quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Devaneio

- Vestal.
- Vestal?
- Sim, vestal.
- Nunca perguntei isto numa entrevista, mas… você é do sexo masculino, certo?
- Sim.
- E “vestal” é a palavra que acha que melhor o define?
- Sim.
- Também nunca perguntei isto, mas… É virgem?
- Não.
- Pois. Creio que não consigo compreender a escolha dessa palavra. Se calhar estamos em contextos diferentes. A ideia que tenho é que a palavra “vestal” provém das antigas sacerdotisas da deusa romana Vesta e é usada figurativamente relacionada com pureza e castidade femininas, já que consta que estas sacerdotisas eram obrigatoriamente virgens.
- Sim, superficialmente é isso.
- Aprofunde então, por favor.
- Apesar de Vesta ter ficado relacionada com a castidade por causa das suas sacerdotisas, estava intimamente ligada ao fogo. O seu altar tinha uma chama permanente que nunca se podia extinguir. Esta chama estava relacionada com a origem da vida.
- Não sabia disso. Continue, por favor.
- Fogo, a origem da vida… Parecem-lhe coisas relacionadas com castidade?
- De facto, não.
- Pois. Vesta pode também ser vista como uma representação do aspecto sexual da criação. Existe portanto uma dualidade na palavra que escolhi.
- Talvez comece a compreender. Relacione então isso consigo e explique-me o porquê da escolha dessa palavra.
- Desculpe, mas o psicólogo aqui é o senhor. Explique você.
- Sou psicólogo, mas isto é uma entrevista de emprego, não é uma consulta.
- Não estou a pedir que me explique a mim. Só estou a dizer que perceber o porquê oculto da minha escolha de palavra é o seu trabalho.
- Certo. Da minha parte estamos despachados. Tem alguma questão que me queira colocar?
- Qual é a palavra que acha que melhor o define?
- Muito engraçado. Boa tarde, contactá-lo-emos nos próximos dias.
- Boa tarde.

- Então, que tal correu a entrevista.
- Bom, acho que consegui lixar qualquer hipótese de ficar com o emprego.
- Então, o que aconteceu?
- Já estava farto daquilo. Daquelas perguntas de merda, tipo “Qual acha que é a sua melhor qualidade? E o seu pior defeito?”. Deu-me para parvejar.
- O que é que disseste?
- Ele perguntou-me qual era a palavra que eu achava que melhor me definia.
- E tu?
- Disse “vestal”.
- Vestal? O que é que isso quer dizer?
- Vem das antigas virgens romanas que adoravam a deusa Vesta.
- Antigas virgens romanas? Fenomenal!!
- Foi a primeira palavra que me veio à cabeça. Depois tive que divagar um bocado para tentar dar-lhe algum sentido.
- Claro que ele ficou a pensar que eras completamente doido.
- Pois…
- Bom, esquece lá isso e falemos de coisas mais alegres. Como é que foi a cena ontem com a gaja?
- Nem me digas nada! Foi surreal, no mau sentido.
- Então? Que se passou?
- Para começar, depois de uma meia hora de conversa, já me estava a dizer que tinha uma fantasia de dupla penetração e a perguntar-me se eu não tinha um amigo que alinhasse.
- E tu, o que é que disseste?
- Tentei explicar-lhe calmamente que não me deixava confortável a ideia de ter o meu escroto a alguns centímetros de outro, correndo até o risco de haver contacto. Tentei que ela percebesse que seria estranho o relacionamento com um amigo depois de ter havido contacto físico entre os nossos escrotos. Que nunca mais conseguiríamos olhar um para o outro da mesma forma.
- E ela?
- Ela lá percebeu, ou pelo menos fingiu e não tocou mais no assunto.
- Então não foi muito mau…
- Não teria sido se tivesse sido só isso, mas depois de estarmos enrolados no sofá, ela diz-me que está com o período!
- Alto turn-off…
- Pois, mas o pior é que ela queria festa na mesma!
- E tu, o que é que fizeste?
- Tentei explicar-lhe calmamente que a menstruação não é sexy. Disse-lhe para ponderar porque é que, havendo tantas vertentes na pornografia, para todos os gostos, não se viam filmes com mulheres menstruadas.
- E ela?
- Ela lá percebeu, ou pelo menos fingiu e não tocou mais no assunto.
- E depois?
- Depois fez-me um broche e eu vim-me embora cheio de complexos de culpa.
- Pois, compreendo… Olha, o teu telefone está a tocar.
- Estou sim? Sim, é o próprio. Sim, com certeza. Certo, está combinado então.
- Novidades?
- Sim, era da empresa onde fui fazer a entrevista.
- A dizerem que não correspondias ao perfil que eles procuram?
- Não. A pedir-me para começar na segunda-feira.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Arte #7

O intenso cheiro a éter atirou o cérebro do recém-chegado para a consciência como se o tivesse empurrado da orla de um abismo. Ainda antes de abrir os olhos, apercebeu-se que os movimentos dos seus braços e das suas pernas estavam fortemente condicionados. Passados os quatro segundos que a sua mente demorou a compreender a totalidade da situação, arregalou os olhos. Viu-se nu, coberto apenas por um pequeno lençol com uma abertura rectangular sobre o esterno, de tornozelos e pulsos amarrados a uma fria mesa metálica. Além das três paredes brancas e despidas, conseguia ver apenas um candeeiro cirúrgico que parecia pairar sobre si.
Está aí alguém? Gritou passados poucos minutos. Isto é uma crueldade, vociferou, não sei quem tu és, mas nada te pode dar o direito de fazer isto às pessoas! Depois de alguns momentos de silêncio, os músculos do recém-chegado retesaram-se. O que eu vou fazer é dar um propósito superior à tua vida, disse uma voz que, apesar de perfeitamente inteligível, parecia provir dos confins da crosta terrestre, procurei-te durante muito tempo, não foi fácil encontrar um sujeito adequado, mas assim que senti a tua energia, soube que eras tu quem eu procurava. Ao contrário dos outros, senti que irias compreender, que és merecedor. O que é que me vais fazer, perguntou o recém-chegado com a voz trémula. Vais fazer parte de algo mais elevado, de algo sublime, respondeu, sibilante, a estranha voz. Mas eu não quero! Vociferou o recém-chegado. Não! Por favor, não me faças mal, choramingou, deixa-me ir embora. É por isso que abomino essa mesquinha espécie humana, por esse absurdo instinto de auto-preservação. Porque hão de dar tanta importância, ao ponto de rastejar e implorar, à vossa miserável existência face a coisas mais elevadas? O que importa a vida de um indivíduo? Que diferença vai fazer no mundo a tua morte? Nenhuma, absolutamente nenhuma. Que valor tem a tua vida face a algo etéreo e intemporal? Face a uma obra de arte? Nenhum, valor nenhum! Que animal de uma espécie dita inteligente e racional prefere sempre optar pela sua vida contra a possibilidade de contribuir para o mundo com algo infinitamente mais enriquecedor? A irritação na estranha voz subia de tom. Mas que raio de merda vai isto fazer pela humanidade, seu filho da puta? Gritou, irritado, o recém-chegado. Que merda vai a humanidade ganhar com essa aberração que estás a fazer? Arte, reles ser, arte, aquilo que existe com o único propósito de fazer sentir e pensar, respondeu a voz, algo capaz de nos fazer perceber a nossa insignificância. Revolta-me que, perante a possibilidade que te ofereço de contribuíres para a posteridade com algo realmente significativo, implores pateticamente pela tua indigente vida. É deplorável a existência de uma espécie tão mesquinha e abominável, terminou a voz, com um tom de verdadeiro asco. Mas eu contribuo, trabalho, produzo, argumentou o recém-chegado, cujo medo se ia, aos poucos, convertendo na mais pura ira, e até já arrisquei a vida por outros, já salvei a vida a várias pessoas! Infeliz verme, disse agressivamente a estranha voz, não consegues compreender o pauperismo de tais actos? Nem sequer sabes se tais pessoas o mereciam, talvez merecessem morrer, talvez só tenham prejudicado a sociedade no tempo adicional que cá andaram. Salvar uma pessoa não é mais que salvar uma formiga. É um esforço tão absurdo como o de tentar reimplantar no corpo uma célula que se desprendeu da pele. Que efeito terás na Humanidade? O que ficará dos teus feitos depois de desapareceres? Não vai ficar mais que uma ténue memória que rapidamente desaparecerá. O que eu te estou a oferecer é imortalidade. Compreendes, abominável ser? Um propósito e imortalidade!! Prova-me! Gritou o recém-chegado no píncaro da sua raiva. Prova-me que a minha morte vai fazer melhor que a minha vida. Quero uma prova! Uma prova? Repetiu a voz indiciando algum espanto. Concordo que mereces algum tipo de prova daquilo que defendo, mas não ta posso dar. A única prova possível seria veres a obra completa, mas isso é impossível, e seria impensável deixar-te vê-la inacabada. A não ser que… Após uma breve pausa, continuou. Está bem. Dado o nível da tua contribuição, parece-me apropriado. Prometo que vou dar-te o privilégio e a honra de seres o primeiro a ver o trabalho completo, o resultado final.
Não conseguiu compreender porquê, mas o recém-chegado apercebeu-se que o temor o tinha abandonado por completo. Terá havido algo no discurso deste monstro que, a um nível inconsciente, tenha feito sentido? Pensou. A ira tinha-se também desvanecido. Não tenho escolha, pois não? Disse calmamente. Não obteve resposta. Por uma fracção de segundo, sentiu a consciência a esvair-se.
Acorda, está pronta, ouviu alguém dizer suavemente. Durante os poucos segundos que levou a recuperar a consciência juraria ser a voz da sua mãe a chamá-lo para o pequeno-almoço, mas rapidamente se lembrou de onde estava. O recém-chegado abriu lentamente os olhos. Tinha uma almofada sob a cabeça que lhe permitia ver o que estava à sua frente. A sua visão começou por incidir nos tubos que, por entre grosseiras costuras, protuberavam do seu peito, bombeando o sangue que o mantinha vivo. Fraco, focou para mais longe e um agradável arrepio percorreu o seu corpo, seguido de uma intensa sensação de paz e plenitude. À medida que contemplava os detalhes da obra, a confortável sensação era pincelada com laivos de intensas emoções. Sentia-se cheio, vivo. Aos poucos a sua atenção foi-se concentrando no centro, onde, com um aspecto tão vívido como se continuasse dentro do seu peito, estava o seu coração. Todas as sensações e emoções se foram condensando num só sentimento que o recém-chegado apenas conseguiu identificar quando este se instalou por completo. Era orgulho que sentia, ardente orgulho. É maravilhoso, disse debilmente passados alguns momentos, obrigado, muito obrigado.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Arte #6

