sexta-feira, 24 de junho de 2011

Demónios

- Estamos a criar uma sociedade de conas moles, pá!
- Ai é?
- É. Com as merdas das simpatias e das mentiras piedosas. Ninguém está preparado para ouvir duras verdades sem se sentir atacado.
- E tu estás?
- Sim, tenho consciência que não sou um ser perfeito, como tal, é natural que haja opiniões negativas a meu respeito. E não tenho que assumir que se alguém me diz uma coisa que eu não gosto de ouvir, será porque me quer atacar. Até pode ser exactamente pelo contrário, para me ajudar a evoluir.
- Sim, acho que tens alguma razão…
- Se não houvesse esta cultura de proteger as pessoas de encarar os seus defeitos, todos estaríamos habituados a receber comentários negativos e já não fazíamos um grande filme por causa disso. Mas não, longe de nós viver na realidade e admitir que temos coisas feias . Não, isso nunca! Se fingirmos que os nossos demónios não existem, é quase o mesmo que eles não existirem mesmo. Tem é a grande desvantagem de assim nunca os exorcizarmos. Para lidar com eles precisávamos de reconhecer que existem, e isso é impensável para a maioria das pessoas.
- Verdade…
- E eu culpo esta sociedade do politicamente correcto! Do “ai, coitadinho, eu sei que é verdade, mas não lhe digas isso que o magoa. Vamos antes falar disso só nas costas dele e deixá-lo pensar que todos o achamos a pessoa mais bonita à face do planeta”. Digo mais, eu sou da opinião que alguém dar-se ao trabalho de nos fazer ver um ponto negativo em nós é uma manifestação de apreço. Se nos estivermos borrifando para uma pessoa, certamente não nos vamos prestar à maçada de a criticar e sério.
- Sabes, é provavelmente a primeira vez que te ouço falar de uma questão realmente pertinente e interessante. Normalmente as tuas conversas não interessam a ninguém. Tendem a ser praticamente todas sobre ti, e quando não são, é desconcertante a merda de assuntos de que te lembras. Ao ponto de, na grande maioria das vezes, não me ocorrer absolutamente nada para dizer excepto um “hum, hum”.
- Vai-te foder, grande filho da puta!

terça-feira, 21 de junho de 2011

Já começava a perder a fé no que a minha mãe me disse quando era pequeno: “Está bem que és parvo, feio, esquelético e duvido que o teu sexo cresça mais que isso, mas alguma coisa hás-de ter que agrade às mulheres”.
Ontem descobri finalmente! Pela boca da otorrinolaringologista (“otorrina” soa estranho…), com uma voz notoriamente excitada: “Tem um belo canal auditivo. Sem cera nenhuma e tão largo que se vê o tímpano todo. Fantástico!”
Tinhas razão, mamã!!

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Monodiálogo #8

Às vezes sinto-me mesmo farto de ti, pá! Não é que ache que sejas má pessoa e mesmo não achando também que és assim uma excelente pessoa, pelo menos acredito que te esforças por evoluir e aperfeiçoar os teus pontos mais negativos, aquelas coisas que aposto que também concordas precisarem mesmo de ser revistas.
Não tem também nada a ver com o facto de gostar ou não gostar de ti, porque até gosto, mas aborreces-me. Estou fartinho de me levantar todas as manhãs, chegar à casa-de-banho e lá estares tu, sempre, dia após dia, no espelho, a olhar para mim com aquele teu ar reprovador.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Adrenalina #3

