quinta-feira, 12 de julho de 2007

O Caracol - Capítulo 4

Nessa noite sonhei que estava num enorme corredor estranhamente iluminado. Caminhava olhando para ambos os lados, quando noto alguém à minha frente. Acelero o passo para apanhar a pessoa, que caminhava no mesmo sentido, permitindo-me apenas ver as suas costas encurvadas. Aproximo-me e abordo-a tocando-lhe o ombro. Ao deparar-me com o seu rosto assustadoramente hediondo, os olhos esbugalhados pela ausência de pálpebras, no lugar do nariz tinha apenas dois buracos disformes e a ausência de lábios permitia ver os seus dentes afiados e caoticamente dispostos, acordei com um espasmo, como se o medo me tivesse feito saltar imediatamente de volta para a realidade.
Ao virar a cabeça e ver a esfera que tinha tirado do bolso no dia anterior e colocado em cima da mesa-de-cabeceira, lembrei-me imediatamente da louca história do Caracol. Pensei logo que o sonho teria sido originado por ela, tinha ficado com aquilo no subconsciente e não era nada de estranho que tivesse sonhado com coisas esquisitas. Ter percebido isto não conseguiu evitar que tivesse ficado com uma certa inquietude, que me esforcei por ignorar.
Estava a sair de casa quando me apercebi que ao voltar ao quarto para me vestir, instintivamente peguei na esfera e guardei-a no bolso. Achei curioso, parecia que a esfera é que tinha querido vir comigo e, mesmo não acreditando minimamente que aquilo fosse mais que uma mera esfera de aço, a verdade é que senti uma estranha sensação de segurança ao tê-la comigo.
O dia decorreu normalmente. A inquietude acabou por sucumbir, vítima da distracção, e foi só quando voltava para casa que, ao ver ao longe uma velhota vestida com cores muito berrantes, que as coisas transcenderam ligeiramente o banal. Ao aproximar-me comecei a distinguir a sua maquilhagem ridiculamente excessiva. Quase não havia parte do seu rosto que não estivesse pintada, os lábios e as maçãs do rosto estupidamente vermelhos e o branco que ia desde as suas pálpebras até às sobrancelhas, que não eram feitas de pelos, mas sim grosseiramente pintadas a lápis, fariam inveja a qualquer palhaço, achei particularmente piada ao facto de os lábios não estarem pintados até aos cantos da boca, o batom chegava apenas a três quartos do lábio, para cada lado, e o restante estava coberto pela mesma camada de base que cobria o resto do rosto, fingindo assim uma boquinha minúscula que fazia a velhota parecer uma horripilante boneca. Automaticamente lembrei-me da advertência do Caracol e, ao questionar por uma fracção de segundo a se a velhota não seria um deles, senti-me extremamente idiota por ter-me instintivamente sossegado pensando que não poderia ser porque a esfera não estava a reagir.
A tua imbecilidade é inacreditável, disse silenciosamente para mim mesmo, como é que é possível estares a deixar-te influenciar pela história parva de um louco, sim, está bem, ser louco é uma coisa dúbia e bastante relativa, mas a verdade é que sabes que a história é completamente absurda, continuei, não me vais dizer que acreditas naquilo. Não, não acredito, respondi-me, acredita que não acredito, mas um gajo não controla os pensamentos, não tive qualquer controle sobre o que pensei ao ver a velhota, automaticamente me lembrei do Caracol, quanto a isso não posso fazer nada. Mas se te lembraste é porque a história te ficou na cabeça, continuei, argumentando comigo mesmo, tu se calhar não queres acreditar, mas acho que qualquer coisa lá no nosso âmago acredita, acho que caso contrário não estaríamos sequer agora a discutir isto. Não acredito nada, a história só ficou na cabeça pela incomunidade da cena toda, só porque foi tudo muito estranho, só isso. Tudo bem, só estou curioso sobre quão cedo iremos ter esta conversa outra vez, e já agora, embora faça sentido, se considerarmos que “comunidade” também pode significar a característica daquele que é comum, não sei se “incomunidade” existe...
O resto do dia decorreu, obviamente, sem lapsos, e de noite sonhei novamente que estava no corredor da noite anterior, mas desta vez não havia monstros.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

