segunda-feira, 21 de julho de 2008

Propósito

Se existem casos em que a aplicação da máxima punição prevista no nosso código penal se sente insuficiente, dada a desumanidade dos crimes cometidos e a ausência de demonstração de qualquer tipo de remorso ou arrependimento, este será certamente um desses casos. Estas foram as palavras do juiz. Concluindo com a declaração de que o estado me tinha condenado a 25 anos de encarceramento.

Remorso? Arrependimento? Se compreendessem a extensão dos benefícios dos meus actos, se conseguissem visualizar o quadro geral, congratular-me-iam em vez de esperarem arrependimento. Mas isto já eu esperava. Compreendia que o choque impedisse o entendimento dos benefícios a longo prazo. Tinha no entanto uma grande esperança de que, passado o choque inicial, alguém conseguisse ver a beleza da minha obra. A obra prima de um artista sociológico.

O que eu não esperava era sentar-me naquela cadeira. Estava tudo planeado, esta obra devia ser homenageada postumamente. Tinha considerado bem as possibilidades e decidido não estar disposto a enfrentar as consequências legais dos meus actos. Mas a verdade é que quando chegou o momento, apesar de a minha mente estar decidida e ciente do que era preciso fazer, o meu corpo não respondeu. Limitou-se a permanecer imóvel, desobedecendo às insistentes ordens do cérebro e permitindo que me algemassem e me metessem num carro. Quando finalmente recuperei o controlo era já tarde demais. Esperava-me o desconhecido.

Não só seria humilhante, como uma verdadeira perda de tempo detalhar os acontecimentos dos meus primeiros meses na prisão. O que interessa é que depois de ter removido à dentada uma orelha a um e ter assassinado outro, trespassando-lhe a traqueia com o cabo de uma escova de dentes, os outros reclusos começaram a achar que se calhar mais valia deixarem-me em paz. Não fiquei satisfeito por ter tirado outra vida, mas era a única maneira de conquistar a tranquilidade. O período de isolamento subsequente não foi propriamente difícil, deu-me até tempo para reflectir sobre a minha situação corrente. Quando regressei à comunidade prisional, verifiquei com satisfação que tinha ganho o medo de muitos e até o respeito de alguns. Estava resolvido o meu primeiro problema. Podia agora concentrar-me em decidir o que fazer com a extensão involuntária da minha vida. Tinha decidido abraçar esta nova realidade da forma mais construtiva possível.

Durante o isolamento obriguei-me a reviver na minha cabeça, todos os acontecimentos desde o momento chave. Não queria esquecer-me de nada. O momento mais marcante tinha sido quando me levaram para o tribunal. Enfrentar a multidão em fúria. Embora triste por verificar a prontidão da população em julgar sumaria e violentamente os actos dos outros sem um mínimo esforço por tentar compreender a sua motivação, conseguia identificar-me com eles. Conseguia compreender a sua raiva. Mas as palavras da mãe de uma das raparigas conseguiram ficar-me gravadas na mente "Espero que sejas torturado que tenhas uma morte lenta e agonizante". Apesar de ser perfeitamente compreensível a sua ira, causou-me desconforto a sua crueldade. Aquela pessoa tinha-me mesmo causado uma morte lenta e agonizante se tal lhe tivesse sido permitido. A natureza humana não era totalmente desconhecida para mim, mas foi desconfortável sentir o ódio que o ser humano é capaz de destilar. Entristece-me que aquela senhora permita que a sua dor e a sua desgraça se sobreponham completamente ao benefício para toda a comunidade. Que importância tem o sofrimento de um indivíduo, ou neste caso de alguns indivíduos, relativamente ao bem maior? Ao bem não só de milhões de indivíduos, como de uma sociedade, de uma cultura. Algo que pode até transpor gerações!

Com consciência da dificuldade e até dos possíveis impactos negativos, decidi tentar demonstrar àquela senhora o meu ponto de vista. Não pretendia que ela o aceitasse ou até compreendesse, mas achei que tinha o direito de me defender do seu ódio. Queria também que ela soubesse que não tinha sido nada de pessoal. Que alguém teria que ser escolhido e que tinha sido para o benefício da sociedade em geral.

Certamente haveria controlo sobre as mensagens de correio electrónico da prisão. Mas não foi difícil abrir uma brecha no sistema de forma a ultrapassar o controlo. O mais difícil foi descobrir o endereço da senhora, mas a minha perseverança venceu e consegui estabelecer contacto.