Os olhos do recém-chegado não se fecharam mais de um minuto seguido naquela noite. Claro que têm como, pensou, se a vontade for verdadeira, arranja-se solução. Será que eu conseguiria? Perguntou-se enquanto alternava o olhar entre as várias formas que se espalhavam junto às paredes fracamente iluminadas. Visualizou-se a ajustar as suas mãos à volta do pescoço de cada um dos seus companheiros de infortúnio. Tentou imaginar os seus rostos a dar o último suspiro. Projectou na sua mente os rostos deploráveis de cada um dos homens à mercê das suas mãos e, perplexo, sentiu-se capaz. Pelas suas figuras lastimáveis, não era tão difícil encaixar um acto tão atroz como sendo movido por compaixão. Coitados, pensou, é triste, mas basta olha para eles para achar que a morte seria um favor. Desviando o olhar para o vulto mais próximo de si, imaginou de seguida o rosto da mulher sem pernas no momento em que a sua vida se esvaía. Achou que seria mais difícil, a calma que conseguia transmitir-lhe criou em si uma empatia que não existia com os demais. Apesar disso, achou que poderia conseguir, se tivesse a certeza que era esse o seu desejo. Quando o encardido rosto da rapariga apareceu na sua mente, rapidamente percebeu que seria muito mais complicado. Apesar de suja e desgrenhada, a sua aparência não suscitava o mesmo nível de comiseração que os outros. Era uma visão excessivamente infausta, sem dúvida, mas não tinha comparação com as miseráveis figuras dos outros. Bastou imaginar os seus olhos tristes à espera do seu irreversível fado para ter a certeza que não conseguiria, mesmo que ela o desejasse. Desejou ardentemente que ela não o quisesse até que o seu pensamento dispersou. E a minha hora, quando chegará? Meditou contemplando os primeiros raios de sol reflectidos nas inúmeras partículas de pó em suspensão no ar deletério.
Pouco tempo depois, como em todos os dias, o silêncio foi quebrado pelo ranger da portinhola. Como um funesto ritual, em resposta ao som, os vultos disformes começam a mover-se e a aproximar-se da porta. Cumprindo a sua parte, o recém-chegado imitou e regressou para junto da mulher com o medíocre pequeno-almoço de ambos.
Preferias morrer? Perguntou baixo à mulher, tentando que ninguém o ouvisse, mas reparou que o velho levantou rapidamente a cabeça, virando para si o ouvido direito. A mulher virou a cabeça devagar na sua direcção. Já tive dias em que aceitaria a morte de bom grado, mas tenho outros em que me sinto feliz por ela não ter chegado, disse, em tom normal e sem qualquer preocupação com quem ouviria. Quase instantaneamente, o velho virou as suas órbitas ocas na direcção dos dialogantes. Porquê a pergunta? Disparou o velho do outro lado da cela. Disseste-me que só não acabaste com a tua vida porque não tinhas como, respondeu o recém-chegado. Disse e repito, retorquiu o velho no seu constante tom amargo. Pois agora já tens como, respondeu secamente o recém-chegado, ainda queres? Não penses que és o Einstein por teres pensado nisso, continuou o velho no mesmo tom, eu já tive essa ideia há muito tempo, mas seria incapaz de pedir uma coisa dessas a alguém, de pedir a alguém que, por mim, carregasse para o resto da vida o peso de ter tirado a vida a outro ser humano. Lentamente, o velho levantou-se e, da mesma forma que o faria se os seus globos oculares ainda se encontrassem no sítio devido, atravessou o espaço e ajoelhou-se em frente do recém-chegado. Estás a voluntariar-te? Perguntou aproximando tanto o seu rosto do do recém-chegado que este se contorceu de náusea ao cheirar o hálito do velho. Sim, voluntario-me, respondeu o recém-chegado sem pensar. Se me garantires que é isso que queres, eu faço-o. Garanto-te que é o que quero, não tenho qualquer dúvida, respondeu prontamente o velho. E tu? Perguntou. Tens a certeza que és capaz? Tens consciência de que nunca mais serás o mesmo? De que esse momento nunca, nunca mais se vai esbater na tua memória? Que vai ficar sempre tão vívido, que vais ter vontade de fazer um furo na cabeça para que as memórias escorram para fora? Pareces saber bastante sobre o assunto, disse o recém-chegado com uma nota de sarcasmo na voz. Não é isso que estamos a debater, respondeu rispidamente o velho. Pois não, retrucou o recém-chegado quase com a mesma rispidez, e já te disse que o faço, que te faço esse favor. Não sei o que aconteceu no teu caso, continuou mais delicadamente, mas se eu o fizer será um acto de misericórdia e será assim que o momento ficará registado na minha memória. Se continuar sempre vívido, fará sentir-me bem lembrar-me que tive coragem suficiente para, movido por puro altruísmo, conceder esse obséquio a alguém, por ter estado à altura da situação e ter feito o que tinha que ser feito. Está bem, convenceste-me, respondeu o velho aparentando estar algo divertido com o discurso, estou à espera. Faço-te esse favor, disse o recém-chegado enchendo o peito, com a condição de haver um dia de reflexão. Isto vale para todos, continuou, levantando o tom de voz. Pensem bem no assunto e dêem-me a vossa resposta amanhã. Não sei onde vou conseguir forças, mas eu faço-o. Faço-o por compaixão para convosco, mas também porque é a única vingança que vos posso proporcionar. Ao terminar o seu discurso, olhando para o rosto triste da rapariga, quase imperceptivelmente, rodou a cabeça para ambos os lados.
Todos ficaram em silêncio virados para o recém-chegado por alguns momentos até que o homem sem braços quebrou a quietude. Eu também quero, disse, elevando o tom de voz mais do que seria necessário para que todos ouvissem. Eu também quero, repetiu mais baixo. Todos os rostos se viraram para si. Mesmo que ainda venha a sair daqui, que não acho que aconteça, que vida vou eu ter? Alguém aqui vai conseguir ultrapassar isto se conseguir sair daqui? Perguntou aos demais. Não, para mim chega, continuou, dirigindo-se ao recém-chegado, se me fazes o favor de não permitir que aquele ser abjecto continue a divertir-se a ver-me definhar, eu agradeço-te do fundo do meu coração. O recém-chegado acenou com a cabeça em consentimento e voltou-se para encontrar o olhar da mulher sem pernas. Eu vou pensar nisso, respondeu a mulher à pergunta não verbalizada.
Enquanto todos se abstraíam, meditando sobre o assunto que se tinha discutido, o recém-chegado acercou-se da rapariga. Tu não precisas de pensar no caso, disse-lhe baixinho, mas sabendo que o velho o ouviria, nunca to conseguiria fazer, não entras para o acordo. Porquê? Perguntou a rapariga. Porque há uma pequena hipótese de saíres daqui e ainda vires a ter uma vida normal, respondeu o recém-chegado. Olha para eles, continuou enquanto percorria o espaço com um movimento do braço direito, mesmo que saíssem daqui, as feridas físicas e emocionais tomariam sempre conta da sua vida, acredito que, para eles, a morte é mesmo a única libertação possível, mas não para ti. Eu não quero morrer, disse a rapariga, olhando fundo nos olhos do recém-chegado, o que eu queria, já que não posso sair daqui, era ficar cá sozinha contigo. O olhar da rapariga desviou-se para uma racha no chão ao proferir a última frase. Porquê comigo? Perguntou espantado o recém-chegado. Tens braços, retorquiu a rapariga, continuando a percorrer lentamente com o olhar a fenda no chão, não és repulsivo, não és mais velho que o meu pai… O recém-chegado deslizou suavemente as costas do indicador direito na face encardida da rapariga, que levantou o olhar para encontrar o seu. A decisão não é minha, disse, mas se ficarmos cá os dois sozinhos, eu não vou poder ser mais que um irmão mais velho para ti. A rapariga virou violentamente a cara para o outro lado e, com passos rápidos, foi sentar-se no canto oposto abraçando as pernas.
O resto do dia decorreu em silêncio. Com excepção do velho, que dormiu a maior parte do tempo, meditabundos, os restantes ocupantes mantiveram-se ensimesmados, provavelmente a pensar no que iria acontecer na manhã seguinte.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Arte #5

Após algumas dezenas de minutos, durante os quais cada um se manteve silenciosamente imerso nos seus próprios pensamentos, o recém-chegado acercou-se da parede onde o velho mantinha o seu registo e ficou estático a olhar para a serpenteante fila de riscos na parede. Trezentos e oitenta e sete, disse o velho, provocando algum espanto no recém-chegado por parecer ter lido a sua mente. Estás cá há trezentos e oitenta e sete dias? Perguntou abismado o recém-chegado. Sim, respondeu o velho, fui o primeiro. Estive vários meses aqui sozinho, continuou, e só não acabei com a minha miserável existência porque não tinha como. Agora já nem me preocupo, estou mentalizado para acabar aqui os meus dias, só espero que esteja para breve. As palavras do velho provocaram uma imensurável tristeza no recém-chegado, que lutava por não desmoralizar e manter uma réstia de optimismo. Deduzo que a rapariga foi a última pessoa a chegar antes de mim, especulou o recém-chegado em tom interrogativo. Sim, de facto deduzes bem, embora o facto que provavelmente te levou a essa dedução não o comprove, respondeu o velho. Como assim? Perguntou o recém-chegado. Ele já a veio buscar uma vez, mas aparentemente não lhe fez nada, explicou o velho, ou pelo menos é o que parece e é o que ela diz, se calhar fez-lhe alguma coisa que ela não quer dizer, continuou em tom ponderativo. Bom, pelo menos não lhe fez nada que salte à vista, ao contrário do que aconteceu com o resto de nós, concluiu, percorrendo a sua longa cicatriz com a ponta do indicador da mão direita. Depois recostou-se na parede e cruzou as mãos sobre o abdómen, como se se preparasse para dormir.
O recém-chegado deixou-se ficar alguns momentos em silêncio junto ao velho e aproximou-se depois da rapariga. Achas mesmo que ele não é humano? Perguntou com delicadeza. Não sei o que ele é, mas não acredito que um ser humano possa dar tão pouco valor à vida de outro, retrucou a rapariga. Pois, ainda és demasiado nova e ingénua, pensou o recém-chegado condescendentemente, mas limitou-se a acenar com a cabeça. E ele falou mesmo contigo? Sim, respondeu a rapariga com uma voz trémula, foi arrepiante. E o que é que ele te disse? Indagou o recém-chegado. Não me disse grande coisa, mas, apesar de não me ter feito mal, foi o suficiente para me deixar aterrorizada, respondeu a rapariga. Conta-me, pediu o recém-chegado.
A rapariga respirou fundo, endireitou as costas como que reunindo forças e começou. Nunca ninguém aqui o viu nem teve nenhum contacto com ele, além do que me aconteceu a mim. Ninguém sabe sequer se é só um, ou mesmo se é humano. Sou quem está cá há menos tempo depois de ti e, quando cheguei, ninguém sabia absolutamente nada do que poderia estar a acontecer. Só sabiam que havia manhãs em que, ao acordarem, faltava uma pessoa. Essa pessoa normalmente, sem ninguém também saber como, aparecia noutra manhã, vários dias depois… A rapariga fez uma pausa e desviou o olhar para o velho que dormitava. Naquele estado, continuou, enfiando a cara não mãos sem conseguir conter o choro. O recém-chegado afagou-lhe o cabelo sujo e dirigiu-lhe algumas palavras de conforto. Podes abraçar-me? Pediu a rapariga. O recém-chegado abriu os braços e ela, encaixando-se nele, encostou a cabeça ao seu peito e fechou os olhos.
Obrigado, disse ela, já recomposta, passado algum tempo. Não imaginas o que eu estava a precisar de um abraço. Tem um efeito quase milagroso, não achas? O recém-chegado limitou-se a murmurar uma interjeição afirmativa. A teoria geral é que libertam um gás anestesiante, disse a rapariga, retomando o assunto. Suponho que ninguém se surpreendeu quando, uma manhã, eu não estava lá, mas a minha história é diferente. Não acordei aqui, no mesmo estado que os outros. Então? Perguntou, curioso, o recém-chegado, como se estivesse esquecido que o que ouvia não era apenas uma história, mas sim uma cruel realidade onde estava também inserido. Acordei presa a uma espécie de mesa de operações, numa sala que parecia pertencer a um hospital antigo com um quase insuportável cheiro a éter. Pouco depois ouvi uma voz. Uma voz que não pode ser deste mundo, parecia que silvava e saia do fundo de um buraco. Causou-me verdadeiro pavor. O que é que ele disse? Perguntou o recém-chegado, cada vez mais empolgado. Essa é a parte mais estranha, pediu-me desculpa. O quê? Perguntou, incrédulo, o recém-chegado. Sim, respondeu a rapariga, foi perfeitamente educado e pediu-me desculpa porque eu não servia. Não servias? Porquê? E para quê? Indagou o recém-chegado. Não sei, respondeu a rapariga, além de pedir muita desculpa, ele só me disse que a matéria-prima tinha que estar imaculada e que eu não servia. Ainda bem, respondeu apenas o recém-chegado, sorrindo. Corada, desviando os olhos, a rapariga sorriu também.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Arte #4