No dia combinado, o Bonifácio e o Matias lá foram à sua aventura, com um nó no estômago causado pelo extremo nervosismo. O Bonifácio estranhou que, ao contrário do que pensou que aconteceria, o Matias não aparentava estar tão nervoso como ele. Começou a perceber que, também ao contrário do que pensava, a forma como o Matias vivia a sua vida era mesmo por uma questão de opção e não propriamente por ter medo de nada. “Quem diria…”, terá pensado o Bonifácio, “que ele manteria esta calma a uma hora de se atirar de um penhasco?”. Claro que a pulsação do Matias estava tão acelerada como a do Bonifácio mas, desde que tomou a decisão de alinhar na aventura proposta pelo seu amigo, não se viu mais nele um instante sequer de hesitação. O Bonifácio estava radiante.
Preparativos feitos, lá estavam os dois prontos a saltar, com a adrenalina a escorrer-lhes pelos poros. O Bonifácio foi à frente e, depois dos momentos do misto de pânico e excitação que sentiu após os seus pés terem perdido o contacto com a superfície terrestre, ao olhar para trás em busca do seu amigo, um novo pânico instala-se, este já sem qualquer excitação, ao ver o Matias a cair a pique rumo ao chão. O resto da viagem decorreu em completo terror e este não tinha qualquer relação com a emoção de voar. Aliás, a emoção de voar foi completamente abafada pelo pavor de não saber sequer se o seu amigo teria sobrevivido à queda. Depois do que lhe pareceram horas, lá aterrou em segurança apenas para, depois de saber que o Matias  tinha sido levado para o hospital, disparar ao encontro do seu amigo.
Mais de três dias esteve o Bonifácio a velar o seu comatoso amigo, a chafurdar em culpa, sem nunca se ausentar mais que dez minutos. Durante este tempo, angustiado por não poder fazer mais, conversou constantemente com o Matias, que teimava em não reagir. Por fim, ao quarto dia, os olhos do Matias abriram-se lentamente, facto que causou ao Bonifácio algo próximo da euforia. Depois de alguns minutos a recuperar a consciência, os lábios do Matias mexeram-se, produzindo um som ténue que o Bonifácio tentou perceber aproximando o seu ouvido da boca do seu amigo.
Os olhos do Bonifácio brilharam ao ouvir as primeiras palavras que o seu amigo proferia depois do acidente. Com visível esforço, já que tinha o maxilar partido em três sítios, o que saiu da sua boca foi: “Quando é que vamos outra vez?”

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Adrenalina #2

– Temos que correr riscos, pá!
– Porquê? Não percebo porque é que havemos de correr riscos desnecessários. Eu prefiro estar confortável e seguro no meu canto.
– Não são desnecessários! Só dizes isso porque ainda não experimentaste o clímax do perigo. Porque nunca saíste da tua minúscula zona de conforto.
– Eu gosto da minha minúscula zona de conforto.
– Mas só saindo dela é que a consegues alargar. Algum desconforto é um preço mínimo para o que podes ganhar. Se não fizeres esse esforço a tua zona de conforto vai acabar por te estrangular e transformar-te num velho sozinho e amargo.
– Hum… Uma visão algo fatalista… E o que é que tu propões para evitar isso.
– Não tenho propriamente um plano, mas por acaso agora que estamos a falar disto, ando numa de experimentar asa delta.
– Endoideceste, não foi?
– Aquilo é seguro. Caem mais aviões que asas delta.
– E que tal escolheres uma coisa que não requira um curso?
– Não é preciso saberes nem fazeres nada. Vais tipo pendura com um profissional a conduzir aquilo. Estás a imaginar-te a voar? A sensação de liberdade? Deve ser diferente de tudo o que já experimentámos. Vá lá, diz que sim.
– Que sim
– A sério?
– Sim, vamos lá experimentar isso. Mas tens que prometer que depois não me chateias mais com este assunto.
– Está prometidíssimo! Deixa-me que te diga que foi infinitamente mais fácil do que eu poderia esperar.
– Se calhar não me conheces tão bem como pensas.
– Se calhar tens razão. Ou se calhar isso é sempre verdade, independentemente das pessoas.
– Se calhar…