Sem pressas, escrevi cuidadosamente a minha primeira mensagem. Foi algo como:

"Cara Senhora,

Não numa tentativa de obter perdão ou de me desculpar, gostaria que pelo menos tivesse consciência da minha visão dos acontecimentos que, pela minha mão, mudaram as nossas vidas.

Pela minha perspectiva existem demasiados conflitos no mundo. Muitos deles entre pessoas que partilham sentimentos, pessoas que se amam, mas que no entanto se magoam sem sequer pensar uma segunda vez. O orgulho do ser humano é tal que somos capazes de não só magoar alguém que amamos, como virar-lhe as costas de seguida.

Muita gente opta por não pensar nisso, mas a qualquer momento uma pessoa querida pode desaparecer para sempre. Nos momentos de ira e nos subsequentes, em que não pedimos desculpa apenas por absurdo orgulho, isso nem sequer nos passa pela cabeça e muita gente vive depois com a mágoa de ter perdido a pessoa sem ter corrigido a situação, sem ter exprimido os seus sentimentos. Com a mágoa irreversível de se ter perdido uma pessoa importante, tendo as últimas palavras a ela dirigidas sido palavras ofensivas, de ódio até, por vezes.

Muita gente, talvez até a maioria, não concordará comigo, aceito, mas eu acredito piamente que alguma coisa teria que ser feita. Acredito que a nossa sociedade precisava que lhe fosse recordado que as palavras e acções que dirigimos aos outros podem muito bem ser as últimas. E acredito também que, apesar da dor que sei que lhe causei, que um bem superior foi atingido. Acredito que os meus actos, pelos quais estou a pagar ao abrigo da lei, apesar de terem afectado um pequeno grupo de pessoas, tiveram um benefício que ultrapassa o prejuízo. Acredito que o conhecimento da minha, ou deveria talvez dizer da nossa história, terá o seu impacto positivo na sociedade. Que muitas pessoas, quando magoarem deliberadamente as que as rodeiam, irão lembrar-se de nós, lembrar-se que a pessoa que magoaram não estará lá para sempre e isso ajudará a que não sobreponham o orgulho ao amor.

Compreendo a sua dor. Compreendo o ódio que provavelmente sentirá por mim. Quero apenas que saiba que, não só não houve qualquer questão pessoal da minha parte, alguém teria que ser, e que o meu objectivo nunca foi causar-lhe dor ou transtorno. E, provavelmente não ajuda a superar a mágoa, mas a sua filha contribuiu, da forma mais nobre possível, para o bem comum."

Demorou mais de duas semanas, mas a resposta veio. O meu coração acelerou desmesuradamente quando vi que a mensagem tinha chegado. A minha expectativa quanto à reacção da senhora fez-me até sentir algum medo de a ler, mas isso era algo que eu não conseguiria evitar. Era então como segue:

"Sabe, primeiro achei que só me tinha enviado esta mensagem para me fazer sofrer ainda mais. Que não era mais que o explorar da situação que nos relaciona para dela retirar mais algum prazer cruel. Mas a verdade é que retive as suas palavras e não consegui evitar reflectir sobre elas. Fiquei perplexa ao verificar que, nos raros momentos em que consegui interpretá-las sem a interferência dos sentimentos, da inimaginável dor que os seus actos me causaram, elas conseguem fazer sentido.

Não tenho ainda a certeza que isto, para si, não passe de um doentio passatempo. Quem sabe para ocupar o tempo livre que agora deve ter em excesso, mas, assumindo que a sua mensagem foi sincera, consigo, para meu espanto, compreendê-lo.

Sim, já lhe dirigi muito ódio. Não me orgulho disso mas houve momentos em que se tivesse tido a oportunidade, teria descarregado em si a minha ira de formas que só uma mente tremendamente afectada seria capaz de conceber. Mas isso já passou, peço-lhe até que me desculpe pelo que lhe disse no dia do julgamento. Compreendi que esse ódio me fazia pior que a mágoa que o provocou e a verdade é que a sua carta conseguiu mesmo ter um efeito positivo em mim. Quando se perde alguém tão importante, a única questão que nos ocorre é «Porquê?». E a verdade é que na grande maioria dos casos não existe resposta para essa questão. No entanto creio que, a sua mensagem serviu pelo menos para me proporcionar uma resposta a essa eterna questão. Pode não ser uma resposta em que eu acredite, mas não deixa de ser uma resposta. Isto porque, apesar de compreender os seus motivos, mais uma vez assumindo que são verdadeiros, não pense que concordo consigo, porque discordo completamente. E esta posição não é por ter sido a minha filha, teria a mesma opinião se tivesse sido outra pessoa qualquer. Quem lhe deu o direito de tomar essa iniciativa? Quem lhe pediu para tornar o mundo melhor? E o que lhe faz pensar que daqui a um ano alguém ainda se vai lembrar? Sabe, eu acho que, mascarado por essa aparente boa intenção, existe algo próximo de um complexo de deus. Acho que o verdadeiro móbil para os seus actos não foi ajudar a sociedade mas sim dar algum significado à sua vida.

