sexta-feira, 30 de setembro de 2005

Zhen-Shan-Ren

É curioso andar toda a gente à procura da fórmula da felicidade quando esta foi já descoberta há tantos séculos e é tão desconcertantemente simples. É curioso como é possível procurar tanto tempo uma coisa que está bem diante dos nossos olhos. Zhen-Shan-Ren disse o iluminado, e hoje, passados mais de dois milénios de evolução estamos cada vez mais longe… ou talvez não. Disse ainda que, mesmo não parecendo, esta é a natureza do Homem. Se é ou não, não sei; mas se não é devia ser! Zhen significa algo como Verdade ou Honestidade, Shan será algo como Compaixão ou Benevolência e Ren algo como Tolerância ou Auto-controlo. Para quê complicar? Está aqui tudo! Três palavras apenas são suficientes para escrever a fórmula que permitiria que toda a humanidade vivesse em harmonia. Honestidade, benevolência e tolerância, parece tão fácil que até se torna cómico, mas não se enganem, basta tentarem não falhar nos três pontos durante um dia para se compreender a dificuldade, dificuldade esta provocada pelos nossos instintos mais básicos, mas achavam que podia ser fácil? Claro que não podia ser fácil! Mas é possível! É um desafio e acima de tudo é algo que se treina, que se interioriza, enquanto numa fase inicial temos que reagir à posteriori tentando anular e combater os sentimentos que nos afastam do caminho, depois de algum tempo esses sentimentos começam já a não emergir e sentimos que realmente passámos mais uma etapa no caminho a percorrer para nos tornarmos pessoas melhores, e quem sabe a primeira etapa para a iluminação, porque o nirvana está ao alcance de todos!
Zhen-Shan-Ren people!

segunda-feira, 26 de setembro de 2005

Vómitos

Estas autárquicas dão-me vómitos! Cerca de 70 candidatos arguidos em processos crime??? Eu sei que eles já lá estavam, só que dantes não se sabia, mas é preciso não ter nenhuma vergonha na cara para, agora que se sabe, fingir que não aconteceu nada e recandidatar-se. E em vários dos casos ganhar!
Dá-me vómitos ouvir o povo dizer coisas do tipo “Se roubou foi por Felgueiras!” Mas esta gente anda doida??? Então mas afinal roubar é bom desde que se partilhe? Vómitos, vómitos!
Eu bem tento ver a coisa pelo lado positivo, pelo menos agora alguns corruptos começam a pagar pelos seus crimes, mas duvido que não fiquem convencidos que compensou, muito mais depois de verificarem que não deixam de ser eleitos por serem ladrões.
Eu sei que eles ainda não foram a julgamento e que podem até ser inocentes, mas pelo menos para aqueles casos mais mediáticos tenho sérias duvidas que isso aconteça. Senhor Valentim, tenha vergonha; Senhor Isaltino tire essa carinha de inocente e Dona Fátima, custa-me a compreender como uma pessoa que não tem o mínimo respeito pelas leis instituídas (que até podem nem ser as melhores, mas quem não consegue fugir para o Brasil tem que as cumprir) consegue ter legitimidade para se candidatar a uma câmara, e mais, ganhar! Vómitos, vómitos!!!

terça-feira, 20 de setembro de 2005

Gosto.

