quinta-feira, 31 de julho de 2008

Tempus Fugit - Capítulo 1.1.1

Nunca se tinha sentido tão à-vontade. Durante o momento morto, cuja duração parecia já quase igualar a do restante período, em que se recolhia quando o mundo regressava à normalidade, sentia-se em casa onde quer que estivesse. Estava já tão confiante que, quando começou a ouvir ao longe a voz já conhecida, estava a descontrair deitado num relvado, completamente nu, de braços e pernas abertas. Já não se questionava se tudo seria real, não lhe interessava minimamente se era uma realidade geral ou apenas sua, decidira simplesmente vivê-la enquanto durasse. Ponderou apenas se não seria algo impróprio receber Deus naqueles propósitos, mas, lembrando-se da conversa anterior, decidiu verificar se a história do senso de humor seria mesmo verdade. Seria talvez testar os limites do senso de humor, mas, se Deus realmente o tivesse como afirmara, teria que perceber a ironia cómica inerente ao facto de alguém o receber nu.

- Vejo que estás a desfrutar o teu tempo.

- É verdade, não é que haja mais alguma coisa para fazer, não é?

- Acho bem que o tenhas aproveitado, porque estava a planear começares hoje com as tuas obrigações.

- Isso das obrigações é uma das coisas que queria debater contigo. Não acho muito correcto que não me tenhas dado nenhuma hipótese de escolha. Acho que isto de ser deus não devia ser imposto a ninguém.

- Estás a dizer que não queres?

- Não necessariamente. Mas a verdade é que não tenho a certeza. Não sei se terei o perfil adequado.

- Acho que o facto de não estares já embriagado com a ideia de vires a ter tal poder já é um bom indício de que tens o perfil adequado.

- Mas... Depois não posso voltar atrás, não é? E se eu me arrepender? Terei alguma maneira de te contactar?

- Não, nada disso será possível. Não poderás voltar atrás nem contactar-me. Honestamente, duvido que te venhas a arrepender. Quem é que se arrependeria de ter poder absoluto?

- Eu... por exemplo...

- Será que ajuda se considerares isto como um favor pessoal que me estarás a fazer?

- Bom... Pressão à parte, acho que sim. Como é que se pode recusar um favor a Deus?

- Caso ainda não estejas convencido posso sempre mandar-te uma pragazita. Já estou um bocado destreinado, mas acho que ainda me lembro de algumas.

- Ha ha, boa piada. Afinal tens mesmo senso de humor. Não será necessário, eu aceito. Até já ando um bocadinho farto desta história do momento morto.

- Obrigado. Será esta então a última conversa que teremos.

- Então e o que é que eu tenho que fazer?

- Absolutamente nada. Tudo irá acontecer exactamente... Agora!

Sentiu-se a flutuar no vazio, no meio do nada absoluto. No entanto bastava que um pensamento surgisse para que este automaticamente se materializasse à sua volta. A sua percepção não era em nada comparável à que antes tinha através dos seus sentidos. Era como se todos os seus sentidos tivessem sido extremamente amplificados e reunidos num só. Não se sentia tão diferente como esperava, apenas tinha consciência de absolutamente tudo e, embora aparentemente ainda conseguisse ponderar várias hipóteses e dissertar mentalmente sobre as questões, o conceito de dúvida tinha desaparecido completamente.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Tempus Fugit - Capítulo 1.2

Tinha já perdido completamente a noção da duração actual, naturalmente relativa, do momento morto. Aproveitava-o para passear pelas ruas onde tudo estava estático, parecia que estava dentro de um filme em que alguém tinha pressionado o botão de pausa. A verdade é que já não o incomodava, proporcionava-lhe até um certo conforto, uma sensação de privacidade. Era como se estivesse sozinho no mundo e sabia bem. Tinha consciência que era uma pessoa que lidava bem com a solidão, tinha até já por diversas vezes fantasiado com situações semelhantes, em que estava sozinho no mundo, mas sempre imaginou que, numa situação real não conseguiria ser isento de angústia, que sofreria com a falta de outras pessoas, no entanto estava a concluir que afinal não era verdade. Podia considerar que estava sozinho no mundo, pelo menos durante o momento morto, e isso não lhe provocava qualquer tipo de emoção negativa. Esta questão não deixou de o inquietar. A sensação de conforto não significaria provavelmente nada de bom sobre si. Seria uma pessoa fria e misantropa? De facto sempre se considerou uma pessoa muito mais racional que emocional, mas isto era provavelmente um exagero. Como podia sentir-se bem sabendo que era o único ser num planeta. Planeta? Qual seria a extensão deste fenómeno? Atingiria todo o universo? Pensou. Ocorreu-lhe que nunca se tinha lembrado de observar o céu durante o momento morto. Olhava para o céu, claro, mas não durante tempo suficiente para verificar se a lua se movia ou estaria também estática no firmamento.

Estava a preparar-se para se recostar num banco de jardim a observar o céu quando a sua atenção foi distraída pelo passar de algo que apenas pôde descrever como uma sombra. Algo provocou uma variação da luminosidade que, como tudo o resto, se mantinha completamente estática durante o momento morto. Imediatamente a seguir tudo voltou ao normal. Deixou-se ficar sentado, observando as pessoas a voltar à vida, sem qualquer indício de se terem apercebido que alguma coisa se tinha passado. Mas na sua mente apenas uma questão estava a ser ponderada. O que teria provocado aquela sombra? A não ser que tivesse sido enganado pelos seus sentidos, não era o único a movimentar-se durante o momento morto. Não estava sozinho.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Tempus Fugit - Capítulo 1.1

O tempo passou, ou não, e numa altura em que já sentia que vivia sozinho num mundo só seu, eis que, durante o momento morto, ouve uma voz. Não sabia se seria mesmo uma voz real ou se apenas existia dentro da sua cabeça, mas parecia aproximar-se, até ao ponto de se tornar inteligível.