Porque se referem sempre a “ele”, perguntou o recém-chegado, porque é que acham que é só uma pessoa? Nas poucas e curtas mensagens que já nos deixou escritas assina “Escultor”, respondeu a mulher, mas eu não acredito que ele consiga fazer tudo sem ajuda. Haverá de certeza outros que o ajudam, mas tudo aponta para que seja mesmo à mercê de apenas uma pessoa, humana ou não, que estamos. E o que diziam essas mensagens? Continuou, curioso, o recém-chegado. A mulher enfiou a mão por dentro da camisa suja e esfarrapada e retirou de lá dois pedaços dobrados de papel amarelado e entregou-os ao recém-chegado. Depois de alguns segundos a olhar para os pedaços de papel pousados na palma da sua mão, o recém-chegado pegou num deles e abriu-o. Estava encardido e emanava um cheiro estranho e desagradável. “Dignitários sois de grave prerrogativa” era o que estava escrito, notoriamente a aparo, numa letra extremamente cuidada e floreada. O papel amarelado e a letra manuscrita faziam a mensagem aparentar ter séculos de existência. Voltou a dobrar cuidadosamente o pedaço de papel e, com o mesmo cuidado, abriu o outro. “Compreendei a vossa fortuna” estava escrito na segunda nota, na mesma letra trabalhada. Escultor… O recém-chegado leu alto a palavra que assinava ambas as notas. Escultor… Repetiu para si próprio, dirigindo o olhar para a janela que deixava entrar alguns raios de sol. Dignitários sois de imensa prerrogativa? Compreendei a vossa fortuna? Que merda quer isto dizer? Perguntou o recém-chegado à atmosfera, em tom irritado. Pelo que percebo, ele ou vai recompensar-nos, ou acha que nos está a fazer bem, respondeu a mulher, sem nunca mostrar abalada a sua pacatez. Estás a ver o nível do filho da puta? Disparou o velho, do outro lado da cela. Ainda acha que nos está a fazer um favor, o grande pulha. Se queria ser decente, pelo menos dava-nos alguma escolha. Eu nunca disse que achava bem o que ele nos está a fazer, retorquiu a mulher, apenas elevando a volume da sua voz, mas mantendo no mesmo tom calmo, mas é por isto que acho que ele não nos está a fazer mal apenas para satisfazer um qualquer depravado desejo sádico. Não acho que o objectivo de tudo isto seja apenas fazer-nos sofrer. A última frase foi proferida mais suavemente e dirigida ao recém-chegado, que lhe retribuiu um olhar compreensivo.
O recém-chegado sentou-se ao lado da mulher sem pernas. Sabes, isto pode ser também uma forma cruel de brincar com as nossas mentes, com a nossa sanidade mental, disse baixinho. Claro que pode, respondeu a mulher quase de imediato, não penses que não coloco essa possibilidade, mas, como não tenho provas nem dessa, nem da outra hipótese, e já que não posso fazer nada, prefiro acreditar na que me é mais confortável.
Ele mostra-se, perguntou o recém-chegado, alguém já o viu? Não, respondeu o homem sem braços com a sua voz débil, quando vem buscar alguém, só nos apercebemos quando acordamos. Ele deve usar alguma coisa para nos pôr a dormir profundamente. É um vampiro, um monstro, disse a jovem rapariga, levantando a voz. Não há monstros ou vampiros, disse o velho com alguma irritação na voz, o que há é seres humanos capazes das maiores barbáries. Os monstros somos nós, os maiores monstros que cá andam, e basta conhecer um bocadinho da nossa história ou simplesmente ver as notícias para perceber isso. E a voz? Aquela voz não pode ser humana, gritou a jovem rapariga, roçando a histeria, dizes isso porque nunca lhe ouviste a voz. Ela foi a única com quem ele já falou, esclareceu o homem sem braços, dirigindo-se ao recém-chegado, não sabemos porquê.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

A parte de dentro para fora

“Não é o que metemos dentro de nós que nos define, mas sim aquilo que sai de nós”, disse-me uma vez um amigo. Pessoa muito interessante, constantemente à procura de novas emoções, totalmente agarrado às drogas. Concordo. Acho que estava imerso em razão. É uma pena ter morrido tão jovem…

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Arte #3

A tua calma, apesar de conseguir contagiar um bocado, não deixa de ser desconcertante, disse o recém-chegado, sentando-se ao lado da mulher, como é que consegues estar sempre tão tranquila? Por acaso ganho alguma coisa em enervar-me, em andar em constante amargura? Perguntou pacatamente a mulher, inclinando a cabeça na direcção do velho ao proferir a última frase. Não, de facto não, respondeu o recém-chegado. Pois, continuou a mulher, não ganho nada e, como a forma como lido com a nossa situação não tem qualquer influência na realidade, acho que mais vale manter a calma e aceitar o destino. O que é que ele ganhou com a inconformidade? Concluiu olhando directamente para o velho. Nada, não ganhei nada, gritou o velho lá do fundo no seu quase constante tom agressivo, mas eu não escolho reagir assim, vocês falam como se fosse uma opção e não é. Achas que me faz sentir bem ter este turbilhão dentro de mim que só me deixa pensar nas atrocidades que faria ao filho da puta se o apanhasse? Perguntou amargamente o velho. Não faz, mas é o que me mantém vivo. E cada vez acredito mais que isso não é uma vantagem. Cada vez acredito mais que não ganho nada em manter-me vivo, mas não consigo controlar esta revolta. Se quiseres ter a amabilidade de partilhar o teu segredo, sou todo ouvidos, concluiu sarcasticamente. Não tenho um segredo, nenhuma fórmula mágica, respondeu a mulher com amabilidade, apenas racionalizo a situação e, ao perceber que não há nada que eu possa fazer para mudar a minha situação, conformo-me. É a forma como funciono, apenas isso. Não achas que esse conformismo está num patamar próximo da abjecta cobardia? Perguntou o velho no mesmo tom sarcástico. Não achas que isso é aquilo a que as pessoas chamam sangue de barata? O recém-chegado desviou rapidamente o olhar para o rosto da mulher na esperança de apanhar algum esgar repentino que lhe provasse que conseguia ter emoções. Desejou ver alguma expressão de desagrado face às palavras do velho, fá-lo-iam respeitá-la mais, já que também não concordava com tal apatia, mas isso não aconteceu. A mulher manteve-se impávida e esboçou até um sorriso ao responder. Se houvesse algo que eu pudesse fazer e eu tivesse esta atitude, sim, seria cobardia, sangue de barata ou aquilo que lhe quiseres chamar, disse, mas não havendo, parece-me mais uma postura inteligente do que cobarde. Tens alguma ideia? Perguntou, intrépida, a mulher. Se achas que há alguma coisa que eu possa fazer para nos ajudar, partilha, por favor. O velho grunhiu e virou-se de costas. Foi o que eu pensei, continuou, nesse caso acho que não tens argumentos para criticar a minha postura. Já que vou morrer, ao menos não vou viver todo o tempo que me resta até lá aterrorizada por isso. Acho até que já nada me aterroriza. Achas mesmo que não há absolutamente nada que possamos fazer? Perguntou, desalentado, o recém-chegado. Olha à tua volta, respondeu a mulher, e conta-me qualquer ideia que tenhas.

Após alguns minutos a percorrer a cela com o olhar, o recém-chegado compreendeu a mulher. Não havia nada. Nada que pudesse ser usado como arma, nada que permitisse a alguém acabar com a própria vida, nada. Invadido por uma tristeza avassaladora, deitou-se em posição fetal e ali ficou até finalmente adormecer.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Arte #2

Conseguiu sentir algo semelhante a uma sensação de alívio quando, pouco depois dos primeiros raios de sol começarem a entrar pela pequena janela, os vultos disformes começaram a assumir formas humanas. A sensação foi abruptamente cortada quando as silhuetas se tornaram mais nítidas e o recém-chegado percebeu que algo não parecia normal.

Antes que pudesse processar as informações que o seu cérebro recebia das retinas, uma ranhura abre-se na desgastada, mas robusta, porta de ferro, através da qual um tabuleiro com alimentos foi introduzido no espaço. Lentamente, as figuras distantes aproximaram-se dele e pôde vê-los com revoltante detalhe.