Já todos nos encontrámos naquela incómoda situação, á beira de uma constipação, em que nos falta o paladar e tudo nos sabe ao mesmo, certo?
É comum referir-mo-nos a esse estado de sem sabor como, "... não tenho gosto.", ou "... não tenho gosto nenhum." Mas será que não se tem mesmo gosto, ou não se tem paladar? Já estou a imaginar como seria se realmente não tivessemos mesmo nenhum gosto, quando nos constipassemos. Já estou a imaginar, em pleno inverno, o pessoal com altas constipações a chegar ao trabalho, sim trabalho, pois hoje são poucos os que se podem gabar de têr emprego, com calças verde alface, casaco castanho, camisa azul choque, e sapatinho vermelho. Ha ha!! Que grande fartote que seria. "- Oh, Silva! Não se esqueça que amanhã temos reunião com o director.", E o bom do Silva constipava-se logo nesse dia, aparecendo no escritório com um fatinho lilás, camisinha verde e sapatinho amarelo biqueira larga. Ha ha!! Já imaginaram o que era o bom do Brad Pitt aparecer na entrega dos Oscares, com a sua nova namorada, uma hipie estravagante com meias ás riscas azuis e amarelas, sainha verde, camisinha castanha e cabelo violeta,( há quem vista assim. Será que estão sempre constipados? ), enquanto ele se apresentava de blazer amarelo, camisa violeta, a condizer com o cabelo da dita, lacinho vermelho, e sapatinho azul céu? Ha ha!! Esperemos que a falta de gosto se resuma apenas ao facto de não termos paladar. Ha ha!!

Agradecimentos á minha Princesa por ter sido ela a dár-me o mote desta tertúlia.
Beijos

sexta-feira, 16 de setembro de 2005

É assim!

É assim, não admito ir na faixa da esquerda a 120 e ter um mânfio atrás de mim a mandar faroladas feito parvo! Então se eu vou à velocidade máxima permitida, o que é que ele quer? Se não pode ir mais depressa que aquilo porque é que me está a chatear?
É que, vendo bem as coisas, eu até lhe estou a fazer um favor, ainda se habilitava a apanhar uma multa de excesso de velocidade, eu evito isso e é assim que ele me agradece... Há gajos que deviam ser proibídos de tirar a carta!

quinta-feira, 15 de setembro de 2005

Amigos?

Entristece-me saber que possam pensar assim!
Ecurece-me o ser, a alma é-me arrancada do corpo, pela estranheza dos que me rodeiam. Por saber que aqueles que um dia considerei amigos, nada mais são do que estranhos, que nada sabem de mim.
Muitos há que me chamam de egoista, que só penso em mim, primeiro eu, sempre eu, e penso:
" Egoista eu? Como posso ser egoista se me encontro rodeado de estranhos?" Estranhos de quem nada sei, e que nada sabem de mim.
Entristece-me saber que possam pensar assim!