Apesar do que me fez sofrer, agradeço a sua mensagem, acredite que sim. No entanto reservo-me o direito de duvidar do seu altruísmo."

Apesar de ter ficado algo magoado pela dúvida da senhora em relação à minha motivação, achei que não era nada comparado com a mágoa que lhe provoquei a ela e que era talvez até merecida. Ultrapassada esta questão, apenas consegui sentir uma enorme alegria, quase euforia. A senhora tinha compreendido a minha perspectiva e tinha agora, pelo menos, um indício de que a tragédia que sobre ela se abateu não lhe tinha sido pessoalmente dirigida. O meu impulso inicial foi responder à sua mensagem. Não só para reafirmar que o meu objectivo não é amplificar a sua mágoa, como também para admitir perante ela que de facto tem um argumento forte na questão do altruísmo. Talvez até expor a minha visão sobre as questões que me colocou relativas ao meu direito, ou falta dele, para tomar a iniciativa que tomei. Ponderei bastante, não queria mesmo que a pobre senhora sofresse mais do que o inevitável, mas, depois de ler inúmeras vezes a sua resposta, convenci-me que já que formulou os seus argumentos em forma de pergunta, seria lícito responder-lhe. O que fiz da seguinte forma:

"Caríssima Senhora,

Correndo o risco de, dada a situação que nos fez deixar de ser completos estranhos, poder ser considerado de péssimo gosto, a sua resposta trouxe-me uma grande satisfação. Creio que pelo menos acreditou que não há qualquer razão para que os meus actos lhe tenham sido pessoalmente dirigidos e isso só por si já é para mim uma vitória.

Dou-lhe também todo o direito de duvidar da minha motivação e confesso que a sua teoria não é completamente desprovida de sentido. Diria mais, a sua mensagem fez-me ponderar e concluir que é provável que tenha alguma razão. Que o sentimento que me moveu não tenha sido altruísta a cem por cento. Sim, é verdade que serviu também para dar algum significado à minha vida e é perfeitamente credível que este objectivo existisse, embora mascarado pelo que eu considerei o principal. Mas apesar disto, continuo a acreditar que o benefício próprio não foi o factor mais importante ou que tenha sido o que me levou a efectivar o meu plano.

Relativamente às questões que me colocou, é minha firme crença que contribuir para o bem da comunidade não é um direito dado por alguém; é sim um dever de cada um de nós. Pergunta-me quem me pediu, quem me deu o direito. Eu acho que esse é um dos problemas da sociedade moderna, uma falta cada vez maior de iniciativa. Não, não podemos estar à espera que nos peçam ou que nos atribuam oficialmente o direito para fazermos algo que acreditamos ser benéfico para a comunidade. Quanto a essa questão, vejo os meus actos mais como um dever que como um direito. Quanto à memória colectiva deste acontecimento e dos ensinamentos que consegue proporcionar, não posso garantir que ela perdure tanto quanto seria desejado, mas posso garantir-lhe que não foi executado sem planeamento e atenção a essa questão. O meu plano foi minuciosamente estudado e a extensão foi aquela que, através de estudo sociológico e de situações similares no passado, concluí que teria o impacto mais eficaz. Claro que isso me proporcionou o estatuto de monstro, mas creio firmemente que com isso consegui que tudo o que aconteceu não seja facilmente esquecido e que ao longo dos anos continue a haver pessoas a estudar e interpretar a minha, chamemos-lhe obra.

Por fim, correndo novamente o risco de cair no mau gosto, proporcionou-me também uma grande satisfação saber que consegui contribuir para a aceitação, ou pelo menos para a racionalização da sua perda."