O primeiro que, coxeando, se acercou do tabuleiro era um homem já de alguma idade. Apesar da sua deplorável condição o fazer parecer muito envelhecido, achou que não devia ter muito mais que cinquenta anos. Estava extremamente magro e o seu tronco nu apresentava uma grotesca e retorcida cicatriz que se perdia em direcção às costas. Conforme cambaleava na sua direcção, o recém-chegado deixou cair o queixo ao reparar nas sua órbitas ocas. Os olhos do homem tinham sido cuidadosamente extraídos, dando ao seu rosto a aparência de uma caveira. Quem poderia fazer uma coisa destas a alguém, pensou ainda por um instante antes do homem quebrar o silêncio. Estou a ver que temos mais um, disse roucamente, mas não ocorreu ao filho da puta pôr mais comida! Exclamou, virando o seu grotesco rosto na direcção do recém-chegado ao mesmo tempo que partia, o mais irmãmente que conseguiu, o pão em cinco pedaços. Não precisas de te assustar, eu sei que não tens culpa, acrescentou dirigindo-se ao recém-chegado como se tivesse percebido o temor nos seus olhos. Estamos todos no mesmo barco, concluiu enquanto se sentava mordiscando o seu pedaço de pão.

Quando o homem se calou, o recém-chegado desviou a sua atenção para as outras duas pessoas que se movimentavam. Uma encardida menina, que achou ter entre doze e catorze anos ajudava um homem mais velho a levantar-se. O homem teria algo entre trinta e quarenta anos, o seu estado sujo e subnutrido impedia uma estimativa com mais precisão. A aproximação permitiu confirmar o que a sua silhueta já tinha feito inferir, os seus braços tinham sido amputados. A rapariga ajudou-o a sentar-se e, recolhendo dois pedaços de pão, sentou-se junto dele dando-lho à boca enquanto comia o seu. No momento de silêncio que se seguiu, a rapariga, que não apresentava qualquer mutilação visível, dirigiu o seu olhar ao recém-chegado e nele, este viu a mais intensa comiseração. Estava quase a ir-se abaixo perante o triste fado que a cena e o olhar da rapariga deixavam adivinhar para si, quando uma voz o distraiu.

Então, conseguiste dormir? Podes trazer-me o meu pão, se fazes favor? Virou a cara na direcção da voz e confirmou que provinha da mulher sem pernas. A sua voz era doce, quase maternal e ficou surpreendido ao perceber que conseguiu transmitir-lhe algum alento. Claro, disse o recém-chegado enquanto se apoderava dos dois últimos pedaços de pão. Entregou um à mulher, que lhe sorriu, e deixou-se ficar, pensativo, a olhar para o seu. Não consigo comer, disse após alguns minutos, nauseado com o cheiro e com um nó no estômago causado pelo nervosismo. Com alguma dificuldade dividiu o seu pedaço de pão em quatro partes e distribuiu-as entre os demais que o receberam com um misto de espanto e gratidão.

Em silêncio, o recém-chegado percorreu as paredes com o olhar, várias áreas estavam gravadas com palavras que não conseguia ler de onde se encontrava e, aparentemente, havia quem estivesse a tentar manter um registo do tempo em que se mantinha cativo. O enorme número de toscos traços gravados nessa parede fizeram-no perder toda a esperança que ainda mantinha que o pesadelo não durasse muito. Continuando a sua observação, com um esgar enojado, cerrou os olhos ao deparar-se com o canto de onde provinha o fedor. É um pesadelo, é isso, é só um pesadelo e daqui a pouco vou acordar, pensou.

Deves ter perguntas. A voz retirou-o da sua catatonia e fê-lo abrir novamente os olhos. Provinha do homem sem braços que, apesar da amargura da sua voz, lhe dirigia um olhar empático. Sim, apesar de conseguir adivinhar algumas coisas, quero saber porque estamos aqui, porquê nós, quem é que nos mantém aqui presos, disse em tom algo suplicante. Bom, disse o velho, antecipando-se ao outro homem, os porquês também eu gostava de saber. Quem, continuou após pigarrear para clarear a voz, também não sabemos ao certo, sabemos apenas que é um filho da puta cruel e demente. Demente, sem dúvida, cruel, não sei, interveio a mulher sem pernas. Não acha que ele seja cruel? Perguntou o recém-chegado, olhando atónito para ela. Aqui tratamo-nos todos por tu, disse com a sua estranha calma, e não, não acho, pelo menos, que seja uma crueldade calculada ou propositada. Acho que somos algo como moscas que uma criança guarda dentro de um frasco, continuou, acho que ele não tem realmente consciência do mal que nos faz, qual criança que arranca as asas de uma mosca. Será cruel, de facto, mas não deixa de ser inocente, concluiu cruzando as mãos sobre o ventre. Ele não é humano, disse, aterrorizada, a jovem rapariga, que, assim que o recém-chegado virou para si a sua atenção, baixou a cabeça, olhando timidamente o chão, não é humano, repetiu num sussurro. Então o que é que ele é? Perguntou o recém-chegado à rapariga. Esta, levantou a cabeça apenas o suficiente para que os seus olhares se cruzassem e limitou-se a encolher os ombros. Seja humano ou não, para mim é um filho da puta, disse o velho enquanto se levantava para se dirigir à parede junto de onde tinha dormido e se dedicar a, pacientemente, adicionar, com a unha do polegar da mão direita, mais um risco à incontável fila que lá estava gravada.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Arte #1

O odor fétido que pairava no local invadiu as narinas do recém-chegado assim que acordou. Revolveu-lhe imediatamente o estômago e colocou-lhe na face uma expressão de extrema náusea. Acabas por te habituar ao cheiro, disse uma voz feminina, se precisares de vomitar, tenta usar aquele canto. O recém-chegado levantou a cabeça e vislumbrou a origem da voz. Era uma mulher de meia idade cujas feições, dada a fraca iluminação, não conseguiu distinguir bem, percebendo apenas que era extremamente magra. Com um grande esforço, o recém-chegado elevou o torso, ficando sentado no chão. Semicerrou os olhos numa tentativa de distinguir o contorno da mulher e arregalou-os ao parecer-lhe que não tinha pernas! Estava sentada no chão, encostada a uma parede e, agora que os seus olhos se tinham já habituado à penumbra, percebia facilmente que o seu corpo acabava pouco mais de um palmo abaixo da cintura.

Onde estamos? Perguntou debilmente. E porque é que cheira tão mal? Onde estamos não sei, respondeu a mulher com uma desconcertante calma, mas bem que podemos estar no inferno, concluiu voltando a encostar a cabeça à parede. O cheiro é uma consequência natural da falta de condições sanitárias, mas vai custando cada vez menos suportá-lo.

Com um esforço quase sobre-humano para controlar o medo, o recém-chegado perscrutou o local, fracamente iluminado pela parca luz que entrava por uma clarabóia junto ao tecto. Não conseguiu perceber se o ténue brilho provinha do luar ou de um candeeiro da rua, mas permitiu-lhe distinguir mais três pessoas que pareciam dormir no chão, junto à parede do seu lado direito.

Mas o que é que se passa? Porque é que estamos aqui? A última coisa que eu me lembro é de estar a aproximar-me da porta da minha casa e sentir uma dor aguda. Depois disso só me lembro de acordar aqui. O nervosismo do recém-chegado quase impedia as suas palavras de saírem de forma inteligível. Desculpa, mas estou muito cansada, respondeu a mulher sem pernas, sabes, continuou com a mesma fleuma, ele não nos dá muito para comer. Tenta dormir, terás muito tempo para tentar obter respostas para todas as tuas questões. Não queria ser incomodativo, desculpou-se o recém-chegado, mas, como é que consegues manter essa calma? Perguntou perplexo. Ganho alguma coisa em enervar-me? Perguntou a mulher, em resposta. Não, respondeu, de facto não, mas… Amanhã, interrompeu a mulher, amanhã…

Resignado, o recém-chegado encostou-se à parede e tentou descontrair. Torrentes de pensamentos açulavam-lhe a mente e assolavam-lhe a presença de espírito, cada um mais assustador que o anterior e não conseguiu conter as lágrimas. A noite foi passada em constante luta contra os pesadelos que teve acordado.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Ainda o Ernesto

Almocei ontem com o Ernesto. Já não o via há algum tempo. Está um homem novo, até os olhos brilham de outra forma! Diz que já está noutra. Que cresceu, amadureceu e que as carnes vermelhas já não o fascinam. Diz que encontrou finalmente o verdadeiro e genuíno amor. Tem numa relação estável com um presunto de Barrancos e diz que nunca tinha tido sexo com tal categoria. E a verdade é que se lhe vê a satisfação estampada na cara. Este Ernesto é um prato, é mesmo um daqueles tipos tão decentes que merece mesmo ser feliz. Está até a pensar em mudar-se para o Canadá para poderem casar. Estou tão contente por ele…

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Outra vez o Ernesto

Coitado do Ernesto, anda tão triste. Diz que queria ter relações mais duradouras, mas que, apesar de todos os seus esforços, ao fim de algum tempo as coisas estragam-se e começam a cheirar mal. Tenho mesmo pena dele. É que é um gajo que se vê que tem muito amor para dar e é desolador acompanhar estas desilusões. Eu ainda lhe propus que a congelasse, mas ele diz que ela depois fica demasiado fria na cama.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

O Ernesto

Para mim o Ernesto não deixa de ser um tipo normal. Tem as suas particularidades, claro, mas quem as não tem? É amigo do seu amigo e isso é que interessa. É daqueles tipos de quem é difícil não gostar. Um gajo sentimental, afável, sempre a fazer-nos rir, um porreiraço! O que cada um faz na privacidade do seu lar não é da conta de ninguém, e eu até acho que há ali amor. Que diferença é que me faz que ele esteja perdidamente apaixonado por uma peça do pojadouro? Não deixamos de fazer as nossas cartadas em casa dele por causa disso, já sabemos que não podemos mexer naquele frigorífico e corre tudo bem.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Curtas

È o fazer
È o dar sem pensar em receber
È o prometer e cumprir
È o não omitir
É o sentir
E perante os obstáculos é o nunca desistir

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Motivação

- E vai ela e diz: "mas esse é o meu botão!!!".
- ...
- "Esse é o meu botão!", não percebeste?
- Hã?
- Há algum problema com a tua comida? Porque é que estás a olhar assim para o prato??
- Estava aqui a ver se conseguia perceber a motivação de alguém que põe ervilhas no arroz...

Era tecnológica, my ass

Já temos maravilhas como salsichas de soja, hamburgers de tofu, até farinheiras vegetais… Mas ainda não é possível comer uma peça de fruta feita inteiramente de porco...

(já sei, e não, não planeio fazer carreira, mas que isto andava a precisar de uma idiotice, andava :)

SW - Momentos mais marcantes


quinta-feira, 9 de julho de 2009

segunda-feira, 22 de junho de 2009

A Peça ou Será estúpido?

