quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Odisseia

É muito, muito ténue, a linha que separa a paixão da obsessão. Tão imperceptível que pode fazer, por exemplo dois velhos marinheiros, eternamente apaixonados pelo mar, acabar as suas vidas de formas bem diferentes. Um, por exemplo, a contar aos netos antigas histórias de viagens e aventuras e outro a dar ordens a um contramestre que, se não é imaginário, é estranhamente parecido com um cabide de pé.

Apesar de parecer que, para este último, as coisas não terão corrido tão bem, isto não é um facto provado já que não há indício que seja infeliz com a sua condição. Há também que reconhecer que representa uma história muito mais interessante. Por isso, vamos esquecer a enfadonha história do velho marinheiro que trocou a sua paixão pelo mar pela paixão por uma mulher e que se entretém hoje a contar aos netinhos as suas aventuras, aumentadas num ponto… ou dois, e vou contar-vos a curiosa e rigorosamente verídica história do segundo marinheiro, que ainda hoje e com os pés em terra firme, sente a brisa marítima na face, enquanto navega ao sabor das ondas.

O nome que os pais lhe tinham dado era Maximiliano Salgueiro, mas esse nome foi há muito esquecido. Depois de ter escolhido dedicar ao mar a sua vida, por altura do seu segundo ano sem pisar terra, alguém começou a chamar-lhe Rabil, que é o nome de uma espécie de atum conhecida por percorrer distâncias titânicas ao longo da sua vida. A alcunha caiu como uma luva e pegou quase instantaneamente. Parecia, de facto, que tinha sido inventada para ele, mas a verdade é que quem lha pôs, o Pichelim, só estava à espera que aparecesse alguém novo para lhe chamar Rabil, numa tentativa de arranjar um outro alvo para a jocosidade da tripulação em relação a alcunhas com uma sonoridade semelhante a partes do corpo. Não resultou. Diria mais, não só não resultou, como, não sei se por uma das conhecidas ironias do destino, passou a ser mais gozado que o Sarda. O Rabil ficou tão satisfeito por finalmente ter um nome que tinha alguma coisa a ver com ele que renunciou completamente o seu nome de baptismo de água benta e fez questão que toda a gente passasse a conhecê-lo apenas pelo seu nome de baptismo de água salgada, o momento do seu renascimento.

A história da sua troca da vida terrestre pelo chamamento do mar será semelhante a qualquer outra: um rapaz quer sair do marasmo, implora ao comandante de um navio para ser contratado por alguma comida e inicia uma estranha e paradoxal aventura, que consegue conjugar a liberdade do vasto mar com a prisão e a semi-escravidão de um navio. Mas, só pode ter sido o destino que o fez calhar naquela embarcação em particular, a Tétis, referida por todos sempre no feminino não só por ter o nome de uma Nereida, mas também porque era unânime na tripulação que a embarcação tinha definitivamente uma alma feminina. Oficialmente era um navio mercante, mas o seu comandante não gostava de ter rotas demasiado rígidas, pelo que no fundo existiam a vaguear pelos mares, pagando o rum e as conservas com a pilhagem do ocasional navio que encontravam à deriva por a tripulação ter toda morrido de alguma epidemia ou de algum incauto barco que tivesse o infortúnio de passar por perto e não desse muito trabalho nem fizesse muito alarido atacar.

Era o navio perfeito para o Rabil e ele sentiu-o. Não sei se já tinha esse plano ou se foi algo que aconteceu naturalmente, a verdade é que, desde que embarcou na Tétis mais ninguém o viu em terra. Ficava sempre na embarcação quando esta aportava. Dizia que lhe causava enjoos estar em terra firme, que não havia lá nada que lhe interessasse, que se despachassem porque estavam a perder os bons ventos ou as boas correntes ou o que fosse. O que ele queria era navegar. Esta particularidade começou a torná-lo conhecido e rapidamente captou a atenção do comandante, também ele um apaixonado/obcecado pelo mar, e começaram a conversar cada vez mais. O jovem Rabil, de olhos arregalados, sorvia as histórias do comandante como se fossem mel e este, satisfeito por ter alguém com quem as partilhar, enfatizava-as com entusiasmo. Havia, no entanto, outro motivo. Um motivo oculto mas inofensivo que aproximava o comandante do Rabil: curiosidade. Intrigava-o que o rapaz não quisesse ir a terra. Até a ele próprio, que era provavelmente a pessoa mais ligada ao mar que conhecia, lhe sabia bem pisar terra firme depois de meses no mar. Mais não fosse para visitar um bordel, onde entre outras coisas aliciantes, podia pousar tranquilamente a caneca na mesa sem receio que aquela deslizasse. Passado pouco tempo, o comandante admitiu para si próprio que a única explicação seria que o Rabil tinha uma alma feita de mar. Que era algo como a encarnação do espírito de uma qualquer divindade marítima. Era pelo menos indiscutível que tinha nascido para aquilo, para navegar. Era, sem dúvida, mais apaixonado pelo mar que qualquer outra pessoa e passou a respeitá-lo ainda mais por isso.