- Acho que estás pronto.

- Quem és tu? Onde estás?

- Sou conhecido por muitos nomes, mas a verdade é que não tenho nenhum. E... acho que pode dizer-se que estou em todo o lado.

- Pronto! Acho que posso concluir que estou definitivamente louco. Provavelmente até já estou internado num qualquer manicómio e isto está tudo a passar-se dentro do meu cérebro...

- Não precisas de te preocupar. Tudo vai fluir naturalmente. Tenho a certeza que foste a escolha certa. Não soubesse eu tudo.

- Já percebi. Estás em todo o lado, sabes tudo... És Deus, certo?

- Esse é um dos nomes pelo qual sou conhecido.

- Isto pode ser um choque, mas eu não acredito em ti. Talvez não seja um choque porque provavelmente também já sabias isso, não é?

- Sim, sabia e não traz qualquer problema. Não irá provocar qualquer impedimento à realização do meu plano.

- Plano... Tens um plano para mim?

- Sim. É verdade. Apesar de muita gente pensar que tenho um plano para toda a gente, isso não é verdade. São raríssimas as vezes que intervenho na vida das pessoas. Esta é regida quase unicamente pelo livre-arbítrio. A vida de cada um é apenas definida pelas suas próprias opções. Mas para ti, sim, tenho um plano.

- Não fiques a pensar que estou a acreditar nisto tudo, porque não é verdade. Tenho a certeza que tu não existes fora da minha mente e que não és mais que uma manifestação da minha demência. Mas vou entrar no jogo. Qual é o plano?

- Estou cansado. Quero passar as minhas responsabilidades a um substituto e esquecer este universo.

- Boa! Vou ser Deus! Ao ponto a que eu cheguei... Será que vão conseguir curar-me ou estarei condenado a viver o resto da vida nesta espécie de realidade só minha?

- O resto da tua vida é a eternidade. E já te disse que o facto de acreditares não faz diferença nenhuma. O fenómeno que tens andado a experimentar, aquele a que chamaste momento morto, não é mais que uma forma de te ajudar a criar a necessária distância emocional do mundo. Senão ias querer ajudar toda a gente, acabar com a fome, com as doenças, com a crueldade, sem sequer ponderares sobre as possíveis consequências. Lá se ia o livre-arbítrio, não era?

- Como é que sabes que lhe chamei momento morto? Ah, compreendo, se és um produto da minha mente sabes tudo o que eu sei. Mas olha, pelo menos apesar de doido, não estou estúpido. Parece que o meu cérebro ainda consegue fabricar devaneios com algum sentido. Essa do livre-arbítrio está muito boa. Agora a questão é: será que faria sentido se não estivesse demente?

- Acredita no que te for mais confortável, é o que a maioria das pessoas faz.

- Suponho que sim. Então e como é que isso vai acontecer? Vou ter algum tipo de treino? Existe um curso de formação para deus?

- Gosto do teu senso de humor. Foi até uma das razões pelas quais te escolhi. Muita gente pensa o contrário, mas eu tenho senso de humor, gosto de me divertir. O curso, já estás a frequentá-lo há algum tempo e as boas notícias são que não tens que fazer qualquer esforço. Quando o momento chegar, e não falta muito, estarás preparado. Já estás praticamente desligado do que te rodeia, só falta habituares-te à tua nova condição. Quando esse momento chegar, venho oficializar a passagem de responsabilidades e vou desaparecer para o meu merecido descanso.

- E isso vai ser quando? Estás a ouvir-me? Deus?...

A situação era demasiado absurda para continuar a achar que se encontrava mentalmente são. Atingira o ponto da aceitação, estava louco. Provavelmente o estender progressivo do momento morto seria a sua condição a agravar-se cada vez mais, provavelmente para culminar num constante momento morto. E aí? O que faria? Como seria capaz de viver num mundo congelado? Apercebendo-se que todas estas questões lhe ocorriam como um mero processo mental e não como uma preocupação, decidiu simplesmente continuar a viver como até aí, um dia de cada vez, deixando que os acontecimentos surgissem de uma forma natural e espontânea.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Tempus fugit - Capítulo 1

Tinha acabado de cair o minuto doze da primeira hora do dia quando, por um período que não durou mais que um segundo, sentiu que tudo tinha parado à sua volta. Rapidamente tudo voltou ao normal, mas ficou com uma sensação que algo de muito estranho tinha acontecido. O intervalo de tempo tinha sido demasiado curto para permitir que se tivesse apercebido durante o decorrer do fenómeno e quando deu por si a questionar o que teria acontecido já tudo tinha regressado à monótona normalidade.