Não consigo, estou demasiado nervoso, disse o jovem actor, porque é que a primeira cena a sério da minha vida tinha que ser logo um monólogo? Eu também não sei o que é que o encenador viu em ti para achar que este papel tinha que ser teu, mas alguma coisa há-de ter sido, respondeu o segundo actor. Mas o teatro está cheio, e eu não consigo parar de tremer, continuou o jovem actor, como é que eu alinhei nisto? Pois que agora é tarde demais para te acobardares, respondeu o segundo actor com alguma aspereza, aceitaste a responsabilidade, agora tens que cumprir. Vais ver que depois de passarem aqueles momentos iniciais de pânico, a coisa começa a fluir, continuou em tom paternalista, entra no personagem e dá tudo de ti. E no fim… os aplausos, meu caro… quando sentires os aplausos vais querer fazer isto até morrer. Não há sensação que se compare a uma ovação de pé. Agora, vai-te a eles e ajuda-nos a conseguir uma esta noite! Concluiu, numa derradeira tentativa de encorajar o jovem actor a enfrentar a multidão, enquanto o empurrava para o palco.

Assim que a força provocada pelo empurrão desapareceu, num movimento súbito e instantâneo, o jovem actor inspirou e colocou-se muito direito. Já não tremia. Deu duas voltas ao palco, olhando, empertigado, a audiência. Por fim, parou na frente do público e, com uma postura algo napoleónica, começou.

Quem sois vós? Todos vós? A que pensais vir aqui assistir? Teatro? Não, nada disso, pois que não será teatro que vereis. Vereis vida, meus caros, vereis vida desenrolar-se perante os vossos olhos. Vereis pessoas boas, ou talvez não, pessoas más, ou que tiveram apenas azar. Conseguireis saber onde se escondem os Messias? Onde se escondem os Judas? Podeis, ingenuamente, pensar que sim, mas eu garanto-vos que não, meus caros, não sabereis. Preparai-vos, pois os momentos que se seguem poderão mudar as vossas vidas. Poderão tornar-vos novas pessoas e, àqueles que não conseguirem deixar hoje esta sala mais ricos e preenchidos, nada mais posso fazer senão comiserar-vos.

Boquiabertos, o encenador e os outros actores assistiam à cena a partir dos bastidores. O que é que aquele maluco está a fazer? Perguntou, atónito, o segundo actor. Nada daquilo está no guião! Ei, estou a falar contigo! O encenador virou os seus olhos aguados para o outro actor e fitou-o por alguns segundos antes de responder. Genial, disse, emocionado, eu sabia que havia qualquer coisa de especial naquele miúdo. Senti-o mas minhas entranhas. Genial… Repetiu enquanto dirigia novamente a sua atenção para o palco, no momento em que o jovem actor terminava o seu monólogo e que, como que movida por um impulso comum, toda a platéia aplaudia intensa e copiosamente. Com uma vénia suave, em que quase só o seu pescoço se moveu, o jovem actor saiu de cena, transformando-se novamente na pessoa que era antes de ter pisado o palco.

Os seus olhos transbordavam temor quando encontraram os do encenador. Desculpe, não sei o que me deu, disse, envergonhado. Nem acredito que estejas a pedir-me desculpa? Retorquiu o encenador. Foi brilhante, continuou, olha, disse enquanto levantava o braço direito e mostrava ao jovem actor os seus pelos eriçados. Eu vi um brilho especial nos teus olhos, mas nunca pensei que pudesse significar tanto, prosseguiu, visivelmente emocionado. Eu nunca faço isto, mas vamos já alterar os planos. Vou ser eu a representar os teus papéis nas outras cenas e tu vais só entrar entre cada uma delas e improvisar. As pernas do jovem actor fraquejaram e os seus olhos arregalaram-se. Desculpe, mas acho que não consigo, disse o jovem actor com a voz trémula, não tive qualquer controle sobre mim quando estava no palco, não tenho nenhuma garantia de que possa voltar a correr bem. Não te preocupes, respondeu, tranquilizador, o encenador, tu nasceste para isto! Tenho a certeza que vai correr maravilhosamente. Só tens que entrar em cena e vais ver que tudo acontece naturalmente. Bom… Vou dar o meu melhor, respondeu, hesitante, o jovem actor. A cena está a terminar, prepara-te, disse, energicamente, o encenador, quando o último sair do palco, tu entras. Agora, vá! Muita merda, muita merda! Sem pensar, o jovem actor reagiu às palavras que lhe eram dirigidas e invadiu o palco.

Seguiu a orla do palco, fixando os olhos do maior número de espectadores que conseguiu. Ao chegar ao extremo oposto parou por alguns momentos, deu meia volta e começou a falar enquanto percorria a trajectória inversa.

Preparai-vos, meus caros. Preparai-vos para, quando daqui sairdes, enfrentar um novo mundo. Ver novas formas, novas cores. Ver as pequenas coisas da vida com outros olhos. Reparar em pormenores que nunca antes havíeis reparado e compreender a sua importância. Preparai-vos para navegar dentro das vossas próprias mentes, onde fareis mirabolantes viagens de descoberta, onde vos deparareis com o vosso centro, a vossa medula, com o vosso verdadeiro ser. Aí, vereis com clareza o belo e o horrendo, o sublime e o banal, o bem e o mal. Tornar-vos-eis pessoas, pessoas reais e plenas, em vez de vulgares seres humanos. Sei que viestes à procura de algo, de algo magnificente. Pois encontrareis. Não tenhais dúvidas que, se abrirdes as vossas mentes e os vossos corações, encontrareis. Concluiu enquanto abria os braços e deixava a cabeça cair para trás.

Quando o jovem actor se retirou do palco, deparou-se com o encenador de lágrimas nos olhos. Fenomenal, disse-lhe, tens verdadeiramente um dom. Abençoado seja o dia em que entraste neste teatro. Um talento como o teu não se encontra muitas vezes na duração de uma vida. O jovem actor limitou-se a, envergonhado, fixar os olhos no chão. Nem me conheço, disse entre dentes. Não, retorquiu prontamente o encenador, agora é que te estás finalmente a conhecer. Eu compreendo que não pareça, mas aquele és tu. Aquela pessoa que ali esteve está dentro de ti, é parte integrante de quem és. Acredita! Temos agora a última cena, continuou, mas eu quero que entres ainda outra vez depois dela. O público quer mais de ti, tenho a certeza. Quando a cena acabar, entras e fazes a conclusão.

Quando chegou o momento, o jovem actor caminhou lentamente palco adentro, de olhos no chão, acariciando o queixo com um ar pensativo. Quando chegou ao centro do palco, parou, de costas para o público. Será? Disse, introspectivo. Será que foi hoje? Continuou. Será mesmo que foi hoje? Repetiu enquanto se virava e encarava a audiência. Foi hoje que todos partilhámos um momento único, sublime, elevado? Sinto as vibrações, a energia no ar. Sinto as sinergias que acredito terem o poder de nos metamorfosear, transformando-nos em algo mais que meros humanos. Acreditem, meus caros, que hoje sim; hoje aconteceu algo grandioso, majestoso! Todos os nossos corações foram tocados e os nossos horizontes alargados. Acreditem, meus caros, acreditem que nunca mais seremos os mesmos. Acreditem! Concluiu enquanto baixava a cabeça e cruzava as mãos sobre o peito. Permaneceu imóvel naquela posição, de olhos novamente postos nas tábuas puídas do chão. O pano desceu e o público, como que impelido por uma força invisível que o repeliu das cadeiras, levantou-se de imediato e irrompeu num titânico aplauso. Ouviam-se “bravo” inflamados. O êxtase era quase palpável na atmosfera.

O encenador soluçava convulsivamente e as lágrimas escorriam-lhe face abaixo. Obrigado, disse ao jovem actor, entre dois soluços. Obrigado por me teres proporcionado este dia, estas emoções. Sinto que foi o dia mais intenso da minha vida e sim, já não sou o mesmo. Sinto que vou mesmo ver o mundo de outra forma. Acredito! Eu acredito! O jovem actor corou instantaneamente. Eu não sei de onde saiu tudo aquilo, disse, sentia que não era eu quem controlava as minhas acções. Não consigo explicar, mas foi como se, ao pisar o palco, me transformasse automaticamente noutra pessoa. Aquele não era um personagem, respondeu o encenador enquanto tentava recuperar a compostura, era o teu âmago. Hoje nasceste. Hoje, todos nós nascemos.

terça-feira, 26 de maio de 2009

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Curtas

As minhas nuas nas tuas
Deixam sulcos, deixam marcas
Fazem fendas, abrem rachas
Contam histórias de viagens

quarta-feira, 29 de abril de 2009

È um Senhor !!!

http://www.youtube.com/watch?v=Y7VZlzEMaCk

O Olho

Era manhã cedo, estava ainda meio ensonado e não dei qualquer importância à pequena protuberância que senti no crânio enquanto me secava depois do banho. Era na parte lateral, mas suficientemente atrás para não a conseguir ver ao espelho. Uma borbulha, pensei na altura, e não liguei mais. Passados alguns dias, ao passar a mão pela cabeça, voltei a senti-la, parecia maior. Estranhei. Não me doía, mas aparentava estar a crescer. Há-de passar, pensei desta vez, com o meu inato optimismo.

Quando, passada mais de uma semana, voltei a reparar na protuberância, agora já algo do tamanho de um caroço de cereja, uma ponta de preocupação começou a instalar-se. Sempre odiei ir a médicos e só recorro a eles mesmo em casos de manifesta necessidade, por isso resisti à opção e decidi observar mais atentamente o desenvolvimento da situação. Nos dias seguintes, pela observação mais minuciosa do fenómeno, apercebi-me que realmente continuava a crescer e, no espaço de mais uma semana, a protuberância cresceu até ao tamanho de uma pequena azeitona.

Ainda numa posição de resistência a recorrer a um clínico, decidi recorrer à Sílvia, a minha barbeira, como eu lhe chamava, conseguindo uma espécie de tranquilidade infantil, considerando que já estava a recorrer a ajuda profissional. A tranquilidade durou pouco tempo, já que a opinião profissional da Sílvia, depois de observar a protuberância, foi que devia procurar um médico. Pedi que me cortasse o cabelo muito curto, de forma a poder observar melhor o alto.

Em casa, com a ajuda de dois espelhos, a protuberância pareceu-me muito maior do que aparentava ao senti-la com a mão. Ao contrário do que eu pensava, era já algo com um tamanho próximo de um berlinde, mas, na minha atitude normal de desleixo, achei que só parecia muito maior porque tinha agora o cabelo extremamente curto.