Tinha consciência que provavelmente não receberia resposta, mas não conseguia evitar uma permanente esperança. Consultava o correio constantemente e, provocando-me um misto de espanto e prazer, o diálogo continuou. Mais que isso, começava a poder considerar-se que se estava a estabelecer uma relação. A resposta foi mais afável, e acredito que revelava até alguma aceitação da situação. A mente humana tem um grande poder de racionalização, e enchia-me de satisfação estar a perceber que esta pessoa tinha capacidade de ultrapassar a mágoa e compreender friamente tudo o que estava envolvido. Posso até afirmar sem qualquer dúvida que a minha iniciativa em contactar a senhora estava a transformar a minha vida. Tinha cumprido o meu objectivo, estava a pagar por isso, e inevitavelmente tinha ficado um vazio, uma ausência de propósito. Esta possibilidade de expor a minha motivação a uma das pessoas mais directamente afectada pelo meu plano proporcionou uma lufada de ar fresco numa vida praticamente desprovida de significado. Estava até a ser muito mais do que eu alguma vez poderia ter esperado. Estava mesmo a conseguir comunicar eficazmente com a senhora, estava mesmo a existir compreensão e parecia que cada vez mais esta se estava a conseguir sobrepor à dor.

A resposta foi então a seguinte:

"O meu instinto inicial foi esquecer a sua mensagem, esquecer que existe, mas a verdade é que à medida que invariavelmente reflicto sobre toda esta situação, quando a mágoa esmorece um bocadinho e a razão vem ao de cima, as suas palavras não deixam de fazer sentido. Diria mais, fazem sentido ao ponto de me assustar e levam-me a continuar a responder-lhe. Será absurdo? Saudável? Trocar ideias com o assassino da minha filha? Sinceramente não sei, mas a verdade é que o efeito em mim tem sido mais benéfico que prejudicial. No entanto acho que qualquer pessoa que soubesse deste diálogo provavelmente me consideraria tão demente como o consideram a si. Algo que cada vez acredito mais ser falso, chegando até a começar a acreditar que, no seu caso, aquilo a que chamam loucura será mesmo um caso de excesso de lucidez. Como deve calcular, este tipo de pensamentos choca violentamente com as feridas emocionais que tudo isto me provocou e não consigo agora evitar uma sensação de injustiça. A verdade é que não sou tão optimista em relação ao efeito benéfico dos seus actos. Não só porque não tenho tanta confiança na memória colectiva, como temo que a grande maioria das pessoas não terá conseguido compreender o verdadeiro cerne de toda esta história. Involuntariamente, isso começa a provocar-me a sensação de que, apesar da importância da sua motivação, do seu principal objectivo, o desaparecimento da minha filha terá sido em vão caso a mensagem que pretendeu transmitir não chegue aos seus destinatários.

Não sem ainda algumas dúvidas da minha coragem e capacidade para o fazer, dou por mim a questionar se não faria sentido contribuir para a transmissão dessa mensagem. Se não daria mais sentido à minha dor aperceber-me que de facto o objectivo estava a ser cumprido e que as pessoas tinham realmente compreendido. Questiono-me se será correcto fazê-lo, se conseguirei ser compreendida, mas a verdade é que cada vez me parece fazer mais sentido."

Nem conseguia acreditar! Uma das pessoas menos prováveis para aceitar a minha decisão era a que se demonstrava mais compreensiva. E a verdade é que tudo fazia sentido, a sua vontade de contribuir para o significado de tudo isto era das coisas mais lógicas que me conseguiam ocorrer. Estava abismado com a força e o poder racional desta pessoa. Nunca pensei que tal pudesse acontecer, que a mãe de uma das vítimas pudesse tornar-se minha cúmplice na transmissão da minha mensagem, e no entanto era de uma lucidez assombrosa. Não conseguia evitar uma certa sensação de que estaria a usá-la para os meus propósitos, mas ela tinha razão, não bastam os objectivos ou as motivações. É necessário que estes sejam cumpridos para que tudo isto consiga fazer algum sentido. E era inegável que esta aliada era preciosa e que, por muito estranho que pudesse parecer, tínhamos neste momento um objectivo comum.

Com algum receio que a última mensagem pudesse ter sido fruto de um momento e que a senhora talvez pudesse ter já mudado de ideias, respondi com uma mensagem simples, dizendo apenas que compreendia perfeitamente o que dizia e sentia e que, caso o quisesse, agradecia vigorosamente a sua contribuição para o espalhar da verdadeira mensagem por detrás daquilo que era considerado um dos piores casos de homicídios em série da história do nosso país, uma grande tragédia, portanto. Dispus-me a contribuir de todas as formas que me fossem possíveis. Elogiei a sua lucidez e agradeci também a sua compreensão.

Na sua resposta limitou-se a pedir-me que lhe fornecesse uma espécie de manifesto. Um texto em que explicasse o meu lado da história e os motivos que me tinham levado a cometer tais actos.

