não consigo matar a réstia de esperança que reside em mim de que, antes de ser demasiado tarde, ela ainda vai perceber que pode confiar em mim. Que, apesar do risco, juntos podemos fazer muito, muito mais do que fazemos isoladamente.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Dia 2

Casualmente, meti conversa. Ela, embora se percebesse a postura defensiva, alinhou. Falámos das trivialidades normais mas eu, sempre que tinha a oportunidade, metia uma indirecta. Nas primeiras houve um quase imperceptível espanto. Era óbvio que, assim como eu, ela nunca se tinha cruzado com ninguém como nós, no entanto, acho que qualquer pessoa que não estivesse a mesmo a tentar analisá-la não perceberia a sua reacção. Arrisco até a dizer que ninguém que não partilhasse o que eu estava cada vez mais certo que partilhávamos perceberia as suas reacções às minhas tiradas chave. Aquelas frases teste que meti no meio da conversa, que me deixaram ainda mais certo que não se tratava apenas da minha imaginação, deram-me confiança. Provavelmente demasiada confiança.
Com um esforço quase sobre-humano, consegui conter-me e não deixar que a conversa saísse do que poderia alegar ser de circunstância. Não por ter dúvidas em relação a ela, não por achar que ela não tinha percebido o que tínhamos em comum, mas apenas porque sabia que tinha que ter muita calma para não a deixar apreensiva. Não queria deitar tudo a perder.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Dia 1

Soube logo na primeira vez que a vi. Aquele brilho nos olhos não me deixou qualquer dúvida. Estou também bastante certo que, pouco depois, quando os nossos olhares se cruzaram, ela soube também.
Por muito que aquela vozinha no fundo da minha mente me dissesse que o melhor era ignorar, não consegui. Sentia algo que nunca tinha sentido antes. Seria aquilo a que chamavam excitação? Ansiedade? Não sei ao certo como lhe chamar, mas sentia algo. Algo novo!
Nunca tinha encontrado ninguém assim e, em relação a ela, não conseguia ter dúvidas. Não sei ao certo porquê, mas tinha a certeza que ela era como eu.
Prometi a mim mesmo que não me precipitaria e que iria tentar minimizar os riscos com planeamento e ponderação. Falhei. Mais à frente haverá pormenores, mas no fundo o que interessa é que falhei redondamente e posso vir a pagar caros os meus erros. Reparo agora que a opção mais segura teria sido a mais simples, não ter feito absolutamente nada. No entanto isto nunca foi propriamente uma opção para mim. Admoesto-me interiormente por me ter deixado levar por uma emoção, mas, ao mesmo tempo desculpo-me porque nunca poderia estar preparado para algo que nunca tinha sentido antes.
Espero que a lição não tenha sido em vão e que ainda consiga usufruir dos ensinamentos que obtive desde este dia.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Estrada

Tranquilamente, interiorizando a atmosfera pura da montanha, o Alfredo dirigiu-se para o seu carro e pôs-se à estrada. Era das coisas de que mais gostava, pôr-se à estrada, provavelmente a que lhe proporcionava uma maior paz interior, uma maior satisfação. Sim, podemos mesmo dizer que não havia nada de que o Alfredo gostasse mais que iniciar uma viagem. Excepção feita, claro, às viagens que o levavam de volta a casa (não estão, naturalmente, sequer a ser consideradas viagens para o emprego).
Embora curto, o caminho era suficientemente tortuoso para proporcionar a esperada sensação de bem-estar. Pachorrento e com um sorriso nos lábios, acendeu um cigarro e, abrindo caminho por entre a escuridão através da serpenteante estrada, deixou-se lentamente absorver pela serra.
Pois que a partir deste dia, nunca mais ninguém viu o Alfredo. O carro foi encontrado à beira da estrada, com a porta aberta, perto de um caminho que se dissipava floresta adentro.
Não demorou muito até a canalha começar a contar que o diabo lhe apareceu ao caminho e o transformou num grande lobo. Espalhou-se tanto a história do Alfredo que há já mesmo quem jure que, em noites de lua cheia, ouve o seu lamento solitário à procura do seu lugar.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Optimismo