Não lhe dando qualquer importância, talvez por genuíno desinteresse, talvez por medo de concluir que se tratava do sintoma de um qualquer problema mental, rapidamente se esqueceu do acontecimento e prosseguiu com a sua rotina. No entanto, no dia seguinte, exactamente à mesma hora, quando os onze minutos e cinquenta e nove segundos se transformaram nos doze minutos, o estranho fenómeno voltou a acontecer. Extremamente breve também; no entanto jurava a si mesmo que tinha durado um pouco mais que no dia anterior. Seria talvez quase imperceptível, mas tinha como certo que, enquanto no dia anterior o fenómeno tinha durado certamente menos de um segundo, desta vez aparentava ter durado pelo menos um segundo e meio.

Desta vez não conseguiu calar a voz dentro da sua cabeça que indagava se ele não estaria a desenvolver alguma espécie de demência. No entanto, algo provavelmente comum entre os loucos, descartou incondicionalmente essa hipótese. O que estaria a acontecer, seria perceptível para mais alguém, ponderou. Não era nada que provocasse qualquer tipo de problema ou prejuízo, o único impacto era devido apenas à estranheza que provocava. Parecia apenas que o tempo parava por um instante, mas que o fenómeno não o afectava directamente. Se de facto o tempo parasse e conseguia ter a percepção de que estava a acontecer, era porque para ele o tempo continuava a decorrer, supunha. Supunha também que era extremamente improvável que fosse o único a detectar esta situação pelo que decidiu, caso esta se continuasse a observar, relegando a hipótese de ser algo que apenas acontecia dentro do seu cérebro, debater a questão com alguém para indagar se outros se estaria a aperceber e eventualmente conseguir, pelo menos, teorizar uma explicação.

Embora estivesse curioso e expectante para saber se o fenómeno se iria continuar a repetir, conseguiu não pensar muito mais nisso até se aproximar a hora. No entanto, à meia-noite e onze estava a olhar para o relógio a ver os segundos a passar e a surpresa já nem foi muito grande quando, ao atingir os doze minutos, o relógio parou por um instante antes de prosseguir para o segundo um. Não era já surpresa, mas ficou curioso ao reparar que desta vez o fenómeno, para o qual começava já a pensar num nome, tinha seguramente durado mais de dois segundos.

A curiosidade começava mesmo a ser estimulada, mas a demência também começava a ser uma hipótese mais realista. Começou investigar disfarçadamente se haveria mais gente a ter noção do que estava a acontecer, mas nada apontou para que mais alguém estivesse a experimentar algo de anormal. Durante cerca de uma semana o fenómeno foi continuando a aumentar de duração. Era impossível de saber ao certo, porque durante a ocorrência não havia maneira de medir o tempo. Neste momento parecia já qualquer coisa entre um ou dois minutos, em que tudo à sua volta simplesmente congelava. Nos últimos dias tentava sempre estar na rua, onde houvesse pessoas, e não tinha ainda encontrado ninguém que não ficasse congelado durante o fenómeno que começou a chamar "momento morto".

Não aparentava haver uma relação directa, mas mesmo fora do momento morto começava a sentir-se cada vez mais desligado de tudo o que o rodeava. Passava grandes períodos imerso nos seus pensamentos, em que perdia completamente a noção de tudo. Ficava mesmo abismado quando voltava a si e se apercebia que não conseguia lembrar-se de nada do que tinha acontecido à sua volta, inconsciente do tempo que teria passado desde que começara a dissecar uma ideia dentro do seu cérebro. Mais ou menos directamente, os pensamentos estavam sempre relacionados com o momento morto. Intrigavam-no coisas como o paradoxo de o tempo aparentemente parar. Era algo que não fazia qualquer sentido, o tempo não podia parar, o seu coração continuava a bater, o seu relógio biológico continuava a funcionar, tinha a percepção do que estava a acontecer, portanto o tempo não podia estar parado. Como era possível? O que significaria? Passava horas a ponderar numa explicação para o facto de ser aparentemente a única pessoa a aperceber-se, mas, mesmo por muito absurda que fosse, não conseguia encontrar nenhuma. Sem saber muito bem se seria uma consequência directa ou indirecta do fenómeno, talvez não fosse o fenómeno mas sim o facto de se mostrar cada vez mais meditabundo, sentia-se progressivamente a afastar-se dos outros. Cada vez falava menos com os amigos e se sentia mais desprendido das coisas que normalmente o interessavam. No entanto não era algo que o deixasse triste ou que provocasse qualquer tipo de medo. Sentia-se mesmo desprovido de interesse por todas as coisas e pessoas que existiam no seu mundo e isso fazia com que sentisse o afastamento como uma coisa natural. Este facto, à parte de lhe proporcionar mais tempo de reflexão sobre o seu significado, contribuindo assim também para o afastamento, não lhe causava qualquer outro efeito.

Os meses foram passando e o fenómeno continuava a aparentar estender-se sem que surgisse nada que conseguisse lançar alguma luz sobre a sua causa. Ainda teve um período em que andou intrigado pelo facto de não ter qualquer impulso para usufruir do momento morto, calculava que numa situação destas aproveitaria para apalpar umas raparigas ou para roubar coisas, mas a verdade é que não tinha qualquer vontade de o fazer. Isto fê-lo pensar que o seu desligamento do mundo material e emocional estaria perto do seu clímax. Não se sentia triste nem alegre, simplesmente tranquilo.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

KISS

A kiss could've killed me
If it were not for the rain
A kiss could've killed me
Baby if it were not for the rain

And I had a feeling it was coming on
And I felt it coming
For so long
If I'm to be the fool
Then so it be
This fool can die now
With a heart that's soaked
How
How had it coming
For so long

And darling take my hand
And lead me through the door
Let's kidnap each other
And start singing our song

My heart is charged now
Oh, it's dancing in my chest
And I fly when I walk now
From the spell in that kiss

Cause I ...