Só quando, passados mais alguns dias, calhou enrolar-me com a Ana que, ao pegar-me na cabeça para afundar a minha cara entre os seus seios, gritou assustada, dando um salto para trás, é que finalmente achei que era mesmo imperativo recorrer a ajuda médica. Mexeu-se, disse, horrorizada. É natural, estava a crescer, respondi atónito, já o tinhas sentido antes e nunca reagiste assim. O que é que se passa, perguntei com genuíno espanto. Não é isso, estúpido, respondeu com aquele tom que me fazia adorar quando me chamava aquilo, o alto na cabeça, mexeu-se! A sério, perguntei desconfiado, tens a certeza? Juro-te, senti nitidamente isso a mexer, e foi muito atrofiante. Desculpa lá mas isso cortou o clima e acho que vou andando, disse meio envergonhada, tens mesmo que ir mostrar isso a um médico. Vestiu a camisola à pressa e saiu, visivelmente transtornada. Já não era apenas um alto na cabeça, era algo que começava a interferir com a minha vida, e logo com uma parte que eu prezava bastante. Algo revoltado, decidi que teria mesmo que fazer alguma coisa. Quando, ao apalpar a protuberância, senti também algo a mover-se lá dentro, tive que recorrer a todo o meu sangue-frio para não entrar em pânico. Apesar disso, achei que não podia esperar mais e fui direito ao hospital.

Pois, de facto creio nunca ter visto nada assim, disse o médico, eu diria que era um quisto se não fossem estas pregas na pele que atravessam a protuberância, vamos fazer uma tomografia para podermos ver por dentro. Aguarde aqui um momento, por favor, concluíu enquanto saia para partilhar o caso com um colega. O outro médico entrou e observou-me também. Tem mais alguma coisa assim no resto do corpo, perguntou-me. Não, respondi, é só aí. Siga-me então, vamos fazer o exame.

Aguardava algo ansioso na sala de espera quando entrou o primeiro médico que me tinha examinado. Vinha com um ar algo espantado, o que me provocou algum temor. Faça favor, disse-me enquanto estendia a mão na direcção da sua sala. Entrei, ele entrou a seguir a mim, estendeu novamente a mão, agora na direcção da cadeira e eu sentei-me. O médico observou novamente o meu crânio por alguns momentos e sentou-se também. Depois de uma breve pausa, durante a qual me olhou com alguma estranheza, provocando-me um arrepio na coluna vertebral, quebrou o desconfortável silêncio. É um olho, disse algo bruscamente. Um olho?? Repeti perplexo. Sim, um olho, confirmou, e deixe-me que lhe diga que, em mais de trinta anos de medicina, nunca vi nada assim. Apesar da estranheza do caso, continuou, nem eu nem os colegas a quem pedi aconselhamento achamos que a situação representa algum perigo para a sua saúde, pelo que não pensamos haver razão para alarme. Faremos mais alguns exames e depois podemos discutir as suas opções, sendo que será provável a possibilidade de extracção cirúrgica. Numa questão de segundos imaginei-me um mutante metido numa sala de análise, observado através de um vidro por um magote de cientistas e a ideia assustou-me. Obrigado doutor, disse muito depressa enquanto me levantava, muito obrigado por tudo, voltei a dizer enquanto atravessava a porta em passo acelerado. Ainda o ouvi a pedir-me para esperar, mas não parei até chegar ao carro, onde me meti lestamente, voltando para casa.

Em casa, fiz o meu exame minucioso. Apalpei, olhei, e era nítido que o médico tinha razão, as pálpebras eram já perfeitamente distinguíveis, era mesmo um olho! Algo desnorteado, senti-me fraquejar com o choque e decidi que precisava de descansar. Pensaria no que fazer no dia seguinte.

Quando acordei, nos minutos em que lentamente recuperava a consciência, a minha mente conseguiu enganar-me fazendo-me pensar que toda a história do olho não tinha passado de um sonho, mas, não sei se ao recuperar a razão ou ao passar a mão pela cabeça, a realidade atingiu-me. Era real. Algo assustado, dirigi-me ao espelho e, novamente com a ajuda de outro pequeno espelho, observei demoradamente aquela coisa. O coração quase me saía pela boca quando o olho se abriu! O susto fez-me largar o pequeno espelho que se desintegrou no chão. Foda-se, mais azar, era mesmo o que eu precisava, consegui ainda pensar antes do pavor se apoderar de mim, ao sentir que efectivamente o olho se mexia. Sentia inequivocamente o olho a mexer-se na minha cabeça. Não era, no entanto, uma sensação desagradável, era apenas estranha. Ainda impulsionado pelo pânico, fiz rapidamente um penso com gaze e colei-o na cabeça, tapando o olho. Sentei-me na cama, tentei acalmar-me e pensar no que iria fazer, mas rapidamente se começou a apoderar de mim um estranho desconforto. Não era nada de muito incomodativo, era apenas uma sensação geral levemente desagradável da qual não conseguia perceber a origem e acabei por ignorá-la. Ainda sem saber o que fazer, voltei ao espelho e retirei o penso. Instantaneamente o desconforto desapareceu, tornando claro que se devia ao facto do olho estar tapado. Peguei no caco maior de entre os pedaços do outro espelho que se espalhavam pelo chão e tentei ver o olho. Senti as pernas a fraquejar ao vislumbrar o olho a mover-se freneticamente, olhando parar todo o lado como que tentado perceber o que se passava à sua volta. Mais uma vez o choque me fez largar o pedaço de espelho, que se dividiu em inúmeros pedaços ainda mais pequenos ao atingir o chão.

Abri a água e deixei a banheira encher enquanto varri cuidadosamente os cacos do espelho que se tinham projectado para todos os lados. Deitado na banheira, deixei os músculos descontraírem-se na água quente e, de uma forma semi-deliberada, decidi manter-me em negação em relação à minha condição e fazer a minha vida normalmente. Sequei-me, vesti-me, voltei a tapar o olho com o penso e saí para comer qualquer coisa. O desconforto voltou, comprovando que era provocado pelo tapar daquele estranho olho, mas eu resisti-lhe. Tomei o pequeno-almoço e decidi passear um pouco enquanto fumava um cigarro, mas, apesar de não ser muito desagradável, não conseguia abstrair-me do constante desconforto. Continuei, no entanto, a achar que conseguia continuar a minha vida normalmente. Diria às pessoas que tinha uma ferida ou qualquer coisa assim e viveria normalmente.

Assim fiz. Continuei a minha vida, mas com uma diferença, estava sempre ansioso para ir para casa e poder retirar o penso e fazer desaparecer aquele desconforto. Em casa, depois de ter reposto o espelho partido, passava bastante tempo a observar o estranho olho. Movia-se, parecia mesmo observar o que nos rodeava, mas eu não conseguia ver por ele, era como se fosse independente de mim. Comecei a aceitar que não poderia continuar a viver assim, lembrei-me do episódio com a Ana e percebi que mais tarde ou mais cedo este estranho fenómeno iria ter impactos negativos na minha vida. Apesar disso, mantinha alguma resistência em recorrer a ajuda clínica, não queria ser um objecto de pesquisa, e muito menos ser visto como uma aberração. Para recorrer a médicos, tem que ser numa perspectiva de remover isto sem mais demoras nem exames, pensei enquanto observava o olho na sua aparente azáfama de absorver tudo o que conseguisse visualizar. Estranhamente, senti que não me deveria precipitar, que o aparecimento do estranho apêndice visual poderia trazer-me algum benefício e que poderia via a arrepender-me. Por alguns momentos fantasiei com a ideia de passar a conseguir ver através daquele olho e achei que a possibilidade tinha potencial. Decidi continuar a observar o desenvolvimento do fenómeno antes de tomar uma decisão.

Os dias foram passando e comecei a aperceber-me que, de certa forma, estava a deixar que aquele olho manipulasse a minha vida. Sempre que estava fora de casa, so pensava em voltar para poder retirar o penso e acabar com aquela estranha sensação desconfortável. Tinha também bastantes reservas em partilhar a minha situação com mais alguém, já que achava muito provável que me vissem como algo grotesco. Estava cada vez mais sozinho e um dia obriguei-me a tomar uma decisão. À noite, sentado na cama, prometi a mim mesmo que no dia seguinte procuraria um médico que me extraísse aquilo. Esforcei-me por afastar a sensação de que poderia ainda ter alguma vantagem em ter um olho na parte posterior da cabeça dizendo a mim próprio que tal teria o amargo preço de me tornar, para sempre, uma aberração. Decidido, deitei-me e tentei dormir.

Abri os olhos e a claridade invadiu-me as retinas. Sentia-me estranhamente bem. Estiquei os braços e espreguicei-me vagarosamente. Com uma inspiração profunda, elevei-me e sentei-me na cama. Apercebi-me que, de facto, me sentia maravilhosamente, tanto física, como psicologicamente. Levei a mão à cabeça e fiquei quase eufórico ao perceber que não sentia lá nada de anormal. Passou! Pensei, radiante, Passou! Levantei-me pleno de energia, mas o meu queixo caíu quando olhei para a cama. Ainda meio coberto pelo lençol, estava o que aparentava ser um corpo vazio. Era eu! Era a minha casca vazia que jazia na cama, com um enorme buraco na cabeça.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Curtas

Mãos que tropeçam
Mãos que me agarram
As mãos que me calam quando me rasgam e me prometem o êxtase final

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Hoje, só porque posso, apeteceu-me publicar isto

Nebel - Rammstein

Sie stehen eng umschlungen
Ein Fleischgemisch so reich an Tagen
Wo das Meer das Land berührt
Will sie ihm die Wahrheit sagen

Doch ihre Worte frisst der Wind
Wo das Meer zu Ende ist
Hält sie zitternd seine Hand
Und hat ihn auf die Stirn geküsst

Sie trägt den Abend in der Brust
Und weiß dass sie verleben muss

Sie legt den Kopf in seinen Schoß
Und bittet einen letzten Kuss

Und dann hat er sie geküsst
Wo das Meer zu Ende ist
Ihre Lippen schwach und blass
Und seine Augen werden nass

Der letzte Kuss ist so lang her
Der letzte Kuss, er erinnert sich nicht mehr


http://www.youtube.com/watch?v=2JOdaDMrzeQ

terça-feira, 21 de abril de 2009

Curtas

A boca que me envolve e resolve que sou sua
Me mistura e revolve numa espiral de loucura
Que me abafa e amordaça a dor e o prazer

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Sonhos

Mais uma para o meu piteco.

 

Quem é que esteve na sala dos sonhos? Perguntou o enorme zurbalino com a sua voz grave e possante. Os parrecos entreolharam-se com ar interrogativo durante alguns instantes e, alguns deles encolhendo os ombros, voltaram todos a face na direcção do zurbalino. Alguém roubou um sonho, continuou o zurbalino antecipando a pergunta óbvia, e ninguém sai daqui enquanto não se descobrir quem foi. Contagem! Disse em tom autoritário. Numa reacção imediata, todos os parrecos se colocaram lado a lado em fila. Um! Disse o primeiro parreco enquanto dava um leve piparote na nuca do companheiro ao seu lado. Dois! Disse o segundo, imitando o gesto. Todos os parrecos cumpriram na sua vez, até que o último gritou alto: noventa e nove! Noventa e nove? Repetiu, admirado, o zurbalino. Falta um! Quem?? Gritou. Alguns instantes depois, durante os quais os parrecos voltaram a entreolhar-se, eis que aparece o que faltava, a apertar as calças. O que é que se passa? Já não se pode ir à casa de banho? Perguntou desconfiado ao aperceber-se que todos os olhares incidiam em si.