Nervosamente elaborei o texto que me era pedido, tentei ser o mais explícito e sensível que conseguia e acabei por chegar a uma versão que me satisfez, que acreditava conseguir demonstrar a minha perspectiva. Como já estão bem explícitos os meus objectivos e motivações, não há necessidade de transcrever aqui este manifesto.

Enviei-o, perguntando qual era o seu plano para a divulgação e a resposta foi quase apaixonante. A senhora tinha já tudo planeado, primeiro iria começar por tentar esclarecer as famílias das outras vítimas, procurando ajuda para difundir a mensagem. Iria usar o seu papel privilegiado na situação. Prometeu manter-me ao corrente da situação e nos dias seguintes não consegui dispensar atenção para mais nada. Passava todo o meu tempo livre a verificar o correio e comecei mesmo a temer que isto se estivesse a tornar uma obsessão. A ansiedade foi difícil de suportar, mas, quase uma semana depois, tive notícias.

"A desmotivação já quase me venceu. Como já esperava, os familiares das outras vítimas reagiram como se eu tivesse endoidecido. Nem um conseguiu compreender e começam mesmo a evitar-me. Falei à comunicação social numa perspectiva de que algo de bom pudesse advir da minha perda, citei o seu manifesto e a única coisa que consegui obter foi o telefonema de um psicólogo de um qualquer gabinete de apoio a vítimas. Faço questão de acreditar que o fracasso não foi total. Que a mensagem conseguiu atingir algumas pessoas e que terá tido algum efeito, mas seria irrealista achar que este impacto terá sido mais que meras migalhas comparadas com o nosso objectivo. Não conseguiremos nada desta forma. Acho que o seu plano foi subdimensionado, terá que se ir mais além."

Confesso que fiquei assustado. Começava a acreditar que a senhora poderia vir a tomar uma atitude exagerada e irreflectida. Apesar de querer transmitir a minha mensagem, não queria de maneira nenhuma influenciar outros ao ponto de julgarem seu o meu propósito. No entanto ela provavelmente tinha razão quando dizia que o plano teria sido subdimensionado. Nesta sociedade tipo fast food as coisas passam muito depressa, devia ter previsto. E a verdade é que queria mesmo que a comunidade compreendesse a mensagem que quis transmitir.

Decidi tentar não exercer mais influência e respondi apenas com um singelo parágrafo:

"Cada um é livre e senhor da sua vida. No entanto, temo que esteja a absorver para si um propósito alheio. Só lhe peço que reflicta muito bem antes de tomar uma atitude da qual se venha a arrepender."

Ainda no mesmo dia recebi a seguinte resposta:

"Agradeço a sua preocupação, mas a verdade é que, mesmo antes da sua última mensagem chegar a mim, a minha decisão já tinha sido tomada. Neste momento já não consigo voltar para trás, estou demasiado envolvida e acho mesmo que, pela primeira vez na minha vida, tenho um propósito, um objectivo mais elevado para a minha vida. O seu plano serviu-me de inspiração, mas foi, sem qualquer dúvida, demasiado brando. Para o impacto que pretendemos, tem que ser algo em muito maior escala, algo que deixe de facto uma marca indelével na sociedade. Agradeço a orientação que me deu, creio que poderia mesmo chamar-lhe iluminação. É indescritível a maravilhosa sensação quando chegamos ao ponto de ter uma verdadeira justificação para estarmos vivos. Já não tenho dúvidas que este é mesmo o meu propósito, que foi para isto que nasci e todos os acontecimentos até agora foram, não a causa, mas causados por este meu propósito. Nunca me senti tão plena. Cabe-me a mim terminar o trabalho que começou e, acredite, ninguém se vai esquecer tão depressa. As proporções serão tais que será comentado, estudado e explorado de tal forma que acredito conseguir cumprir o nosso objectivo. Esta será portanto a última mensagem de correio que receberá da minha parte, no entanto tenho a certeza que receberá a próxima de outra forma. Obrigada por tudo e bem haja."

Foi com verdadeiro assombro que li a mensagem, no entanto decidi não responder. Achei que devia deixar a senhora tomar as suas decisões sem mais influência da minha parte e achava mesmo que ela reconsideraria. Que a sua última mensagem tivesse sido fruto de um momento emocional e que mais tarde ou mais cedo perdesse a coragem.

Apesar de tudo, tenho que admitir que foi de orgulho a lágrima que verti quando, semanas mais tarde, li a notícia no jornal.

1 comentário:

Tindergirl disse...

Valeu a pena a espera :)
Agora a espera fica deste lado...