Gosto muito das reuniões de antigos colegas de escola. É sempre uma ocasião riquíssima em material de ponderação. Permite-me várias revelações sobre grandes questões da nossa existência, mas, no entanto, deixa-me sempre mais algumas para ponderar até ao encontro seguinte onde, muitas vezes acabo por conseguir que sobre elas incida luz.
Este ano foi muito interessante. O Careca é dos que ainda tem mais cabelo e o Gordo está irreconhecível de magro, isto deixou-me a pensar… 
Concluí também que Deus não existe. É a única explicação para o Galinha, o maior filho da puta da turma, arrogante, egocêntrico e sem um pingo de compaixão por ninguém, nem sequer pela sua avozinha que é um doce de senhora, ser o que está melhor na vida. Mas tenho que ser optimista, pode ser que ande a esconder um tumor no cérebro ou qualquer coisa assim.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Viver

O Gervásio tinha sempre muito medo de ser mal interpretado. Às vezes apetecia-lhe mandar uma daquelas bocas cáusticas, mas tinha medo que o levassem a sério.
Um dia, o Gervásio ponderou que a sua preocupação em não ser mal interpretado o estaria a impedir de ser genuíno, de ser ele próprio.
Pensou que não poderia viver sempre em função dos outros e que se condicionasse sempre as suas acções pelo impacto que teriam nos demais, não seria ele, mas sim uma imagem daquilo que achava que os outros queriam que ele fosse.
Então, o Gervásio decidiu mudar. Começou a mandar todos os amigos para o caralho sempre que lhe apetecia, mesmo aqueles que sabia mais sensíveis e viveu feliz para sempre. Quero dizer... mais ou menos feliz... Houve uns amigos que levaram algumas coisas a mal, talvez tivesse a ver com a sua insegurança, talvez não, mas houve com efeito alguns amigos que decidiram interpretar de má fé a genuinidade do Gervásio e a coisa não correu muito bem, mas, tirando isso, viveu feliz para sempre, minimamente feliz, pelo menos, porque depois há o problema das mulheres. Podemos achar que elas estão horríveis e, engolindo em seco, dizer que estão lindas. Mas achar que estão lindas e, apenas pelo impulso idiota da palhaçada, dizer que estão horríveis, não, isso é erro crasso e energúmeno.
Por coisas deste tipo, o Gervásio nunca conseguiu ter sucesso com as mulheres, mas viveu, vá, mediocremente feliz para sempre, se não contarmos a sua inata capacidade de irritar animais de estimação... Nem as outras questões sociais, mas pronto, viveu... Não foi obviamente para sempre, até porque a saúde o traiu algo cedo, mas pronto, viveu... E isso é que interessa!!

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Comida

– Ó Maria, este jantar hoje está muito fraco. O que é que se passa?

– Não se passa nada. Uns dias está melhor, outros está pior. É só comida. Come, mas é.

– Só comida? Só comida?! Tu não digas isso, por favor. A comida é só a tua matéria-prima. Tu és uma artista, cada prato é uma obra de arte digerível! Tu pegas em coisas vulgares, juntas-lhe técnica, inspiração, criatividade… Alma, juntas-lhe a tua alma e crias algo novo, algo que não existia antes. Crias uma representação comestível daquilo que tu és. Não voltes a dizer que é só comida!

– Obrigado, Manuel, sabe muito bem ouvir isso e saber que dás valor.

– Claro que dou valor!

– Queres mais banha nos teus couratos?