segunda-feira, 12 de setembro de 2005

Armando

Já todos tivemos a sensação de estarmos a ser observados, certo?Até aí nada de novo, não é nada de transcendental.
Todos os dias observa-mos e somos observados por centenas de pessoas, sem nos apercebermos.
Mas há alturas em que temos a nítida sensação de, não só de estarmos a ser observados, como também de que não estamos sozinhos.
Armando é uma pessoa normal, como qualquer pessoa normal. Gosta de ler, ir ao cinema, de estar com os amigos. Enfim, faz coisas normais de pessoas normais. No entanto, Armando, tem uma particularidade, que embora não o afastando de ser uma pessoa normal, dá-lhe uma certa individualidade. Armando tem uma predilecção quase mórbida pelo sobrenatural, pelo terror, pelo suspense, com a particularidade de realmente acreditar que não andamos sozinhos neste mundo.
Armando é casado. E embora não exista nenhuma discrepância de conjugação de horários, com a mulher, dias há, em que essas discrepâncias acontecem.
Foi o caso de um dia destes, em que a esposa ficou de fazer um horário que implicaria entrar ao serviço ás 8:30. Como tal teria de se levantar ás 6:30, para cumprir tal exigência.
O horário de Armando, bastante mais flexível, permite-lhe levantar-se apenas ás 8:00, de modo que quando as esposa se levantou Armando continuou deitado na cama, embora já não estivesse completamente adormecido. Armando apercebia-se, muito ao longe, de todos os os passos da mulher.
O estremecer do colchão quando esta se levantou, os passos até à porta do quarto, o abrir da e fechar da porta, o caminhar até à cozinha, o acender do esquentador, o abrir o roupeiro do corredor, o caminhar de volta para a casa de banho. Armando, lá muito ao longe, conseguia ver todo percurso realizado pela esposa.
Antes de saírem de casa, Armando e a mulher têm por hábito despedirem-se um do outro com um beijo, quer o outro esteja a dormir ou não, e esse dia não foi excepção. Armando, mais uma vez ouviu a porta do quarto abrir-se, e o aproximar da mulher da cama. Sentiu a pressão no colchão quando esta pousou o joelho sobre o mesmo de modo a poder-se esticar e beijar Armando. Armando, sentiu o aproximar da esposa seguido do calor dos seus lábios no rosto.
Exprimiu um breve sorriso de satisfação, e mais uma vez sentiu-a afastar-se e fechar a porta do quarto. Ouviu as chaves a rodarem na fechadura da porta da rua, e o fechar da mesma.
Armando, moveu-se, virou-se de barriga para cima, esticou os braços, e assim ficou esperando a sua hora de levantar.
Aos poucos Armando começou a sentir aquele entorpecer que sentimos adormecemos, e deixou-se levar pelo mesmo. Afinal ainda faltava uma meia hora para se levantar.
Lá longe ouvia os passos da esposa pela casa na sua azáfama matinal. Ouvia-a na cozinha, o caminhar para a casa de banho, o abrir do roupeiro do corredor. Armando lá muito ao longe apercebia-se de todos os movimentos da esposa. Todos os movimentos da esposa? Como, se esta já tinha saído? Armando fez um esforço e conseguiu sair do torpor em que se encontrava, embora tivesse a estranha sensação de não se puder mover e tão pouco abrir os olhos. Deixou-se estar quieto e aprofundou os sentidos. Continuava a sentir a presença da esposa em casa, mas tal não podia ser, pois esta já tinha saído. Ter-se ia esquecido de algo? Armando fez um esforço enorme para tentar perceber o que se estava a passar, mas sem êxito. Continuava a não se conseguir mover, nem abrir os olhos. Quando tentou chamar pela mulher, nada saiu da sua boca. Nem o mais pequeno som. De repente sentiu que a porta do quarto se abria. Armando ficou um pouco apreensivo, mas estranhamente mantinha-se calmo, embora o seu coração tivesse disparado violentamente. Armando sentiu uma aproximação da cama, sentiu a pressão no colchão, sentiu um aproximar de si, e mesmo antes de sentir o calor do beijo, que não podia ser da sua esposa, Armando, num esforço imenso, conseguiu que um som gutural sai-se da sua boca, simultaneamente que esticava os braços no sentido de evitar o contacto com o que quer ali se encontrasse.
A sensação da presença desapareceu, Armando manteve-se imóvel por alguns segundos até que abriu os olhos. Lentamente virou a cabeça para os dois lados, pois a cama encontrava-se a meio do quarto, mas nada viu de invulgar. A porta estava fechada, e o quarto encontrava-se sob a penumbra habitual da manhã. Lentamente, Armando, levantou-se, abriu as cortinas, levantou os estores, e imediatamente o quarto foi invadido por uma luz imensa. O dia estava limpo, e o sol brilhava com força. Armando deixou-se ficar ali alguns segundos, sentindo o calor do sol no rosto.
Alguns dias mais tarde, Armando, deitado na cama, depois de a esposa ter sido, apercebeu-se que o percurso matinal do seu vizinho, era em tudo idêntico ao da sua esposa. Sorriu.
Satisfeito por ter encontrado uma explicação, Armando, virou-se de barriga para cima, esticou os braços e assim ficou esperando a sua hora de levantar.