It could've
It could've killed me
It could've killed me
If it were not for the rain

Oh darling
let me dream
Cause somewhere inside me
I have been waiting
So patiently
For you

So don't you break
Don't break my dream
Don't break my dream

Let the rain exalt us
As the night draws in
Winds howl around us
As we begin
What a way to start a fire
Broken with the break of day

A kiss could have killed me
If it were not for rain

And I have a feeling it's coming on
And I felt it coming on
for so long

And oh it could've
It could've killed me
It could've killed me
If it were not for the rain

scout niblett featuring bonnie 'prince' billy
"Kiss"

http://br.youtube.com/watch?v=0uDlvl7jNn8&feature=related

As desconcertantes aventuras de Tobias, o bem-intencionado

Episódio 9 - Morte

- Pessoal, tenho uma notícia triste, o Tobias morreu.

- Morreu?? Porra, ele era um chato do caraças, mas era boa pessoa.

- É verdade, quando começava com as merdas dele não havia pachorra, e tinha um bocado a mania que querer impor as ideias dele a toda a gente, mas eu acredito que era sempre com boas intenções.

- Então, mas morreu como?

- Não tenho bem a certeza, mas parece que a última vez que foi visto estava a debater com um grupo de skins a necessidade de se respeitar os pontos de vista alheios.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

As desconcertantes aventuras de Tobias, o bem-intencionado

Episódio 8 - Paciência

- Pois pá, este mundo está todo fodido [...] cheio de gente sem qualquer escrúpulo [...] toda a gente se rege pelo seu ego [...] ninguém se dá ao trabalho de levantar os olhos do seu próprio umbigo [...] a população mundial é consituída por pelo menos oitenta porcento de broncos [...] se toda a gente fosse como eu isto era uma maravilha [...] ninguém andava a tentar lixar ninguém [...] as pessoas respeitar-se-iam...

- Tobias...

- Hã?

- CHUUUUPA-MOS!!!

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Propósito

Se existem casos em que a aplicação da máxima punição prevista no nosso código penal se sente insuficiente, dada a desumanidade dos crimes cometidos e a ausência de demonstração de qualquer tipo de remorso ou arrependimento, este será certamente um desses casos. Estas foram as palavras do juiz. Concluindo com a declaração de que o estado me tinha condenado a 25 anos de encarceramento.

Remorso? Arrependimento? Se compreendessem a extensão dos benefícios dos meus actos, se conseguissem visualizar o quadro geral, congratular-me-iam em vez de esperarem arrependimento. Mas isto já eu esperava. Compreendia que o choque impedisse o entendimento dos benefícios a longo prazo. Tinha no entanto uma grande esperança de que, passado o choque inicial, alguém conseguisse ver a beleza da minha obra. A obra prima de um artista sociológico.

O que eu não esperava era sentar-me naquela cadeira. Estava tudo planeado, esta obra devia ser homenageada postumamente. Tinha considerado bem as possibilidades e decidido não estar disposto a enfrentar as consequências legais dos meus actos. Mas a verdade é que quando chegou o momento, apesar de a minha mente estar decidida e ciente do que era preciso fazer, o meu corpo não respondeu. Limitou-se a permanecer imóvel, desobedecendo às insistentes ordens do cérebro e permitindo que me algemassem e me metessem num carro. Quando finalmente recuperei o controlo era já tarde demais. Esperava-me o desconhecido.

Não só seria humilhante, como uma verdadeira perda de tempo detalhar os acontecimentos dos meus primeiros meses na prisão. O que interessa é que depois de ter removido à dentada uma orelha a um e ter assassinado outro, trespassando-lhe a traqueia com o cabo de uma escova de dentes, os outros reclusos começaram a achar que se calhar mais valia deixarem-me em paz. Não fiquei satisfeito por ter tirado outra vida, mas era a única maneira de conquistar a tranquilidade. O período de isolamento subsequente não foi propriamente difícil, deu-me até tempo para reflectir sobre a minha situação corrente. Quando regressei à comunidade prisional, verifiquei com satisfação que tinha ganho o medo de muitos e até o respeito de alguns. Estava resolvido o meu primeiro problema. Podia agora concentrar-me em decidir o que fazer com a extensão involuntária da minha vida. Tinha decidido abraçar esta nova realidade da forma mais construtiva possível.

Durante o isolamento obriguei-me a reviver na minha cabeça, todos os acontecimentos desde o momento chave. Não queria esquecer-me de nada. O momento mais marcante tinha sido quando me levaram para o tribunal. Enfrentar a multidão em fúria. Embora triste por verificar a prontidão da população em julgar sumaria e violentamente os actos dos outros sem um mínimo esforço por tentar compreender a sua motivação, conseguia identificar-me com eles. Conseguia compreender a sua raiva. Mas as palavras da mãe de uma das raparigas conseguiram ficar-me gravadas na mente "Espero que sejas torturado que tenhas uma morte lenta e agonizante". Apesar de ser perfeitamente compreensível a sua ira, causou-me desconforto a sua crueldade. Aquela pessoa tinha-me mesmo causado uma morte lenta e agonizante se tal lhe tivesse sido permitido. A natureza humana não era totalmente desconhecida para mim, mas foi desconfortável sentir o ódio que o ser humano é capaz de destilar. Entristece-me que aquela senhora permita que a sua dor e a sua desgraça se sobreponham completamente ao benefício para toda a comunidade. Que importância tem o sofrimento de um indivíduo, ou neste caso de alguns indivíduos, relativamente ao bem maior? Ao bem não só de milhões de indivíduos, como de uma sociedade, de uma cultura. Algo que pode até transpor gerações!