Com o passar dos anos, a sua relação tornou-se muito próxima da de pai e filho e o Rabil começou a ser declaradamente o protegido do comandante. Tirando algumas excepções que, por serem excepções não conseguiram influenciar o ambiente geral da tripulação, todos aprovaram e compreenderam o favoritismo. Era notório que aqueles dois tinham mais em comum do que quaisquer outras duas pessoas naquele navio. Além disso, o carisma e sentido de humor naturais do Rabil faziam com que fosse difícil não gostar dele e toda a gente percebia o bem que fazia à moral geral do grupo que, naturalmente, é um ponto de extrema importância quando se está preso numa embarcação e se tem forçosamente que trabalhar em equipa.

Os anos foram passando e a vida do mar, que começava a marcar com suaves linhas os cantos dos olhos do jovem Rabil, foi ficando cada vez mais profundamente gravada nos sulcos do rosto do velho comandante.

– Sabes? – Disse-lhe o comandante uma noite, depois de uma generosa quantidade de rum ingerida. – Tenho andado a ouvir uma sereia a chamar-me. Ando a pensar que se calhar está na altura de ir ter com ela.

– Uma sereia? Também quero! – Respondeu o Rabil ebriamente divertido. Ainda não aguentava o rum como o velho.

Quando no fim da frase, ao olhar para o seu mentor, se apercebeu do seu ar sério, endireitou-se muito depressa na cadeira, como se num instante lhe tivesse passado a bebedeira.

– O que quer dizer com isso? – Perguntou o Rabil com a expressão mais grave que alguém alguma vez viu no seu rosto.

– Sabes como esta vida estraga. Estou a desmanchar-me por dentro. – Disse o comandante com um suspiro. – Tive a vida que quis ter e estou satisfeito com isso, mas não quero ir morrer a terra. E de que serve a um navio um comandante que já não consegue comandar?

Era verdade que qualquer pessoa que visse o comandante se questionaria como estaria ainda vivo, já que tinha a aparência do cadáver de um afogado, deixado ficar à deriva nas marés, inchado e purulento. A sua boca, se pudesse ter sido preservada até aos nossos dias, proporcionaria anos de estudo a um departamento de investigação do escorbuto. No entanto, para o Rabil e para o resto da tripulação era o seu comandante, simplesmente o seu comandante. Todos assistiram à sua lenta decadência de forma gradual. As suas mentes tiveram a possibilidade de se adaptar à mudança de forma natural sem que isso causasse o choque normal que qualquer pessoa teria ao ver o velho pela primeira vez naquele estado.

– Não estou a gostar nada desta conversa… – Disse, apreensivo, o Rabil.

– Tu serás o novo comandante da Tétis! – Exclamou, tentando dar alguma solenidade à frase.

– A Tétis tem um comandante e vai tê-lo por muito tempo.

– Compreende, meu rapaz, isto não é uma escolha minha. Não tenho outra opção.

O Rabil limitou-se a fitar o velho, a encaixar a dura realidade.

– E não é tarde nem é cedo! – Disse o velho comandante antes de emborcar de uma vez o restante conteúdo da garrafa.

Levantou-se sofridamente e, cambaleante, dirigiu-se à porta do camarote levando o Rabil por um braço.

– Animais, a partir deste momento, este é o vosso novo comandante! – Disse com a voz arrastada da bebedeira. Se alguém tem alguma coisa contra, que se chegue à frente para que eu o possa enforcar na retranca com uma malagueta enfiada no cu.