O Caracol - Capítulo 3

Bom… disse eu para quebrar o silêncio, pousando a caneca e sacudindo as calças num movimento espontâneo, já se faz tarde, tenho que ir andando. Olhou para mim com estranheza, estava certamente perdido nos seus pensamentos e não estava habituado a ser interrompido. Então e o que é que vais fazer agora que sabes de tudo, perguntou o Caracol. Hum… não sei bem… vou precisar de algum tempo para pensar nisto tudo e organizar as ideias, respondi hesitante, a verdade é que não planeava fazer nada, nem sequer me tinha ocorrido alterar o que quer que fosse na minha vida por causa da mirabolante história daquela pessoa tão peculiar, excepto talvez contar prazenteiramente o acontecimento aos amigos. Fica pelo menos mais atento, disparou rispidamente o Caracol, eu sei que já tenho alguma experiência, mas também não é assim tão difícil perceber quando está para acontecer um lapso, continuou, aquele velho de boné e patins em linha era demasiado óbvio, e aquele cego, acrescentou repentinamente, foge dele a sete pés, ou àqueles que tiveres, porque certamente ninguém terá sete pés, nem sei porque se diz isto, três, vá lá, quatro, em quem nasça com defeitos físicos, mas sete pés é uma estupidez, parou por momentos perdido em pensamentos até que, apercebendo-se que, ao contrário do costume, não estava sozinho, continuou, vê-se logo que aquilo não é um cego normal, muito cuidado com o cego! Sem querer ofender, retorqui suavemente, mas se vou estar a desconfiar de cada coisa estranha que vejo na rua, passo a vida desconfiado, e eu nem sequer sou uma pessoa desconfiada, terminei com um sorriso amarelo, para aligeirar o ambiente; ainda estava com algum receio que o homem desatasse a disparatar, como costuma acontecer com algumas destas pessoas que têm formas de pensar diferentes do que é comum. Acho que já não preciso disto, continuou como se falasse sozinho enquanto tirava do bolso um objecto envolto num trapo, posso dar-ta se prometeres que tentas salvar alguém se presenciares outro lapso, é o mínimo que podes fazer para retribuir. O que é, perguntei. Encontrei-a num sítio onde eles costumam andar, reparei que reage à sua presença vibrando e aquecendo ligeiramente, muito ligeiramente, disse enquanto abria o trapo e retirava uma esfera com cerca de três centímetros de diâmetro, aparentemente daquelas dos rolamentos, que pedíamos nas oficinas quando éramos pequenos. Prometes, perguntou enquanto me estendia o objecto. Não sabia muito bem o que fazer, não fiquei muito empolgado com a ideia de fazer aquela figura e não gostava nada de fazer promessas vãs, mas lá prometi e aceitei a oferta. Para demonstrar algum interesse, perdi algum tempo a observar minuciosamente a esfera, e de facto fiquei surpreendido com a sua perfeição, não tinha qualquer mácula ou sujidade e o reflexo era perfeito, era também bastante leve. Envolvi-a num lenço e guardei-a cuidadosamente, sempre observado pelo seu anterior proprietário. Obrigado, acho, espero que me seja tão útil como foi a ti, mas há ainda uma questão que me escapa, qual é o objectivo deles, perguntei censurando-me logo de seguida, devia era estar a tentar livrar-me daquele filme e ainda estava a dar conversa. Não posso ter a certeza, respondeu, suponho que queiram ocupar a nossa realidade ou qualquer outra coisa assim maléfica, se quiseres aparece cá outro dia e discutimos isso, é sempre bom debater, e confesso que gostei muito de poder partilhar isto com alguém, já quase nem me lembrava de como era ter alguém com quem conversar. Senti alguma pena, por muito que se aprecie a solidão, há sempre momentos em que nos apetece falar com alguém que responda. Perdendo o ímpeto de me ir embora, deixei-me ficar mais um pouco. Sem saber o que dizer e não querendo continuar com a história deles, fiz um comentário inútil sobre meteorologia que saiu muito pouco natural. Não sei se foi por perceber que já só lá estava movido por pena ou se queria realmente ficar sozinho, o Caracol estendeu-se preguiçosamente no saco-cama. Está na minha hora, levanto-me sempre muito cedo, já sabes, se quiseres aparecer para conversar de vez em quando, serás bem-vindo, disse-me em jeito de despedida. Pois, retorqui algo atrapalhado, aquela do tempo tinha saído mal, foi uma futilidade estúpida, uma pessoa que nunca conversa com ninguém não estaria certamente interessada em debater o estado do tempo, também tenho que ir andando, até um dia destes então, e obrigado pelo chá, estava… diferente. Até à próxima, e cuidado, eles andam aí! Tive que me virar de imediato para disfarçar e abafar uma gargalhada, nunca tinha ouvido aquela frase dita tão a sério, e o efeito foi exactamente o oposto, não consegui evitar achar piada. Sem me virar para que não percebesse a minha boa disposição, limitei-me a acenar e afastei-me tentando reviver mentalmente e manter na memória todo aquele curioso episódio, enquanto sentia, com a ponta dos dedos, o volume da esfera no meu bolso, como que para me certificar que tinha mesmo sido real.