Com consciência da dificuldade e até dos possíveis impactos negativos, decidi tentar demonstrar àquela senhora o meu ponto de vista. Não pretendia que ela o aceitasse ou até compreendesse, mas achei que tinha o direito de me defender do seu ódio. Queria também que ela soubesse que não tinha sido nada de pessoal. Que alguém teria que ser escolhido e que tinha sido para o benefício da sociedade em geral.

Certamente haveria controlo sobre as mensagens de correio electrónico da prisão. Mas não foi difícil abrir uma brecha no sistema de forma a ultrapassar o controlo. O mais difícil foi descobrir o endereço da senhora, mas a minha perseverança venceu e consegui estabelecer contacto.

Sem pressas, escrevi cuidadosamente a minha primeira mensagem. Foi algo como:

"Cara Senhora,

Não numa tentativa de obter perdão ou de me desculpar, gostaria que pelo menos tivesse consciência da minha visão dos acontecimentos que, pela minha mão, mudaram as nossas vidas.

Pela minha perspectiva existem demasiados conflitos no mundo. Muitos deles entre pessoas que partilham sentimentos, pessoas que se amam, mas que no entanto se magoam sem sequer pensar uma segunda vez. O orgulho do ser humano é tal que somos capazes de não só magoar alguém que amamos, como virar-lhe as costas de seguida.

Muita gente opta por não pensar nisso, mas a qualquer momento uma pessoa querida pode desaparecer para sempre. Nos momentos de ira e nos subsequentes, em que não pedimos desculpa apenas por absurdo orgulho, isso nem sequer nos passa pela cabeça e muita gente vive depois com a mágoa de ter perdido a pessoa sem ter corrigido a situação, sem ter exprimido os seus sentimentos. Com a mágoa irreversível de se ter perdido uma pessoa importante, tendo as últimas palavras a ela dirigidas sido palavras ofensivas, de ódio até, por vezes.

Muita gente, talvez até a maioria, não concordará comigo, aceito, mas eu acredito piamente que alguma coisa teria que ser feita. Acredito que a nossa sociedade precisava que lhe fosse recordado que as palavras e acções que dirigimos aos outros podem muito bem ser as últimas. E acredito também que, apesar da dor que sei que lhe causei, que um bem superior foi atingido. Acredito que os meus actos, pelos quais estou a pagar ao abrigo da lei, apesar de terem afectado um pequeno grupo de pessoas, tiveram um benefício que ultrapassa o prejuízo. Acredito que o conhecimento da minha, ou deveria talvez dizer da nossa história, terá o seu impacto positivo na sociedade. Que muitas pessoas, quando magoarem deliberadamente as que as rodeiam, irão lembrar-se de nós, lembrar-se que a pessoa que magoaram não estará lá para sempre e isso ajudará a que não sobreponham o orgulho ao amor.

Compreendo a sua dor. Compreendo o ódio que provavelmente sentirá por mim. Quero apenas que saiba que, não só não houve qualquer questão pessoal da minha parte, alguém teria que ser, e que o meu objectivo nunca foi causar-lhe dor ou transtorno. E, provavelmente não ajuda a superar a mágoa, mas a sua filha contribuiu, da forma mais nobre possível, para o bem comum."

Demorou mais de duas semanas, mas a resposta veio. O meu coração acelerou desmesuradamente quando vi que a mensagem tinha chegado. A minha expectativa quanto à reacção da senhora fez-me até sentir algum medo de a ler, mas isso era algo que eu não conseguiria evitar. Era então como segue:

"Sabe, primeiro achei que só me tinha enviado esta mensagem para me fazer sofrer ainda mais. Que não era mais que o explorar da situação que nos relaciona para dela retirar mais algum prazer cruel. Mas a verdade é que retive as suas palavras e não consegui evitar reflectir sobre elas. Fiquei perplexa ao verificar que, nos raros momentos em que consegui interpretá-las sem a interferência dos sentimentos, da inimaginável dor que os seus actos me causaram, elas conseguem fazer sentido.

Não tenho ainda a certeza que isto, para si, não passe de um doentio passatempo. Quem sabe para ocupar o tempo livre que agora deve ter em excesso, mas, assumindo que a sua mensagem foi sincera, consigo, para meu espanto, compreendê-lo.