– Sim, se fazes favor.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

REM

Estou no corredor de um edifício familiar, a fumar um cigarro junto de um cinzeiro de chão. Noto que as pessoas que passam olham muito para mim, mas não ligo e continuo a fumar tranquilamente. Quando vou para apagar o cigarro, olho para baixo e reparo que estou nu da cintura parar baixo. Aí começa a ansiedade. Embora quem passa não pareça incomodar-se muito com a minha falta de preparos, começo a ficar extremamente desconfortável e envergonhado. Começo a vaguear pelos corredores à procura, sem sucesso e com o stress a aumentar cada vez mais, de um sítio para me esconder. Nisto, vejo-me ao longe. É uma cópia minha, mas ao contrário de mim, está nu da cintura para cima. Não estranho e instantaneamente penso que se me fundir com ele fico totalmente vestido. Corro direito ao meu clone que, assim que se apercebe de mim, como se soubesse em que é que eu estava a pensar, começa também a correr para mim. No momento do impacto fundimo-nos, mas a coisa não corre como eu esperava e, em vez de ficar todo vestido, fico é completamente nu. O stress transforma-se em pânico quando vejo um grupo de pessoas a aproximar-se. Corro para o outro lado e de repente estou num grande salão e gente aproxima-se de todos os lados. Sem rota de fuga, tenho que limitar-me a assistir, impotente, enquanto as pessoas se aproximam e formam uma roda à minha volta. Assim que a roda se fecha, as pessoas param e ficam ali a olhar para mim, rosto rígido, mas com um brilho no olhos divertido e maquiavélico. Sem saber o que fazer, grito a plenos pulmões para que me deixem passar. Pergunto o que querem de mim, mas ninguém responde. Neste momento olho para cima e apercebo-me que o tecto desapareceu. Consigo ver o céu de dentro do edifício e está a relampejar violentamente. Instantes depois, um olho titânico, com gigantescas pestanas aparece onde antes estava o tecto. Quando enormes lágrimas corrosivas começam a jorrar do olho gigante, abrindo buracos no chão, perigosamente perto de mim, já não estou muito preocupado por estar nu, quero é sair dali. A necessidade de fuga torna-se premente. Reúno todas as minhas forças e, correndo tão depressa quanto consigo, vou direito à roda de pessoas que me cerca. Quando estou prestes a abalroar quem está entre mim e a liberdade, ainda tenho um segundo de satisfação achando que vou conseguir e depois acordo, suado e com o coração aos pulos.

Tem sido assim todas as noites há já quase uma semana. O que é que acha que significa, doutor? Doutor?...

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Odisseia

É muito, muito ténue, a linha que separa a paixão da obsessão. Tão imperceptível que pode fazer, por exemplo dois velhos marinheiros, eternamente apaixonados pelo mar, acabar as suas vidas de formas bem diferentes. Um, por exemplo, a contar aos netos antigas histórias de viagens e aventuras e outro a dar ordens a um contramestre que, se não é imaginário, é estranhamente parecido com um cabide de pé.

Apesar de parecer que, para este último, as coisas não terão corrido tão bem, isto não é um facto provado já que não há indício que seja infeliz com a sua condição. Há também que reconhecer que representa uma história muito mais interessante. Por isso, vamos esquecer a enfadonha história do velho marinheiro que trocou a sua paixão pelo mar pela paixão por uma mulher e que se entretém hoje a contar aos netinhos as suas aventuras, aumentadas num ponto… ou dois, e vou contar-vos a curiosa e rigorosamente verídica história do segundo marinheiro, que ainda hoje e com os pés em terra firme, sente a brisa marítima na face, enquanto navega ao sabor das ondas.

O nome que os pais lhe tinham dado era Maximiliano Salgueiro, mas esse nome foi há muito esquecido. Depois de ter escolhido dedicar ao mar a sua vida, por altura do seu segundo ano sem pisar terra, alguém começou a chamar-lhe Rabil, que é o nome de uma espécie de atum conhecida por percorrer distâncias titânicas ao longo da sua vida. A alcunha caiu como uma luva e pegou quase instantaneamente. Parecia, de facto, que tinha sido inventada para ele, mas a verdade é que quem lha pôs, o Pichelim, só estava à espera que aparecesse alguém novo para lhe chamar Rabil, numa tentativa de arranjar um outro alvo para a jocosidade da tripulação em relação a alcunhas com uma sonoridade semelhante a partes do corpo. Não resultou. Diria mais, não só não resultou, como, não sei se por uma das conhecidas ironias do destino, passou a ser mais gozado que o Sarda. O Rabil ficou tão satisfeito por finalmente ter um nome que tinha alguma coisa a ver com ele que renunciou completamente o seu nome de baptismo de água benta e fez questão que toda a gente passasse a conhecê-lo apenas pelo seu nome de baptismo de água salgada, o momento do seu renascimento.