Ninguém se chegou à frente. Era mais que óbvio que o monte de pústulas com fedor a álcool e fluidos corporais em que o comandante se tinha tornado não era capaz de enforcar um rato, muito menos tão bêbedo como estava que, se não estivesse ainda agarrado ao braço do Rabil, já teria certamente caído. Além disso, toda a gente sabia, desde o comandante até ao corcunda coxo e imbecil que conseguiu convencer o comandante a “salvá-lo” de uma vida de mendigagem alegando que dava jeito ter alguém que limpasse o vómito do convés, originando a criação do posto de limpador de vómito até aí inexistente na tripulação (parecia estúpido, mas a verdade é que já ninguém tinha que se dar ao trabalho de ir a correr vomitar borda fora e podia apenas deixar-se tranquilamente adormecer na poça da sua imundice que o Corcoxo, alcunha que ganhou nos primeiros segundos na embarcação, até se dava ao requinte de limpar os pedaços que ficassem na barba com uma espinha de badejo que tinha adaptado para o efeito) que seria impossível impor à tripulação da Tétis um comandante que não fosse respeitado para tal, por muitos enforcamentos e inserções de objectos em orifícios que ocorressem (e as malaguetas, além de não chegarem para todos, eram precisas para amarrar os cabos). Apesar de todo o teatro, era claro para todos que a única razão pela qual ninguém se chegou à frente era porque toda a tripulação sabia que o Rabil era a única pessoa que poderia substituir o seu velho comandante.

- Foi uma honra navegar com todos vocês, menos contigo Corcoxo, obviamente. Não deixam de ser um punhado de vermes, mas são o punhado de vermes com mais espírito que conheci em toda a minha vida. Amanhã podes ocupar o meu camarote. – Terminou, dirigindo-se ao Rabil e voltou para o seu camarote agarrado aos barris e ao que mais o conseguisse ajudar a manter-se de pé.

No dia seguinte, quando o Rabil entrou no seu novo camarote ficou literalmente de queixo caído. Tudo estava limpo e arrumado e não havia vestígios do comandante. Nunca mais seria visto. O seu misterioso desaparecimento criou uma espécie de mito de que o comandante teria feito um pacto com Nereu e dedicado a sua alma ao mar. Curiosamente, de uma forma natural, isto deu à tripulação a sensação de que o seu navio estava protegido por uma qualquer força divina. O mito ficou tão enraizado que, para se entreter ao serão com algo mais que o rum, a tripulação inventava histórias sobre a nova vida do seu antigo comandante como uma excitada semidivindade a perseguir lascivamente as oceânides. As suas aventuras imaginárias, particularmente as que envolviam Admete e Clítia, ficaram gravadas na atmosfera daquela embarcação e foram contadas por muitos, muitos anos.

Foi assim que o Rabil herdou o comando da Tétis, muito perto do seu décimo sétimo ano sem pisar terra. Embora bastante menos agressivo que o seu antecessor, era também um comandante justo e empático com a sua tripulação, mas não se enganem, não era uma pessoa com quem, como diria a minha avó, se fizesse farinha. Ainda hoje se deve contar a história da viagem em que um infeliz não gostou de ter sido repreendido e tentou aliciar a tripulação a amotinar-se. Os seus testículos estiveram meses pregados no mastro até terem sido comidos pelas gaivotas quando a embarcação se aproximou de terra.

O espírito a bordo da Tétis manteve-se por muitos anos e o Rabil nunca se sentiu infeliz por ter trocado a sua família por um punhado de biltres fedorentos e mal-educados nem por ter trocado os seus amigos pelas ondas. Nunca se arrependeu de conhecer mais correntes que pessoas nem de se ter deitado com mais ventos que mulheres. A única diferença é que passavam cada vez menos tempo aportados e, quando chegou ao ponto deste tempo se resumir ao apenas necessário para recarregar o navio com mantimentos e rum, a tripulação começou a ficar descontente com a situação. Conforme os anos se transformavam em décadas, a cada aportada da Tétis a tripulação diminuía um pouco e foi com o coração apertado que, na última vez que a Tétis foi vista num porto, os últimos resistentes, impotentes para convencer o Rabil a ir a terra algum tempo e tentar refazer a tripulação, ficaram a vê-la afastar-se lentamente, tripulada apenas pelo seu comandante.

Diz-se que passaram mais de trinta anos até um navio militar encontrar a Tétis em alto mar, aparentemente à deriva e descobrir nela um velho tresloucado e esquálido a dar ordens a fantasmas. À força e não sem alguma insensibilidade, lá conseguiram separar o desgastado Rabil da sua velha Tétis, apenas para o fechar em terra à espera do fim. Sim, conseguiram tirar o Rabil do mar, mas o meu consolo é saber que nunca conseguirão tirar o mar do Rabil. E, em verdade vos digo que, além do da perda do seu mentor, não há relato de mais nenhum momento de infelicidade seu desde que pisou o convés do navio/mulher que viria a amar. A pobre Tétis certamente já só existe na mente distorcida do seu eterno comandante, mas isso não me causa qualquer espécie de comiseração. Tenho cá para mim que vão ser felizes para sempre.