quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Tempus Fugit - Capítulo 1.1.2

Por muito que se esforçasse, não conseguia obrigar-se a acreditar que tudo o que lhe estava a acontecer era real. Era tudo demasiado surreal para ser credível, no entanto a única outra explicação envolvia problemas mentais. Conquanto, o seu cérebro parecia funcionar normalmente, conseguia raciocinar, conseguia questionar os acontecimentos, conseguia facilmente atribuir a conversa com Deus a um lunático devaneio da sua mente, mas não era tão fácil atribuir a essa causa todo este fenómeno do momento morto. A clareza do seu raciocínio provocava-lhe uma resistência para assumir a insanidade mental como um ponto assente.

Será que um louco consegue ponderar sobre a sua demência? Meditava tranquilamente sobre esta questão, flutuando a alguns centímetros do chão, quando sentiu que iniciava uma longa queda que culminou com um grito vindo do seu âmago. Abriu os olhos e, encandeado pela iluminação fluorescente, conseguiu ainda ver alguém a retirar uma agulha do seu braço. Não estava à espera que fizesse efeito tão depressa, disse.

Onde estou? Perguntou confuso. Foi encontrado a deambular pelas ruas a falar sozinho. Dizia coisas sem sentido e não reconhecia a presença das outras pessoas. Fomos avisados e como não conseguimos saber a sua identidade nem descobrir alguém que o conhecesse, tivemos que o trazer para aqui. Respondeu a pessoa. Aqui onde? Insistiu, fazendo um esforço para se lembrar dos acontecimentos recentes. Está numa instituição para pessoas com problemas mentais. Um manicómio, portanto. Nós não gostamos de usar esse termo, mas sim. Já cá está há algumas semanas, sempre num estado cataléptico. Decidimos administrar-lhe uma droga experimental que parece resultar muito bem, melhor do que eu esperava. Consegue lembrar-se que alguma coisa? Sim, lembro-me que o mundo estava congelado e que Deus me pediu para o substituir. Compreendo... Vamos elaborar uma terapêutica e ver como a situação evolui, estou confiante que esse problema não será permanente.

Limitou-se a passear calmamente pelos corredores, mas um nervosismo incontrolável instalou-se ao passar da meia-noite. Olhava estático para um relógio na parede à espera do minuto doze, apenas para verificar que, ao cair deste, tudo congelou novamente à sua volta. Teria já terminado o efeito do medicamento? O que realmente estaria a acontecer? O que seria real? Colocou a si próprio estas e muitas outras questões, mas a verdade é que não conseguiu responder a nenhuma de forma satisfatória. Agora que supostamente estaria de volta ao mundo real, encontrava-se novamente naquilo a que para si era vulgarmente designado por momento morto, designação que não significaria o mesmo para mais ninguém.

A sua tendência para o racionalismo acabava de ditar a única explicação plausível. Definitivamente estava mentalmente doente. Doente seria um termo relativo, pois a única coisa que faria os "sãos" achar que os "dementes" é que seriam os doentes era uma mera questão de números. Como os "sãos" eram mais que os "dementes", eram levados a crer que a sua realidade era a verdadeira, mas não havia qualquer garantia nisto. Nada conseguia provar sem qualquer dúvida que não seriam os "dementes" a ver a realidade como ela efectivamente é.

Uma catadupa de questões invadia-lhe a mente. A principal sendo se seria ele a estar mentalmente doente ou se estaria sim mais lúcido que as restantes pessoas.
Sem qualquer noção de quanto tempo teria passado, quando a pessoa com quem tinha falado antes o abordou, apercebeu-se que, não sabendo também há quanto tempo, tudo já tinha voltado ao normal. Teria terminado o momento morto. Pensou. Mas de seguida, como uma sequência normal de pensamentos que não se controla, pensou que não existia momento morto. Que tudo acontecia apenas no seu cérebro. Teve ainda tempo para se aperceber que a pessoa que o abordava era a única com quem tinha falado nos últimos tempos, tempos dos quais já tinha perdido completamente a noção da extensão.

Então? Como se sente? Perguntou a pessoa. Na mesma, respondeu, acho que continuo na mesma. Acabo até agora de sair de um momento em que tudo fica estático à minha volta e acho que só agora voltei à realidade. Isso é muito positivo, significa que o medicamento está a ter efeito a longo prazo. Acredito que com mais uma ou duas semanas de terapêutica, ficará praticamente curado. Mas que garantia tenho eu que esta é a verdadeira realidade? Como é que sei que você não passa de uma alucinação? Pois, de facto não sabe, terá que acreditar em mim. Vamos supor que acredito. Qual será o plano? Vamos manter uma administração diária do medicamento durante uma semana, reduzir para metade na semana seguinte e logo veremos como evolui a situação. Há apenas uma questão, como se trata de um medicamento que ainda está em fase experimental, será necessário que assine este termo de responsabilidade. Estou portanto a ser uma cobaia. Não creio que seja necessário ver as coisas assim. Pense que está a contribuir para o avanço da medicina, que estará a ajudar pessoas com problemas como o seu. Desculpe-me, mas vou precisar de algum tempo para pensar nisso. Com certeza. Só peço que não demore muito, estaria já na altura de tomar a segunda dose.

Apenas uma frase perdurou na sua mente. "Pessoas com problemas como o seu". Haveria mais pessoas com um problema como o seu? Ponderou. E seria de facto um problema?

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Comunicação

- Eu concordo que o gajo da carrinha estava a ser parvo, mas também não era preciso tê-lo mandado para esse sítio.

- Sítio? Que sítio?

- Estás a gozar? Esse gesto que lhe fizeste com o dedo médio é universalmente reconhecido como uma maneira de mandar as pessoas para um sítio.

- Nada disso. Já deves ter reparado que existe uma espécie de código para comunicação entre automobilistas, e este tem as suas particularidades.

- Sim, percebo isso, mas esse gesto é sempre interpretado como uma ofensa.

- Isso é na utilização corrente. Entre automobilistas, como não nos ouvimos uns aos outros, tivémos que desenvolver uma forma alternativa de comunicação. Este gesto não é mais que a nossa maneira de dizer qualquer coisa como: "Desculpe, mas, com o devido respeito, não concordo com o seu ponto de vista".