A história da sua troca da vida terrestre pelo chamamento do mar será semelhante a qualquer outra: um rapaz quer sair do marasmo, implora ao comandante de um navio para ser contratado por alguma comida e inicia uma estranha e paradoxal aventura, que consegue conjugar a liberdade do vasto mar com a prisão e a semi-escravidão de um navio. Mas, só pode ter sido o destino que o fez calhar naquela embarcação em particular, a Tétis, referida por todos sempre no feminino não só por ter o nome de uma Nereida, mas também porque era unânime na tripulação que a embarcação tinha definitivamente uma alma feminina. Oficialmente era um navio mercante, mas o seu comandante não gostava de ter rotas demasiado rígidas, pelo que no fundo existiam a vaguear pelos mares, pagando o rum e as conservas com a pilhagem do ocasional navio que encontravam à deriva por a tripulação ter toda morrido de alguma epidemia ou de algum incauto barco que tivesse o infortúnio de passar por perto e não desse muito trabalho nem fizesse muito alarido atacar.

Era o navio perfeito para o Rabil e ele sentiu-o. Não sei se já tinha esse plano ou se foi algo que aconteceu naturalmente, a verdade é que, desde que embarcou na Tétis mais ninguém o viu em terra. Ficava sempre na embarcação quando esta aportava. Dizia que lhe causava enjoos estar em terra firme, que não havia lá nada que lhe interessasse, que se despachassem porque estavam a perder os bons ventos ou as boas correntes ou o que fosse. O que ele queria era navegar. Esta particularidade começou a torná-lo conhecido e rapidamente captou a atenção do comandante, também ele um apaixonado/obcecado pelo mar, e começaram a conversar cada vez mais. O jovem Rabil, de olhos arregalados, sorvia as histórias do comandante como se fossem mel e este, satisfeito por ter alguém com quem as partilhar, enfatizava-as com entusiasmo. Havia, no entanto, outro motivo. Um motivo oculto mas inofensivo que aproximava o comandante do Rabil: curiosidade. Intrigava-o que o rapaz não quisesse ir a terra. Até a ele próprio, que era provavelmente a pessoa mais ligada ao mar que conhecia, lhe sabia bem pisar terra firme depois de meses no mar. Mais não fosse para visitar um bordel, onde entre outras coisas aliciantes, podia pousar tranquilamente a caneca na mesa sem receio que aquela deslizasse. Passado pouco tempo, o comandante admitiu para si próprio que a única explicação seria que o Rabil tinha uma alma feita de mar. Que era algo como a encarnação do espírito de uma qualquer divindade marítima. Era pelo menos indiscutível que tinha nascido para aquilo, para navegar. Era, sem dúvida, mais apaixonado pelo mar que qualquer outra pessoa e passou a respeitá-lo ainda mais por isso.

Com o passar dos anos, a sua relação tornou-se muito próxima da de pai e filho e o Rabil começou a ser declaradamente o protegido do comandante. Tirando algumas excepções que, por serem excepções não conseguiram influenciar o ambiente geral da tripulação, todos aprovaram e compreenderam o favoritismo. Era notório que aqueles dois tinham mais em comum do que quaisquer outras duas pessoas naquele navio. Além disso, o carisma e sentido de humor naturais do Rabil faziam com que fosse difícil não gostar dele e toda a gente percebia o bem que fazia à moral geral do grupo que, naturalmente, é um ponto de extrema importância quando se está preso numa embarcação e se tem forçosamente que trabalhar em equipa.