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Adrenalina #1

Depois de o conseguir arrastar para fora de casa para beber uma cerveja e desfrutar um pouco do fim daquela tarde quente tão agradável, o Bonifácio deu por si a olhar o seu amigo com um inconfundível sentimento de comiseração. Era a primeira vez que se apercebia disto, mas sim, era verdade, o que sentia pelo seu velho amigo Matias, além de uma profunda e inabalável amizade, era pena. Esta constatação chocou-o ao ponto de o seu amigo quebrar o silêncio perguntando-lhe se se passava alguma coisa. Era pouco frequente ser o Matias a preencher o silêncio que muitas vezes se gerava quando estavam juntos, mas isso não era um problema para qualquer dos dois. Não era um silêncio constrangedor. Simplesmente nenhum deles tinha nada que achasse que devia dizer naquele momento e nenhum deles se sentia na obrigação de dizer qualquer coisa com o único intuito de preencher o vazio verbal. Ao Bonifácio, ocorriam-lhe com mais frequência temas de conversa, mas isso não queria dizer que o Matias fosse um tipo calado. Nada disso. O mais frequente era até envolverem-se em acesos debates, mas isto só acontecia quando, de forma natural e espontânea, surgia um tema conceptual sobre o qual ambos tinham opinião. Acontecia com frequência mas não era sempre, que não eram daquelas pessoas que têm opinião sobre tudo, inclusivamente sobre assuntos sobre os quais não sabem absolutamente nada. Não, as opiniões do Bonifácio e do Matias eram sempre fundadas, embora, como eles próprios tinham consciência, pudessem estar completamente erradas. Simplesmente, como não eram pessoas de contar tudo o que lhes passava na vida, tinham vários momentos de ausência de conversa, durante os quais se permitiam, tranquila e confortavelmente, perder nos seus pensamentos sem que ninguém se sentisse obrigado a falar do estado do tempo, que, por sinal, estava tão agradável naquele dia que também não daria grande tema de conversa senão o tradicional: “Está calor hoje!”, “Olha, pois que de facto está. É de extrema clarividência e lucidez a sagaz constatação desse facto”.
Foi uma forte revelação para o Bonifácio, mas era inegável. Tinha pena da vida vazia do seu amigo. Faça-se a ressalva que, apesar de considerar que a vida do seu amigo era vazia, tinha consciência que isso era apenas verdade à luz da sua forma de ver as coisas. Tinha também consciência que a sua forma de ver as coisas não era necessariamente a universalmente verdadeira. Era-o para si, mas respeitava qualquer outra perspectiva tanto como a sua. Isto para não se ficar a pensar que o Bonifácio era daqueles que acha que toda a gente devia viver a sua vida da forma que os próprios vivem. Não. Ao Bonifácio, apesar de ter bem definida a forma como achava que devia viver a sua vida, não lhe passava pela cabeça impingir essa visão a mais ninguém como sendo o correcto. No entanto – talvez isto fosse uma aresta que ainda precisasse de algum desbastamento – fazia-lhe algo que creio se poder descrever como “impressão”, que as pessoas atravessassem este mundo sem aproveitar o (na sua opinião) pouco tempo de vida que lhes é concedido. Causava-lhe confusão, por exemplo, que houvesse gente que passava horas esquecidas sozinha, mesmo estando na companhia de outros, em frente à televisão. Mais confusão ainda lhe causavam pessoas que despendiam anos da sua vida a limpar e arrumar coisas. Ele até gostava de ter as coisas limpas e arrumadas, mas achava que havia uma infinidade de coisas melhores com que ocupar esse tempo. Achava que a razão de estar vivo era tentar passar o maior número de momentos de satisfação e viver o maior número de emoções que fosse possível até que a fria e inevitável mão da morte se pousasse no seu ombro. “Pois”, diria o Bonifácio se estivesse a acompanhar este relato, “a vida é demasiado curta para se perder tempo com ninharias”.
Racionalizou naquele momento que achava que o seu amigo estava a desperdiçar a sua vida, fechado em casa com as suas maquetas e os seus filmes clássicos. Achava que precisava de se apaixonar, de ter o seu coração partido, de curar essa mágoa e apaixonar-se de novo, de experimentar descargas de adrenalina, outros estados de consciência. No fundo, achava que a vida do seu grande amigo começava a perder o significado, dados os anos que já tinha vivido e as parcas, se algumas, ocasiões em que, qual pára-quedista que com metade do seu pé direito e metade das suas mãos fora do avião, com a deslocação do ar a empurrar-lhe as bochechas, pronto para saltar para o vazio assim que a ordem for dada, sentiu todas as células a fervilhar, não só compreendendo a razão de estar vivo, como sentindo essa mesma razão a percorrer-lhe todo o corpo. Só os saltadores sabem porque é que os pássaros cantam, ouvi algures dizer, e é uma bela metáfora. Só quem se dá às emoções é que sabe qual o sentido da vida.
Sentiu que tinha que fazer alguma coisa. Fez um esforço por respeitar as escolhas do seu amigo, impondo-se um limite na tentativa de persuasão, mas achou que ele precisava de ser espicaçado. Tentaria não abusar, mas achou que não seria de amigo não tentar dar alguma emoção à vida do Matias. Se depois achasse que queria voltar à sua vidinha pacata, tudo bem, mas faria-o com conhecimento da alternativa.

Fleuma

Como é que se aguenta uma tarde fechado num escritório depois de um repasto num terraço em pleno Chiado, em excelente companhia, a ver os barcos a passar no Tejo e a partilhar mesa e almoço com os pardalitos que, afoitos como nunca vi, só faltava virem comer ao nosso prato?
Haja tabaco!