terça-feira, 6 de setembro de 2005

A Pessoa

A pessoa sempre tinha sonhado ser actor, não o era, mas também nunca tinha feito nada por isso. Era daqueles sonhos que não existem para ser concretizados, mas sim para serem unicamente sonhados, e a pessoa estava satisfeita com isso, além do mais, era para si impensável submeter-se a castings e essas coisas. No entanto, um dia pensou que seria interessante concretizar um pouco do seu sonho, mas na vida real, ser um actor da vida real!
Entusiasmado com a ideia de ser outro, tinha apenas que criar a sua personagem e encarná-la. Assim que começou a pensar nisto decidiu logo que a personagem não iria partilhar a exagerada timidez da pessoa, seria audaz, não teria qualquer problema em falar alto em sítios cheios de gente. A pessoa divertia-se bastante fingindo-se de burro e achou que seria divertido embrutecer a personagem, teria no entanto que tentar não exagerar de forma a manter a credibilidade. Por outro lado, havia traços da sua personalidade que achou bem incluir também na personagem, como o seu sagaz sentido de humor, que tentaria que não parecesse inteligente e a sua simpatia e boa disposição que tentaria exacerbar ao máximo. Pensou também em criar gostos diferentes para a personagem, mas achou que seria complicado e custoso de suportar pelo que decidiu deixar a questão dos gostos pessoais em aberto e nos momentos chave decidiria se a personagem iria partilhar a opinião da pessoa ou se, pelo contrário, inventaria no momento uma opinião para a personagem. Pensou até que o que já tinha era suficiente para iniciar a representação e que poderia depois ir aprofundando a personagem com o tempo.
Fechou os olhos e treinou a metamorfose, o momento em que deixava de ser a pessoa e se tornava a personagem, e depois de interiorizar o que imaginava ser algo como uma nova máscara, saiu para beber um café e testar o seu projecto. Embora não tivesse alterado nada no seu aspecto físico, tinha conseguido interiorizar a personagem de tal forma que se sentia realmente diferente, tinha até a estranha sensação de que se se visse ao espelho conseguiria ver a personagem e não a pessoa, mas isto era obviamente absurdo. Entrou no café, pediu o respectivo, num volume que não deixou dúvidas que todos os presentes tinham ouvido e, pensando que a personagem não era de estar ali no seu canto calada e quieta, disparou um “Então e o nosso Benfica?” ao empregado e ficou muito satisfeito por verificar que não só tinha conseguido despoletar uma efusiva conversa sobre futebol, como conseguiu participar nela activamente, e, naturalmente, no tom de voz adequado ao tema. Saiu com um ar triunfante, tinha tido a prova que precisava, iria conseguir levar a sua ideia a cabo!
No dia seguinte a pessoa levantou-se, vestiu a sua personagem e, deveras bem disposto, foi trabalhar. Tinha consciência que dificilmente alguém iria estranhar sobremaneira a mudança, pois, embora já lá trabalhasse há vários meses, não se podia dizer que tivesse uma relação pessoal com alguém, nunca tinha passado da conversa de circunstância e nas situações em que a isso era obrigado; não é que fosse anti-social, simplesmente era uma pessoa que tinha reservas em dar-se a conhecer, além de que o repugnava manter conversas fúteis, em particular as que eram relacionadas com as condições climatéricas. Da mesma forma, embora parecesse que não tinha amigos, tinha-os, mas era sempre uma relação longínqua, um telefonema ou um jantar de vez em quando para manter o contacto e voltava à sua vida solitária. Assim, o máximo que poderia acontecer era as pessoas acharem-no mais comunicativo e seguro de si, mas não seria o suficiente para desconfiarem que a pessoa estava apenas a representar um papel.