Sim, já lhe dirigi muito ódio. Não me orgulho disso mas houve momentos em que se tivesse tido a oportunidade, teria descarregado em si a minha ira de formas que só uma mente tremendamente afectada seria capaz de conceber. Mas isso já passou, peço-lhe até que me desculpe pelo que lhe disse no dia do julgamento. Compreendi que esse ódio me fazia pior que a mágoa que o provocou e a verdade é que a sua carta conseguiu mesmo ter um efeito positivo em mim. Quando se perde alguém tão importante, a única questão que nos ocorre é «Porquê?». E a verdade é que na grande maioria dos casos não existe resposta para essa questão. No entanto creio que, a sua mensagem serviu pelo menos para me proporcionar uma resposta a essa eterna questão. Pode não ser uma resposta em que eu acredite, mas não deixa de ser uma resposta. Isto porque, apesar de compreender os seus motivos, mais uma vez assumindo que são verdadeiros, não pense que concordo consigo, porque discordo completamente. E esta posição não é por ter sido a minha filha, teria a mesma opinião se tivesse sido outra pessoa qualquer. Quem lhe deu o direito de tomar essa iniciativa? Quem lhe pediu para tornar o mundo melhor? E o que lhe faz pensar que daqui a um ano alguém ainda se vai lembrar? Sabe, eu acho que, mascarado por essa aparente boa intenção, existe algo próximo de um complexo de deus. Acho que o verdadeiro móbil para os seus actos não foi ajudar a sociedade mas sim dar algum significado à sua vida.

Apesar do que me fez sofrer, agradeço a sua mensagem, acredite que sim. No entanto reservo-me o direito de duvidar do seu altruísmo."

Apesar de ter ficado algo magoado pela dúvida da senhora em relação à minha motivação, achei que não era nada comparado com a mágoa que lhe provoquei a ela e que era talvez até merecida. Ultrapassada esta questão, apenas consegui sentir uma enorme alegria, quase euforia. A senhora tinha compreendido a minha perspectiva e tinha agora, pelo menos, um indício de que a tragédia que sobre ela se abateu não lhe tinha sido pessoalmente dirigida. O meu impulso inicial foi responder à sua mensagem. Não só para reafirmar que o meu objectivo não é amplificar a sua mágoa, como também para admitir perante ela que de facto tem um argumento forte na questão do altruísmo. Talvez até expor a minha visão sobre as questões que me colocou relativas ao meu direito, ou falta dele, para tomar a iniciativa que tomei. Ponderei bastante, não queria mesmo que a pobre senhora sofresse mais do que o inevitável, mas, depois de ler inúmeras vezes a sua resposta, convenci-me que já que formulou os seus argumentos em forma de pergunta, seria lícito responder-lhe. O que fiz da seguinte forma:

"Caríssima Senhora,

Correndo o risco de, dada a situação que nos fez deixar de ser completos estranhos, poder ser considerado de péssimo gosto, a sua resposta trouxe-me uma grande satisfação. Creio que pelo menos acreditou que não há qualquer razão para que os meus actos lhe tenham sido pessoalmente dirigidos e isso só por si já é para mim uma vitória.

Dou-lhe também todo o direito de duvidar da minha motivação e confesso que a sua teoria não é completamente desprovida de sentido. Diria mais, a sua mensagem fez-me ponderar e concluir que é provável que tenha alguma razão. Que o sentimento que me moveu não tenha sido altruísta a cem por cento. Sim, é verdade que serviu também para dar algum significado à minha vida e é perfeitamente credível que este objectivo existisse, embora mascarado pelo que eu considerei o principal. Mas apesar disto, continuo a acreditar que o benefício próprio não foi o factor mais importante ou que tenha sido o que me levou a efectivar o meu plano.

Relativamente às questões que me colocou, é minha firme crença que contribuir para o bem da comunidade não é um direito dado por alguém; é sim um dever de cada um de nós. Pergunta-me quem me pediu, quem me deu o direito. Eu acho que esse é um dos problemas da sociedade moderna, uma falta cada vez maior de iniciativa. Não, não podemos estar à espera que nos peçam ou que nos atribuam oficialmente o direito para fazermos algo que acreditamos ser benéfico para a comunidade. Quanto a essa questão, vejo os meus actos mais como um dever que como um direito. Quanto à memória colectiva deste acontecimento e dos ensinamentos que consegue proporcionar, não posso garantir que ela perdure tanto quanto seria desejado, mas posso garantir-lhe que não foi executado sem planeamento e atenção a essa questão. O meu plano foi minuciosamente estudado e a extensão foi aquela que, através de estudo sociológico e de situações similares no passado, concluí que teria o impacto mais eficaz. Claro que isso me proporcionou o estatuto de monstro, mas creio firmemente que com isso consegui que tudo o que aconteceu não seja facilmente esquecido e que ao longo dos anos continue a haver pessoas a estudar e interpretar a minha, chamemos-lhe obra.

Por fim, correndo novamente o risco de cair no mau gosto, proporcionou-me também uma grande satisfação saber que consegui contribuir para a aceitação, ou pelo menos para a racionalização da sua perda."

Tinha consciência que provavelmente não receberia resposta, mas não conseguia evitar uma permanente esperança. Consultava o correio constantemente e, provocando-me um misto de espanto e prazer, o diálogo continuou. Mais que isso, começava a poder considerar-se que se estava a estabelecer uma relação. A resposta foi mais afável, e acredito que revelava até alguma aceitação da situação. A mente humana tem um grande poder de racionalização, e enchia-me de satisfação estar a perceber que esta pessoa tinha capacidade de ultrapassar a mágoa e compreender friamente tudo o que estava envolvido. Posso até afirmar sem qualquer dúvida que a minha iniciativa em contactar a senhora estava a transformar a minha vida. Tinha cumprido o meu objectivo, estava a pagar por isso, e inevitavelmente tinha ficado um vazio, uma ausência de propósito. Esta possibilidade de expor a minha motivação a uma das pessoas mais directamente afectada pelo meu plano proporcionou uma lufada de ar fresco numa vida praticamente desprovida de significado. Estava até a ser muito mais do que eu alguma vez poderia ter esperado. Estava mesmo a conseguir comunicar eficazmente com a senhora, estava mesmo a existir compreensão e parecia que cada vez mais esta se estava a conseguir sobrepor à dor.