Afinal parece que estão cá todos, disse o zurbalino, pondo fim ao burburinho que se tinha instalado. O que eu sei é que antes do meu intervalo todos os sonhos estavam no sítio, continuou, caminhando vagarosamente entre os parrecos, e quando voltei, faltava um! Levantou a voz em tom dramático ao terminar a frase. Eu sou um zurbalino compreensivo, continuou, sei que uma sala repleta de sonhos é uma tentação, mas vocês têm que perceber que um sonho não serve para nada se não soubermos o que fazer com ele. Espero que quem o tirou compreenda isso e vou dar-lhe uma oportunidade de se arrepender. Vou dar uma volta até lá fora e espero que, quando voltar, o sonho esteja novamente no sítio. Se isso acontecer, eu esqueço toda a questão, concluiu enquanto dava meia volta e se retirava. Nenhum dos parrecos se mexeu até ao regresso do zurbalino, que, com um visível esforço para manter a calma disse: já vi que o sonho não foi restituído, terei que adoptar medidas mais drásticas. Vocês, parrecos, são muito previsíveis, e não será nada difícil elaborar um método para descobrir qual de vocês é que tem um sonho que não lhe pertence, disse o zurbalino em tom ameaçador, mas a verdade é que não tinha qualquer ideia sobre como fazê-lo. Todos de volta ao trabalho, ordenou, e ninguém sai daqui até eu voltar! Depois de alguns momentos de desorganização, todos os parrecos retomaram os seus lugares e continuaram o seu labor. Com um suspiro, o zurbalino recolheu-se para a sala dos sonhos para pensar numa solução.

Sentado na sua cadeira, como que em busca de inspiração, o zurbalino contemplou os sonhos, meticulosamente organizados nas prateleiras que revestiam todas as paredes. O que é que torna um parreco com um sonho diferente dos restantes? Perguntou, em voz alta, a si mesmo. Haverá certamente uma forma de o detectar, continuou, mas já sem verbalização. De repente, os seus olhos frontais brilharam. É isso, disse levantando-se energicamente, e é tão simples. Basta-me perguntar-lhes o que desejam, certamente o que tiver o sonho vai dizer algo mais elaborado que os outros. Seguro do sucesso da sua ideia, entrou de rompante na oficina dos parrecos, com um sorriso algo maquiavélico. Quero todos em fila para falar com vocês um a um, disse alto. Numa questão de segundos, todos os parrecos estavam alinhados e prontos para o interrogatório. Perguntou a cada um o que desejava e desmoralizou ao receber de todos praticamente a mesma resposta. Todos os parrecos responderam que a única coisa que desejavam era trabalhar na fábrica de sonhos. Frustrado, o zurbalino voltou para a sua sala sem proferir outra palavra.

Menosprezei-o, pensou, já sentado na sua cadeira, ele percebeu que se denunciaria se fosse sincero e respondeu o que sabia que devia responder. Não estou a lidar com um parreco normal… Claro que não estou a lidar com um parreco normal, disse para si, reprimindo-se, a um parreco normal não lhe ocorreria roubar um sonho, estou a lidar com um degenerado, e descobri-lo vai ser um verdadeiro desafio. Tenho que pensar noutra solução. É isso! Disse o zurbalino, saltando da cadeira. Um parreco normal não tem aspirações, mas um que deseja ter um sonho terá de certeza. Vou montar-lhe uma armadilha, anuncio a criação do cargo de líder dos parrecos e ele de certeza que não vai resistir, pensou, com um semblante algo malévolo.

Com ar casual, o zurbalino dirigiu-se à oficina e afixou, falsamente desinteressado, o aviso que tinha composto para servir de isco à sua armadilha. Ficou à espreita e, quando verificou que os parrecos se dirigiam ao aviso, voltou para a sua sala com um sorriso triunfante. É uma questão de tempo até te apanhar, disse o zurbalino num murmúrio, enquanto se sentava. Só me resta esperar, pensou satisfeito. As horas passaram e nenhum dos parrecos apareceu. É mais inteligente que eu pensava, disse, irritado, o zurbalino, falando sozinho. Ou então menosprezei o poder do sonho que ele levou, também pode ser isso, continuou em voz alta, como se estivesse de facto a dialogar consigo próprio e esperasse uma opinião. É isso, a um parreco com um sonho verdadeiro não deve parecer minimamente apelativo ser o líder dos parrecos. Não posso mesmo menosprezar nem este parreco, nem o poder de um sonho. Se calhar estou a dar demasiada importância a isto, talvez o melhor seja não fazer nada e esperar que ele se denuncie. Ele não há-de conseguir resistir para sempre ao poder do sonho e, quando tentar alguma coisa, eu apanho-o. Com este pensamento, o zurbalino deixou-se afundar na cadeira e tentou descontrair. Passando casualmente o olhar pelo monitor que mostrava a oficina, reparou que, enquanto todos os restantes trabalhavam concentrados, um dos parrecos olhava distraidamente para o infinito. Rapidamente o parreco voltou ao trabalho e deixou de se distinguir dos demais, mas algo se iluminou na mente do zurbalino. Porque é que nos matamos a pensar em formas elaboradas e complicadas de resolver os nossos problemas quando a solução normalmente nos surge quando não nos estamos a esforçar para isso? Ponderou o zurbalino. E a verdade é que as soluções normalmente são extremamente simples, mas a nossa tendência para complicar impede-nos de chegar a elas, continuou, bastava-me observar os parrecos à procura de um ar sonhador, tão simples como isso. A verdade é que nunca tinha visto qualquer utilidade neste monitor, nunca tinha tido qualquer tipo de problema com os parrecos, disse para si próprio em jeito de desculpa, e por isso nem me ocorreu usá-lo. Manteve o olhar na imagem e, confirmando a sua teoria, aquele parreco voltou a passar alguns instantes a olhar para o infinito, como que embrenhado em pensamentos. Satisfeito, o zurbalino dirigiu-se à oficina e, subtilmente, disse àquele parreco que fosse até à sua sala e que esperasse por ele, pois precisava de lhe falar. O parreco retirou-se obedientemente e o zurbalino perdeu alguns momentos a informar os outros parrecos que a situação estava resolvida e que podiam retomar o trabalho sem se preocuparem mais com a questão do sonho roubado. Quando se dirigia para a sua sala, meditando sobre a melhor maneira de lidar com o prevaricador, eis que só consegue vislumbrar ao longe o parreco ladrão a sair a correr da sua sala com todos os sonhos que conseguia carregar. Correu o mais que podia, mas o seu corpo volumoso não o permitiu apanhar o parreco antes de este chegar ao pátio. O que é que estás a fazer? Gritou o zurbalino. Sabes que não tens por onde escapar. Quem disse que eu quero escapar, respondeu, seguro, o parreco, eu só quero soltar os sonhos. Soltá-los?? Repetiu, atónito, o zurbalino, porque é que alguém quereria fazer uma coisa dessas? Para que eles possam chegar a qualquer pessoa, retorquiu muito depressa o parreco. Mas isso é uma estupidez, continuou, algo aflito, o zurbalino, é um desperdício gastar um sonho em alguém que não o vai usar devidamente. Quem és tu para saber se alguém merece um sonho ou não? Perguntou o parreco de forma cortante. E mesmo que não se use devidamente, mais vale ter um sonho que não se usa do que não ter nenhum. Nem sei porque estou a debater isto contigo, disse rispidamente o zurbalino, não tens por onde fugir, portanto entrega-me os sonhos e eu serei benevolente. Podes apanhar-me a mim, respondeu o parreco em tom desafiador, mas pelo menos estes sonhos serão livres de ser encontrados por qualquer pessoa, quer saiba o que fazer com eles ou não. Dito isto, o parreco começa a correr à volta do pátio, soltando os sonhos que flutuavam para longe. Não! Gritou o zurbalino enquanto, trôpego, corria na tentativa de os apanhar. Depois de soltar todos os sonhos, o parreco retirou do bolso aquele que tinha roubado inicialmente. Gostava muito de ficar contigo, disse ao sonho, mas já que eu não sou livre, tu podes sê-lo, faz alguém feliz, gritou enquanto o libertava. O sonho, em vez de flutuar para longe como os outros, começou a crescer, a crescer, até que acabou por envolver o parreco e ambos levantaram vôo. O parreco não conseguiu segurar uma genuína gargalhada ao ver o zurbalino lá em baixo a praguejar, agitando um dos seus braços, de punho fechado no ar. Passados alguns momentos, derrotado, o zurbalino deixou cair os braços e deixou-se ficar a ver o parreco, envolto no seu sonho, a afastar-se cada vez mais, até desaparecer no horizonte para nunca mais ser visto.

terça-feira, 14 de abril de 2009

E ela

E ela chora
E ela adora
E ela adora chorar
E ela coitada
E ela deitada
E ela adora que todos a vejam estar para ali a soluçar

segunda-feira, 13 de abril de 2009

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Hilarious #4 & #5

Must really be my lucky day... :


Hi my new friend!

I only wished to write to you the letter and to tell as in general my letter got to you! First I would like to speak a little about myself my name is Nadejda to me 29 years I live in Russian Federation to Kazan. All the others my data and a photo in the appendix to the letter data which is called (my_data_full). I was in International Dating Agency and to me advised yours e-mail the address I do not know whence they him took but they gave me yours e-mail that I could have acquaintance to you. And I only wanted that you have spent about 10 minutes both looked my a photo and my data and received from you the answer you would like to have acquaintance to me or you only would not like this? Tell to me I so only the nobility it much would like. Also I shall wait much your answer. I started to search the man as to me very alone and 29 years and I do not have man if you wish to begin with me correspondence or easier to begin acquaintance tell to me your answer. I shall wait much! I hope your new friend well I hope that I can become for you friend Nadejda!

Can you send me you photo and story life on my e-mail:
nadejdalove2009@gmail.com
P. S. My photo and all data are in archive.

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Hello
My name is: Olga I from Russia city: Perm It washing a photo To me 27 years and I very much would like to find second half for very serious relations To me have told that on the Internet is possible will get acquainted with the good person for an opportunity creation of family.
At me a lot of familiar which have got acquainted on the Internet with men have left abroad because loved each other I very much would like to create family.
I not when was not married and I have no children.
But me of it therefore very much would be wanted try to find the man of the dream I very much would wish to be friends of you and if it is pleasant to you washing a photo write to me I shall necessarily answer you and to this I shall be very glad.
I very much to wait the letter from you
At us very much a big difference in time but I shall try to speak with you as it is possible is more often

Write to me only to my personal e-mail:
ladwertana@gmail.com

It is a lot of kisssssYours Olga

Hilarious #3

Like I show my structure to anyone... Harmonous figure? People in Harmon must love that...