Os anos foram passando e a vida do mar, que começava a marcar com suaves linhas os cantos dos olhos do jovem Rabil, foi ficando cada vez mais profundamente gravada nos sulcos do rosto do velho comandante.

– Sabes? – Disse-lhe o comandante uma noite, depois de uma generosa quantidade de rum ingerida. – Tenho andado a ouvir uma sereia a chamar-me. Ando a pensar que se calhar está na altura de ir ter com ela.

– Uma sereia? Também quero! – Respondeu o Rabil ebriamente divertido. Ainda não aguentava o rum como o velho.

Quando no fim da frase, ao olhar para o seu mentor, se apercebeu do seu ar sério, endireitou-se muito depressa na cadeira, como se num instante lhe tivesse passado a bebedeira.

– O que quer dizer com isso? – Perguntou o Rabil com a expressão mais grave que alguém alguma vez viu no seu rosto.

– Sabes como esta vida estraga. Estou a desmanchar-me por dentro. – Disse o comandante com um suspiro. – Tive a vida que quis ter e estou satisfeito com isso, mas não quero ir morrer a terra. E de que serve a um navio um comandante que já não consegue comandar?

Era verdade que qualquer pessoa que visse o comandante se questionaria como estaria ainda vivo, já que tinha a aparência do cadáver de um afogado, deixado ficar à deriva nas marés, inchado e purulento. A sua boca, se pudesse ter sido preservada até aos nossos dias, proporcionaria anos de estudo a um departamento de investigação do escorbuto. No entanto, para o Rabil e para o resto da tripulação era o seu comandante, simplesmente o seu comandante. Todos assistiram à sua lenta decadência de forma gradual. As suas mentes tiveram a possibilidade de se adaptar à mudança de forma natural sem que isso causasse o choque normal que qualquer pessoa teria ao ver o velho pela primeira vez naquele estado.

– Não estou a gostar nada desta conversa… – Disse, apreensivo, o Rabil.

– Tu serás o novo comandante da Tétis! – Exclamou, tentando dar alguma solenidade à frase.

– A Tétis tem um comandante e vai tê-lo por muito tempo.

– Compreende, meu rapaz, isto não é uma escolha minha. Não tenho outra opção.

O Rabil limitou-se a fitar o velho, a encaixar a dura realidade.

– E não é tarde nem é cedo! – Disse o velho comandante antes de emborcar de uma vez o restante conteúdo da garrafa.

Levantou-se sofridamente e, cambaleante, dirigiu-se à porta do camarote levando o Rabil por um braço.

– Animais, a partir deste momento, este é o vosso novo comandante! – Disse com a voz arrastada da bebedeira. Se alguém tem alguma coisa contra, que se chegue à frente para que eu o possa enforcar na retranca com uma malagueta enfiada no cu.

Ninguém se chegou à frente. Era mais que óbvio que o monte de pústulas com fedor a álcool e fluidos corporais em que o comandante se tinha tornado não era capaz de enforcar um rato, muito menos tão bêbedo como estava que, se não estivesse ainda agarrado ao braço do Rabil, já teria certamente caído. Além disso, toda a gente sabia, desde o comandante até ao corcunda coxo e imbecil que conseguiu convencer o comandante a “salvá-lo” de uma vida de mendigagem alegando que dava jeito ter alguém que limpasse o vómito do convés, originando a criação do posto de limpador de vómito até aí inexistente na tripulação (parecia estúpido, mas a verdade é que já ninguém tinha que se dar ao trabalho de ir a correr vomitar borda fora e podia apenas deixar-se tranquilamente adormecer na poça da sua imundice que o Corcoxo, alcunha que ganhou nos primeiros segundos na embarcação, até se dava ao requinte de limpar os pedaços que ficassem na barba com uma espinha de badejo que tinha adaptado para o efeito) que seria impossível impor à tripulação da Tétis um comandante que não fosse respeitado para tal, por muitos enforcamentos e inserções de objectos em orifícios que ocorressem (e as malaguetas, além de não chegarem para todos, eram precisas para amarrar os cabos). Apesar de todo o teatro, era claro para todos que a única razão pela qual ninguém se chegou à frente era porque toda a tripulação sabia que o Rabil era a única pessoa que poderia substituir o seu velho comandante.