A resposta foi então a seguinte:

"O meu instinto inicial foi esquecer a sua mensagem, esquecer que existe, mas a verdade é que à medida que invariavelmente reflicto sobre toda esta situação, quando a mágoa esmorece um bocadinho e a razão vem ao de cima, as suas palavras não deixam de fazer sentido. Diria mais, fazem sentido ao ponto de me assustar e levam-me a continuar a responder-lhe. Será absurdo? Saudável? Trocar ideias com o assassino da minha filha? Sinceramente não sei, mas a verdade é que o efeito em mim tem sido mais benéfico que prejudicial. No entanto acho que qualquer pessoa que soubesse deste diálogo provavelmente me consideraria tão demente como o consideram a si. Algo que cada vez acredito mais ser falso, chegando até a começar a acreditar que, no seu caso, aquilo a que chamam loucura será mesmo um caso de excesso de lucidez. Como deve calcular, este tipo de pensamentos choca violentamente com as feridas emocionais que tudo isto me provocou e não consigo agora evitar uma sensação de injustiça. A verdade é que não sou tão optimista em relação ao efeito benéfico dos seus actos. Não só porque não tenho tanta confiança na memória colectiva, como temo que a grande maioria das pessoas não terá conseguido compreender o verdadeiro cerne de toda esta história. Involuntariamente, isso começa a provocar-me a sensação de que, apesar da importância da sua motivação, do seu principal objectivo, o desaparecimento da minha filha terá sido em vão caso a mensagem que pretendeu transmitir não chegue aos seus destinatários.

Não sem ainda algumas dúvidas da minha coragem e capacidade para o fazer, dou por mim a questionar se não faria sentido contribuir para a transmissão dessa mensagem. Se não daria mais sentido à minha dor aperceber-me que de facto o objectivo estava a ser cumprido e que as pessoas tinham realmente compreendido. Questiono-me se será correcto fazê-lo, se conseguirei ser compreendida, mas a verdade é que cada vez me parece fazer mais sentido."

Nem conseguia acreditar! Uma das pessoas menos prováveis para aceitar a minha decisão era a que se demonstrava mais compreensiva. E a verdade é que tudo fazia sentido, a sua vontade de contribuir para o significado de tudo isto era das coisas mais lógicas que me conseguiam ocorrer. Estava abismado com a força e o poder racional desta pessoa. Nunca pensei que tal pudesse acontecer, que a mãe de uma das vítimas pudesse tornar-se minha cúmplice na transmissão da minha mensagem, e no entanto era de uma lucidez assombrosa. Não conseguia evitar uma certa sensação de que estaria a usá-la para os meus propósitos, mas ela tinha razão, não bastam os objectivos ou as motivações. É necessário que estes sejam cumpridos para que tudo isto consiga fazer algum sentido. E era inegável que esta aliada era preciosa e que, por muito estranho que pudesse parecer, tínhamos neste momento um objectivo comum.

Com algum receio que a última mensagem pudesse ter sido fruto de um momento e que a senhora talvez pudesse ter já mudado de ideias, respondi com uma mensagem simples, dizendo apenas que compreendia perfeitamente o que dizia e sentia e que, caso o quisesse, agradecia vigorosamente a sua contribuição para o espalhar da verdadeira mensagem por detrás daquilo que era considerado um dos piores casos de homicídios em série da história do nosso país, uma grande tragédia, portanto. Dispus-me a contribuir de todas as formas que me fossem possíveis. Elogiei a sua lucidez e agradeci também a sua compreensão.

Na sua resposta limitou-se a pedir-me que lhe fornecesse uma espécie de manifesto. Um texto em que explicasse o meu lado da história e os motivos que me tinham levado a cometer tais actos.

Nervosamente elaborei o texto que me era pedido, tentei ser o mais explícito e sensível que conseguia e acabei por chegar a uma versão que me satisfez, que acreditava conseguir demonstrar a minha perspectiva. Como já estão bem explícitos os meus objectivos e motivações, não há necessidade de transcrever aqui este manifesto.

Enviei-o, perguntando qual era o seu plano para a divulgação e a resposta foi quase apaixonante. A senhora tinha já tudo planeado, primeiro iria começar por tentar esclarecer as famílias das outras vítimas, procurando ajuda para difundir a mensagem. Iria usar o seu papel privilegiado na situação. Prometeu manter-me ao corrente da situação e nos dias seguintes não consegui dispensar atenção para mais nada. Passava todo o meu tempo livre a verificar o correio e comecei mesmo a temer que isto se estivesse a tornar uma obsessão. A ansiedade foi difícil de suportar, mas, quase uma semana depois, tive notícias.

"A desmotivação já quase me venceu. Como já esperava, os familiares das outras vítimas reagiram como se eu tivesse endoidecido. Nem um conseguiu compreender e começam mesmo a evitar-me. Falei à comunicação social numa perspectiva de que algo de bom pudesse advir da minha perda, citei o seu manifesto e a única coisa que consegui obter foi o telefonema de um psicólogo de um qualquer gabinete de apoio a vítimas. Faço questão de acreditar que o fracasso não foi total. Que a mensagem conseguiu atingir algumas pessoas e que terá tido algum efeito, mas seria irrealista achar que este impacto terá sido mais que meras migalhas comparadas com o nosso objectivo. Não conseguiremos nada desta forma. Acho que o seu plano foi subdimensionado, terá que se ir mais além."