Entrou no edifício cumprimentando as pessoas da recepção, mesmo não estando ninguém a olhar para ele, coisa que para a pessoa era suficiente para entrar despercebido, foi desejando bom-dia a toda a gente por quem passou e ao chegar ao seu lugar emitiu um vigoroso e afável cumprimento a todas as pessoas da sala. Reparou que houve quem fizesse uma expressão de estranheza, mas com o passar dos dias toda a gente passou a considerar normal o seu comportamento. Uma das coisas que o deixava orgulhoso dos seus dotes de actor era o facto de ter deixado de usar o telefone para falar com pessoas na mesma sala, passando a falar sem problemas com volume suficiente para ser ouvido do outro lado da sala, que não era pequena, coisa que só a personagem poderia fazer, já que a timidez da pessoa a sempre tinha impedido.
Com o tempo a personagem ganhou forma, adensou-se, e com o passar das semanas a pessoa começou a perceber que se sentia curiosamente confortável representando a sua personagem, era compreensível que a autoconfiança e a presença da personagem tivessem melhorado bastante a sua relação com os outros, mas a verdade é que o conforto que sentia ia muito além disso. Sentia-se menos vulnerável pelo facto de não se estar a expor, não estava a dar a conhecer o seu verdadeiro eu e assim não tinha nada a temer, as opiniões e críticas que eventualmente lhe fizessem seriam à personagem e não à pessoa e assim a pessoa estava completamente protegida dos julgamentos, muitas vezes sumários, que o ser humano tem tendência a fazer em relação aos outros. Era como se a pessoa estivesse invulnerável dentro de uma carapaça que era a personagem. Até o facto de ter decidido que a personagem seria pouco inteligente funcionou como uma óptima protecção, bastaram algumas imbecilidades bem colocadas para toda a gente passar a não esperar nem exigir dele nada de complexo e, depois de ter conseguido vencer o desconforto que sentia ao verificar que mais alguém ficou a pensar que a pessoa era um idiota, mesmo apesar de não gostar muito de aturar o paternalismo de alguns, passou a ser infinitamente mais fácil impressionar os outros. Bastava-lhe dizer ou compreender algo que fosse pouco mais que básico para que achassem que estava a fazer um óptimo trabalho!
A pessoa sentia-se realmente abismada em como o facto de estar a representar um néscio ter facilitado tanto a sua vida. Constatou que efectivamente a inteligência é inversamente proporcional à felicidade e teve mesmo momentos em que desejou ser realmente burro. Ponderava se a humanidade teria mesmo ganho alguma coisa com a evolução da inteligência humana, podíamos não ter o conforto da vida moderna, mas cada vez acreditava mais que seríamos todos muito mais felizes. No entanto, dado que não tencionava submeter-se a nenhuma intervenção cirúrgica de forma a diminuir a sua inteligência, que certamente algum cirurgião cerebral experimentalista aceitaria executar, nem tampouco introduzir, pelo nariz, um lápis de cera no crânio; afastava estes pensamentos dizendo para si próprio que já que tínhamos evoluído até aqui, ao ponto de sermos infelizes, não valeria a pena dar passos para trás, só nos restaria continuar a evoluir, tentar evoluir para além da infelicidade.
Os meses passaram e a personagem estava cada vez mais cravada na pessoa, já não requeria qualquer esforço representá-la, e a pessoa continuava confortavelmente acomodada na sua redoma impenetrável, como quem observa o mundo de fora e a cada momento que passava a personagem aproximava-se tanto do mundo como a pessoa se afastava, e para esta tudo estava bem. Mas um dia alguém telefonou, era um amigo, alguém quem considerava realmente um amigo, com quem tinha uma relação sem exigências que conseguia manter sem se sentir obrigado a nada, mas que como tal, tinha períodos de afastamento. Ficou contente com o telefonema e atendeu bem-disposto. Mas a alguns minutos da conversa o amigo achou a pessoa estranha, e