Greetings my lonely friend!!! I Saw your structure today, and it has very strongly interested me!!!! So I have decided to write to you! I would like to get acquainted very strongly with you, for following our firm communications! You as can look at my structure. I think that that it as can interest you! For our first acquaintance I to you to tell it is a little about myself. To me of 29 years. I have a harmonous figure, I learn me with sports and I to conduct a healthy way of life. I shall tell to you more about myself in my first letter to you!!! If my structure of you was interested also by you to want to have with me to correspond that you could write to me on my letter box:. I cannot answer on this web-page of acquaintances to you as I understand here poorly. The best around of much if you will write to me on my electronic address!!

Thus I can answer precisely to you! My friend, I very much hope me, that you can write to me the letter to my personal e-mail:
daryafilli@yahoo.co.uk
! Then I shall write to you more about me and to send you my photo!!! I wish you good afternoon with intimate greetings your new girlfriend Darya !!

Hilarious #2

Rather pretty and rather mature...


Hello friend!

This morning, I have received love the Internet dispatch, from the unknown person to me the addressee. In the given letter, it was spoken about love relations between people. In the list e-mail addressees, I have seen your address. I long thought before writing to you.

I will tell slightly about myself. My name is Mariya. I am 30 years old. I can tell about myself that i am interesting woman with good character, sense of humor, opens in dialogue. I search for serious relations and I will be happy to learn you closer. I don't think that the age and appearance is so important though I am rather pretty. The most important what is inside you and how do you feel about the life.
I know this life from many sides and I am rather mature already to know how to make a man happy. I am interested in acquaintance with you. I have no children, but I want to have children from correct men sometime soon. I search for serious relations and I will be happy to learn you closer. It will be fine if we can exchange some letters and photos. What you search in the woman Tell more about a place where do you live. I will look forward to hearing from you. Ask any questions which interest you. Write me back and I will tell more about me, my life and send me photos. I don't know if you answer me or not. But why not to try? I will regret if not to try. I think we should use every chance to find our happiness. Life is too short to use it only for thinking and dreaming.

Write me your E-mail or please write me only to my personal e-mail: telkasuper@gmail.com I still hope for your reply. Have a good day!!!!!!!

I will finish here. Waiting for the answer with impatience.
Mariya.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Agostinho da Silva

"Se grandes invenções ou descobertas, como o fogo, a roda ou a alavanca, se fizeram antes que o homem fosse, historicamente, capaz de escrever, também se põe como fora de dúvida que mais rapidamente se avançou quando foi possível fixar inteligência em escrita, quando o saber se pôde transmitir com maior fidelidade do que oralmente, quando biblioteca, em qualquer forma, foi testamento do passado e base de arranque para o futuro. A livro se veio juntar arquivo, para o que mais ligeiro se afigurava; e fora de bibliotecas ou arquivos ficaram os milhões de páginas de discorrer ou emoção humana que mais ligeiras pareceram ainda, ou menos duradouras. Escrevendo ou lendo nos unimos para além do tempo e do espaço, e os limitados braços se põem a abraçar o mundo; a riqueza de outros nos enriquece a nós. Leia.
Milhões de homens, porém, no mundo actual estão incapacitados de escrever e de ler, muito menos porque faltam métodos e meios do que incitamento que os levante acima do seu tão difícil quotidiano e vontade de quem mais pode de que seus reais irmãos mais dependam de si próprios do que de exteriores e quase sempre enganadoras salvações. Mais se comunica falando do que de qualquer outra forma; o que nos dizem muitas vezes nos parece de nenhuma importância, mas talvez tenha havido uma falha na atitude de escutar do que no conteúdo do que se disse; porventura a palavra-chave estava aí, mas estávamos distraídos, ou ansiosos por nós próprios falarmos; e no vento fugiu, a outros ouvidos ou a nenhuns. Ouça. No tempo em que a antropologia ainda julgava que o homem descendia do macaco notou-se, para os distinguir, que um, mesmo no estádio mais primitivo, desenhava; o outro, mesmo que antropóide superior, nem olhava o desenho. Imagem nos veio acompanhando pela História fora, desde as pinturas ou gravuras rupestres, cujo verdadeiro significado ainda está por encontrar, até cinema ou televisão, sobre cujo significado igualmente muitas vezes nos podemos interrogar e que se tem de arrancar o mais depressa possível ao domínio do lucro, da publicidade ou das propagandas ideológicas para que possam cumprir, como nas formas mais antigas, a sua missão de iluminar, inspirar e consagrar o mundo. Imagem o cerca. Veja. Mas o que vê e ouve ou lê nada mais lhe traz senão matéria-prima de pensamento, já livre de muita impureza de minério bruto, porquanto antes do seu outros pensamentos o pensaram; mas, por o pensarem, alguma outra impureza lhe terão juntado. Nunca se precipite, pois, a aderir; não se deixe levar por nenhum sentimento, excepto o do amor de entender, de ver o mais possível claro dentro e fora de si; critique tudo o que receba e não deixe que nada se deposite no seu espírito senão pela peneira da crítica, pelo critério da coerência, pela concordância dos factos; acredite fundamentalmente na dúvida construtiva e daí parta para certezas que nunca deixe de ver como provisórias, excepto uma, a de que é capaz de compreender tudo o que for compreensível; ao resto porá de lado até que o seja, até que possa pôr nos pratos da sua balancinha de razão. A tudo pese. Pense."

Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'

quinta-feira, 2 de abril de 2009

quarta-feira, 1 de abril de 2009

sexta-feira, 27 de março de 2009

O Jogo

E é assim que termina a minha história, disse o velho enquanto unia as pontas dos dedos de uma mão às dos da outra, fitando silenciosamente o rapaz à espera de um comentário. O rapaz recostou-se na cadeira, acariciando o queixo enquanto olhava pensativo para a estatueta representando Tangaroa, que repousava numa pequena mesa encostada à parede por trás do velho. Depois de uma inspiração mais profunda que ofereceu às suas narinas o agradável odor do papel envelhecido, encontrou o olhar do seu velho amigo e quebrou o silêncio que se tinha instalado. Nem sei o que dizer, é de facto uma história impressionante, inspiradora até. Como sei que tem bagagem para que eu possa ser perfeitamente sincero e directo consigo, continuou, vou sê-lo: tenho reservas sobre a veracidade de certas partes. Não que ache que me está a mentir, mas estou inclinado para acreditar que o passar dos anos já tenha distorcido um pouco os acontecimentos na sua memória. Sou levado a crer que a história está, digamos, fantasiada. Consigo compreender que tenhas essa opinião, respondeu o velho sem alterar a sua postura nem o seu semblante calmo e seguro de si, é de facto difícil de acreditar, mas garanto-te que estás enganado, tudo aconteceu exactamente como te contei. Mesmo a parte da sereia? Perguntou o rapaz com ar desconfiado. Sim, mesmo essa parte, retorquiu o velho, mas até pensava que houvesse outras partes mais inacreditáveis para ti. Há outras igualmente inacreditáveis, respondeu prontamente o rapaz, mas essa em particular pareceu-me demasiado mitológica para ser mesmo verdade. Muita gente viveu episódios como esse, continuou o velho, mas a grande maioria não se recorda. O canto delas inebria e impede-nos de guardar memórias sobre o que acontece enquanto estamos sob o seu efeito, e por isso é que ninguém acredita que existem. Eu, apesar do feitiço, consegui vê-la como ela realmente era e lembrar-me depois. E porque é que consigo foi diferente? Perguntou o rapaz, levantando uma sobrancelha. A isso não posso responder-te porque não faço a menor ideia, retorquiu o velho, projectando o queixo para a frente, dou-me apenas por satisfeito por poder recordar o momento. Outra parte que me deixa pouco crédulo é a do navio fantasma, continuou o rapaz, parece tão saído daquelas lendas marítimas. Antes de responder, o velho, como que procurando orientação, ou talvez apenas reunindo vagar, passou os olhos pela tela na parede à sua direita, que representava Calypso, serenamente repousando sobre as águas. Como é que achas que surgiram as lendas? Perguntou. Eu aceito que as lendas possam ter algum fundamento real, mas não consigo acreditar que sejam completamente verídicas. Apesar de poderem ser baseadas em acontecimentos autênticos, acabaram por transformar-se em alegorias, retorquiu rapidamente o rapaz, é por isso que lhes chamam lendas. Eu sei o que vi, respondeu rispidamente o velho, vi e senti. Quando avistámos o barco à deriva, sem ninguém, pensámos que era o nosso dia de sorte, mas depressa percebemos que assim não era. Como te contei, eu e muitos de nós começámos a receber pancadas vindas de trás e nunca víamos ninguém quando nos virávamos, e houve mesmo alguns que viram estranhas aparições. E como te disse também, quando, ao percebermos que algo de muito errado se passava e que não seria boa ideia tentar salvar o barco, decidimos voltar, faltavam dois dos nossos companheiros e nunca mais os vimos. Dois bons marinheiros desapareceram sem deixar rasto, e não me parece que tenham tido um destino agradável. Nem sequer pudemos entregar os seus corpos ao mar! Achas que eu ia inventar isto?? Apesar da aparente calma, uma ponta de ira brilhou nos olhos do velho. Não sei se mais algum de nós ainda está vivo, mas não fui o único a testemunhar isto. Todos vimos o barco, e todos o deixámos misteriosamente de ver ao afastarmo-nos apenas algumas dezenas de metros. Depois de ambos perderem alguns momentos perscrutando o intrincado motivo floral que percorria os limites do tecto, o velho baixou a cabeça e, arqueando as sobrancelhas, continuou. Também não acreditas no monstro, não é? Perguntou, mostrando já algum agastamento. Pois… Respondeu, hesitante, o rapaz. Olha, disparou o velho já visivelmente irritado, eu tenho estofo para que sejas sincero comigo, mesmo quando não acreditas em mim, mas pelo menos devias encarar a minha história com a mente aberta, e pelo que vejo, a tua mente é uma caixinha minúscula. É como se tivesses umas palas nos olhos que só te deixam olhar em frente. Espero que a idade te consiga trazer alguma abertura, concluiu o velho recostando-se na cadeira enquanto desviava o olhar do rapaz e o passeava pelas centenas de livros que se alinhavam nas estantes à sua esquerda. Não o queria ofender, desculpou-se o rapaz. E não ofendeste, respondeu prontamente o velho em tom de enfado, apenas me exauriste a paciência, portanto cala-te e joga!