Confesso que fiquei assustado. Começava a acreditar que a senhora poderia vir a tomar uma atitude exagerada e irreflectida. Apesar de querer transmitir a minha mensagem, não queria de maneira nenhuma influenciar outros ao ponto de julgarem seu o meu propósito. No entanto ela provavelmente tinha razão quando dizia que o plano teria sido subdimensionado. Nesta sociedade tipo fast food as coisas passam muito depressa, devia ter previsto. E a verdade é que queria mesmo que a comunidade compreendesse a mensagem que quis transmitir.

Decidi tentar não exercer mais influência e respondi apenas com um singelo parágrafo:

"Cada um é livre e senhor da sua vida. No entanto, temo que esteja a absorver para si um propósito alheio. Só lhe peço que reflicta muito bem antes de tomar uma atitude da qual se venha a arrepender."

Ainda no mesmo dia recebi a seguinte resposta:

"Agradeço a sua preocupação, mas a verdade é que, mesmo antes da sua última mensagem chegar a mim, a minha decisão já tinha sido tomada. Neste momento já não consigo voltar para trás, estou demasiado envolvida e acho mesmo que, pela primeira vez na minha vida, tenho um propósito, um objectivo mais elevado para a minha vida. O seu plano serviu-me de inspiração, mas foi, sem qualquer dúvida, demasiado brando. Para o impacto que pretendemos, tem que ser algo em muito maior escala, algo que deixe de facto uma marca indelével na sociedade. Agradeço a orientação que me deu, creio que poderia mesmo chamar-lhe iluminação. É indescritível a maravilhosa sensação quando chegamos ao ponto de ter uma verdadeira justificação para estarmos vivos. Já não tenho dúvidas que este é mesmo o meu propósito, que foi para isto que nasci e todos os acontecimentos até agora foram, não a causa, mas causados por este meu propósito. Nunca me senti tão plena. Cabe-me a mim terminar o trabalho que começou e, acredite, ninguém se vai esquecer tão depressa. As proporções serão tais que será comentado, estudado e explorado de tal forma que acredito conseguir cumprir o nosso objectivo. Esta será portanto a última mensagem de correio que receberá da minha parte, no entanto tenho a certeza que receberá a próxima de outra forma. Obrigada por tudo e bem haja."

Foi com verdadeiro assombro que li a mensagem, no entanto decidi não responder. Achei que devia deixar a senhora tomar as suas decisões sem mais influência da minha parte e achava mesmo que ela reconsideraria. Que a sua última mensagem tivesse sido fruto de um momento emocional e que mais tarde ou mais cedo perdesse a coragem.

Apesar de tudo, tenho que admitir que foi de orgulho a lágrima que verti quando, semanas mais tarde, li a notícia no jornal.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

As desconcertantes aventuras de Tobias, o bem-intencionado

Episódio 7 - Ego

- Ó Tobias, tens que controlar essa cena de dar pála.

- Mas, mas... eu gosto de ouvir a música alto e o ar condicionado está avariado, portanto tenho que abrir a janela.

- Por acaso esqueceste-te de com quem estás a falar, Tobias?

- Pronto, está bem, desculpa. Sim, apesar de o que eu disse ser verdade, também gosto de dar uma certa pála quando estou a curtir um alto som. Nem sei muito bem que pála é que tento dar, mas admito que ainda não consegui ser isento de cagança. Satisfeito?

- Sim, obrigado. Estares a tentar dar-me a volta seria uma incomensurável estupidez.

- Incomensurável estupidez? Queres falar de estupidez? E aquela tua cena com aquela gaja que me estava a dar bola ontem? Não terá sido também incomensuravelmente estúpida?

- Tobias... ela tinha uma cena no crânio. Nem sei o que era aquilo. Seria um quisto?

- Porra, porque é que tens que ser assim? A rapariga até podia ser uma excelente pessoa, e nem era nada feia. Mas como tinha um quisto no crânio, pronto, está riscada. Não percebes que isso é uma cena altamente superficial? Não ter qualquer interesse por uma pessoa só por causa de uma simples característica física é contra tudo aquilo em que acredito.

- Por acaso já imaginaste estares com ela num momento íntimo, passares-lhe a mão pelo cabelo e sentires aquilo?

- Bom, está bem, provaste a tua posição. Tens razão, seria... No mínimo esquisito... Nada agradável, de certeza.

- Tobias, Tobias... Consegues ser tão ingénuo, quase infantil. Tenho que te explicar sempre tudo.

- Ah, cérebro... O que seria de mim sem ti? Só tu é que me compreendes.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

As desconcertantes aventuras de Tobias, o bem-intencionado

Episódio 6 - Opiniões

- Não acho que haja coisa mais odiosa que pessoas que não têm fibra. Pessoas influenciáveis que se moldam ao meio em que estão inseridos. Pessoas cuja opinião depende de quem a está a ouvir. Acho que nem pessoas são, são algo entre um verme e um camaleão. Desprezo-as!

- Foda-se, Tobias! Agora tenho que estar a apanhar com os teus exageros? Eu sei que tinha pedido o bitoque. Mas depois quando o resto do pessoal pediu o entrecosto, apeteceu-me também entrecosto e mudei o pedido. E tu não tens nada a ver com isso!