embora não falassem há já bastante tempo, a relação entre os dois nunca se tinha alterado, aliás, o facto de, mesmo após longos períodos sem contacto a relação se manter inalterada era uma coisa que estimava muito na sua amizade com a pessoa, era uma coisa que lhe dava segurança, pois sabia que quando algum deles tomasse a iniciativa de dizer qualquer coisa ao outro, que iriam recomeçar de onde tinham parado e o tempo decorrido não os faria sentirem-se menos confortáveis um com o outro. Mas desta vez havia algo errado, a pessoa parecia-lhe realmente diferente, lembrou-se da altura em que andavam muito juntos e que se divertiam desmesuradamente com a pessoa a fazer-se de estúpida para os empregados dos cafés ou restaurantes, e era impressionante a resistência que eles tinham a achar que estavam a ser gozados, em pontos em que o amigo assistia já incrédulo, eles continuavam cheios de paciência, pensando sempre que a pessoa era realmente bastante limitada e, embora talvez se questionassem se não seria uma farsa, a verdade é que a coisa nunca correu mal. Mas a pessoa nunca tinha feito isso com o amigo, o amigo achava até que era um dos poucos felizardos que consegui conhecer realmente a pessoa, mas este telefonema fê-lo duvidar de tudo isto. Perguntou-lhe se estava mesmo tudo bem, se se sentia bem, que o achava diferente. A pessoa tinha já a boca aberta para responder que estava tudo óptimo quando se apercebeu que, sem que tivesse qualquer controle sobre isso e não o tendo decidido fazer, quem falava ao telefone com o seu amigo não era a pessoa, era a sua personagem, já tão intrincada em si que estava a ter sérias dificuldades em impedir que ela emergisse. Conseguiu responder que talvez não estivesse tudo bem, que lhe explicaria tudo mas não podia ser naquele momento, precisava de pensar e ligar-lhe-ia mais tarde. Desligou o telefone e encostou-se a reflectir sobre o que estava a acontecer. Não era preciso ser um génio para perceber, tinha encarnado a personagem de uma forma tão intensa e durante tanto tempo, durante o qual, como não tinha tido contactos pessoais, raramente foi a pessoa. Nunca pensou que tal podia acontecer, mas a verdade é que estava tão confortavelmente habituado a ser a personagem que se tinha esquecido de ser a pessoa! Uma sensação de pânico começou a apoderar-se dele à medida que tomava consciência de que já não tinha a certeza de se conhecer a si próprio. Estava literalmente a tornar-se a personagem e percebeu que já não conseguia ser naturalmente a pessoa outra vez, tinha já até dúvidas sobre se um traço de personalidade pertenceria à pessoa ou à personagem. Enquanto o pânico aumentava teve a certeza que, mesmo com toda a segurança que lhe oferecia, não queria tornar-se a personagem, não queria que a personagem se tornasse uma pessoa, a sua pessoa, queria ser a pessoa que era dantes. Aliás, se a personagem passasse a ser uma pessoa a segurança da carapaça desapareceria. Por uma fracção de segundo pensou que poderia criar uma nova personagem e continuar o ciclo, mas percebeu que se sentia vazio, sentia que tinha deixado de ser uma pessoa dentro da redoma de uma personagem para passar a ser apenas a redoma, uma casca vazia, e que a única maneira de anular o vazio que sentia era voltar a ser a pessoa, a pessoa que era na realidade. Com o pânico já algo controlado consegui pensar claramente e aceitou que dada a confusão de que sofria, seria muito difícil conseguir sozinho ser a pessoa outra vez. Cumprindo o prometido, telefonou ao amigo dizendo que gostava que se encontrassem porque preferia contar-lhe pessoalmente o que se passava e que achava que iria precisar da sua ajuda. O amigo, identificando medo na voz da pessoa propôs que jantassem juntos nesse dia e poderiam falar à vontade. A personagem acedeu e durante o jantar, num esforço para ser a pessoa contou ao amigo tudo desde o princípio. Pediu ao amigo para passar algum tempo com ele e o ajudasse a identificar os momentos e atitudes em que estava a ser a personagem e os em que estava a ser a pessoa, ao que o amigo acedeu.