- Foi uma honra navegar com todos vocês, menos contigo Corcoxo, obviamente. Não deixam de ser um punhado de vermes, mas são o punhado de vermes com mais espírito que conheci em toda a minha vida. Amanhã podes ocupar o meu camarote. – Terminou, dirigindo-se ao Rabil e voltou para o seu camarote agarrado aos barris e ao que mais o conseguisse ajudar a manter-se de pé.

No dia seguinte, quando o Rabil entrou no seu novo camarote ficou literalmente de queixo caído. Tudo estava limpo e arrumado e não havia vestígios do comandante. Nunca mais seria visto. O seu misterioso desaparecimento criou uma espécie de mito de que o comandante teria feito um pacto com Nereu e dedicado a sua alma ao mar. Curiosamente, de uma forma natural, isto deu à tripulação a sensação de que o seu navio estava protegido por uma qualquer força divina. O mito ficou tão enraizado que, para se entreter ao serão com algo mais que o rum, a tripulação inventava histórias sobre a nova vida do seu antigo comandante como uma excitada semidivindade a perseguir lascivamente as oceânides. As suas aventuras imaginárias, particularmente as que envolviam Admete e Clítia, ficaram gravadas na atmosfera daquela embarcação e foram contadas por muitos, muitos anos.

Foi assim que o Rabil herdou o comando da Tétis, muito perto do seu décimo sétimo ano sem pisar terra. Embora bastante menos agressivo que o seu antecessor, era também um comandante justo e empático com a sua tripulação, mas não se enganem, não era uma pessoa com quem, como diria a minha avó, se fizesse farinha. Ainda hoje se deve contar a história da viagem em que um infeliz não gostou de ter sido repreendido e tentou aliciar a tripulação a amotinar-se. Os seus testículos estiveram meses pregados no mastro até terem sido comidos pelas gaivotas quando a embarcação se aproximou de terra.

O espírito a bordo da Tétis manteve-se por muitos anos e o Rabil nunca se sentiu infeliz por ter trocado a sua família por um punhado de biltres fedorentos e mal-educados nem por ter trocado os seus amigos pelas ondas. Nunca se arrependeu de conhecer mais correntes que pessoas nem de se ter deitado com mais ventos que mulheres. A única diferença é que passavam cada vez menos tempo aportados e, quando chegou ao ponto deste tempo se resumir ao apenas necessário para recarregar o navio com mantimentos e rum, a tripulação começou a ficar descontente com a situação. Conforme os anos se transformavam em décadas, a cada aportada da Tétis a tripulação diminuía um pouco e foi com o coração apertado que, na última vez que a Tétis foi vista num porto, os últimos resistentes, impotentes para convencer o Rabil a ir a terra algum tempo e tentar refazer a tripulação, ficaram a vê-la afastar-se lentamente, tripulada apenas pelo seu comandante.

Diz-se que passaram mais de trinta anos até um navio militar encontrar a Tétis em alto mar, aparentemente à deriva e descobrir nela um velho tresloucado e esquálido a dar ordens a fantasmas. À força e não sem alguma insensibilidade, lá conseguiram separar o desgastado Rabil da sua velha Tétis, apenas para o fechar em terra à espera do fim. Sim, conseguiram tirar o Rabil do mar, mas o meu consolo é saber que nunca conseguirão tirar o mar do Rabil. E, em verdade vos digo que, além do da perda do seu mentor, não há relato de mais nenhum momento de infelicidade seu desde que pisou o convés do navio/mulher que viria a amar. A pobre Tétis certamente já só existe na mente distorcida do seu eterno comandante, mas isso não me causa qualquer espécie de comiseração. Tenho cá para mim que vão ser felizes para sempre.