Foi um trabalho árduo a princípio, mas com o amigo a servir de âncora à realidade, a pessoa começou a conseguir impor-se à personagem, de tal forma que começou de novo a ganhar coragem para, quando saíam, se divertir com o amigo, como outrora, a representar pequenos papeis, no entanto nunca deixou de se questionar se não teria algo da pessoa desaparecido para sempre. A verdade é que a pessoa sonhava em ser actor, era daqueles sonhos que não existem para ser concretizados, mas sim para serem unicamente sonhados.
Ali estava eu deitado, num cenário de alva brancura, rodeado por vultos de branco vestidos, de volta de uma parafernália de aparelhos cheios de luzes e um constante bip, bip, como se de um ritmo cardíaco se tratasse.
Não me lembro de como aqui vim parar. A última recordação que tenho, foi de estar a passear no parque com as crianças, e sentir uma violenta dor no peito, seguida de escuridão. Quando acordei já aqui me encontrava. Suponho que sejam médicos ou enfermeiros, os vultos que me rodeiam. Parece que estou num hospital. Mas porquê?
Até então nunca tinha tido problemas de saúde. Sempre fui saudável, "...uma saúde de ferro." Diziam. E agora estou aqui sem preceber porquê, nem como.
Uma avalanche de imagens invade-me a cabeça. Vejo as crianças, o Miguel, e a Rute. Vejo a Sara, a mãe. São a minha família. A minha única família.
A maca onde me encontro começa-se a mover. A dor no peito intensificou-se e o bip, bip aumentou de ritmo.
Ao sair da sala em que me encontrava vejo que os miúdos, acompanhados da mãe, estão ali. O Miguel, o mais pequeno chora agarrado à mãe, que o tenta acalmar, embora também ela chore. A Rute aproxima-se, com lágrimas nos olhos, e passa-me a mão na cabeça, em quanto continuo o percursso não sei para onde. Em breve só ouço o choro do mais pequeno, que continuava agarrado à mãe a chorar.
Entro numa outra sala em tudo idêntica à primeira, não fossem os projectores de alta voltagem que me cegam a vista. Fecho os olhos. Fico quieto, apenas a ouvir . Ouço o barulho de passos, de metal , objectos a serem movidos de um lado para o outro. Alguém dá instruções, outro alguém as acata. Depois, só silêncio. Apenas o , bip, bip, se mantém a um ritmo acelerado. Ouço vozes. Ouço-as como se estivessem na sala ao lado, e não ali comigo. Sinto que algo me envolve o nariz e a boca. Instintivamente abano a cabeça no intuito de me livrar daquilo, mas imediatamente sinto uma pressão na cabeça que me impede o movimento, ao mesmo tempo que ouço falarem comigo. "Está tudo bem, calma". Sinto um a caricia na cabeça. Fico calmo, embora o coração pareça querer saltar-me do peito, e sinta os pulmões a arder. Mais uma vez ouço vozes. E fico finalmente a saber o que realmente se passou.
Fui atingido por uma bala. Parece que assaltaram o quiosque de revistas do parque, e o assaltante fugiu a pé pelo parque. Dizem que o tentei deter, e o assaltante deu-me um tiro à queima roupa. Parece que o apanharam, mas a mim parece-me mais que quem foi apanhado fui eu. " Não há nada a fazer." Ouço dizer. E mais uma vez sou invadido por uma montanha de imagens das crianças e da Sara, e desejo do fundo do meu ser , que a minha partida seja rápida, e que a Sara e os miúdos prossigam com as suas vidas sem receios. Recordarei para sempre, os momentos que passámos juntos. As férias, os longos passeios de fim de semana, as brincadeiras com as crianças, os serões com a Sara no sofá frente á televisão, as atribuladas manhãs com as crianças, com a Sara sempre a apressar os miúdos para a escola.
Ainda me lembro do dia em que os conheci. Era apenas um cachorro.