quarta-feira, 20 de julho de 2005

Ela

Lá vem ela, linda como sempre, a mulher que eu amo, que qualquer partícula minha ama até à mais ínfima partícula dela. Com a sua regularidade precisa, lá vinha ela por entre as mesas da esplanada, acabando por sentar-se à mesa habitual, duas mesas à minha frente. Pede o seu garoto, encosta-se, abre o seu livro, sacode o cabelo de uma forma que me faz estremecer e começa a ler. É exactamente neste momento do dia que perco a noção do tempo, fico ali, como que suspenso fora do mundo, mundo onde só ela existe. Nesse momento ela é minha e eu sou o homem mais feliz do mundo. É por ela que me levanto de manhã, porque ela é o estereótipo da perfeição, a suavidade com que fala com o empregado, a subtileza com que se move, o seu andar leve, como se flutuasse. Como é que eu podia não amá-la assim, era impossível! Tudo era perfeito, sentia-me pleno e feliz, apaixonado por ela e por tudo! Embora o tempo não significasse nada, ela leu durante um pouco menos que uma hora, pagou e saiu, eu, naturalmente já tinha pago e saí uns metros atrás dela hipnotizado pelo movimento do seu corpo, sentia que existia uma força invisível que me puxava, que se quisesse parar as pernas não obedeceriam, mas eu não queria parar. Ela parou à porta de casa, entrou e eu segui para a minha,
Como normalmente, depois de jantar escrevi-lhe uma carta, e deitei-me cedo, para conseguir levantar-me a tempo de a ver sair. Pensei nela enquanto não adormeci deleitando-me com o facto de ela preencher completamente a minha vida.
Como sempre, levantei-me cedo, despachei-me e parei na esquina para o melhor momento da minha manhã, em que a via sair de casa e entrar no carro da colega que lhe dava boleia. Pronto, estava começado o dia da melhor maneira. Era sempre um momento fugaz, mas sem ele nem sequer concebia a ideia de fazer mais alguma coisa, acho que se ela não aparecesse eu ficava ali, eternamente parado na esquina.
À tarde, já estava eu na esplanada com a ansiedade normal à espera que ela chegasse, quando ela apareceu. Reparei que a única mesa vazia era exactamente à minha frente! Ultrapassei o repentino momento de pânico e consegui evitar fugir dali a correr, respirei fundo e disse para mim mesmo que o risco era mínimo, se nem era provável ela reparar em mim, muito menos seria ela tentar qualquer tipo de contacto; acalmei-me e desfrutei da proximidade quando ela se sentou. Quando o vento soprava conseguia sentir o seu perfume, inspirei-o como se fosse mais importante que o próprio ar, e era; era inebriante, tão inebriante que quando me apercebi ela estava a olhar directamente para mim! Numa fracção de segundo apoderou-se de mim um pavor incontrolável que não diminuiu quando me apercebi que ela sorria. Congratulei-me pelo meu hábito de pagar logo a despesa e desapareci dali num ápice. Ainda com o aroma dela nas narinas, dei-me ao trabalho de cheirar quase todos os perfumes de uma loja até encontrar o que ela usava, mas assim que o identifiquei compreendi que não era a mesma coisa, não era o mesmo aroma, era vazio, sem essência. Claro que não era o mesmo, faltava o cheiro dela aliado ao do perfume. Compreendendo que não me serviria para nada não comprei o perfume, e saí da loja deixando a empregada a praguejar qualquer coisa relacionada com umas pessoas que, segundo me pareceu, só lá iam para chatear. Jantei ali perto e fui para casa, onde me sentei a escrever-lhe uma carta, passadas cerca de duas horas pousei a caneta, dobrei as folhas, meti-as no envelope e fechei-o. Com a mesma solenidade de sempre, guardei a carta justo das outras, na gaveta da cómoda; pensei que brevemente ia ter que libertar outra gaveta para as cartas e deitei-me a pensar: Porque sorria ela? Não podia correr riscos destes! E se ela falasse comigo? Uma só frase podia deitar tudo a perder! Tenho que ser mais cuidadoso! Decidi que passaria a observá-la do banco do jardim ao lado da esplanada.

No dia seguinte, como em todos os outros, depois do meu momento matinal de plenitude, e do período do dia em que sinto não existir realmente, lá estava eu, desta vez sentado no banco do jardim, com um jornal para tapar a cara, quando ela chegou com a sua pontualidade quase mecânica que ainda me fazia amá-la mais, se é que tal era concebível. Reparei que não trazia o livro e desconfiei. Abri o jornal e fiquei a observá-la pelo canto descaído. Ela parecia descontraída, observando as pessoas à sua volta. Não estava muito satisfeito com a distância a que tinha que estar, mas era melhor jogar pelo seguro. No entanto, toda esta alegada segurança foi ruindo à medida que o empregado se aproximava de mim com uma cerveja na mão. – É da parte daquela senhora. Disse perante o meu olhar boquiaberto. – Se quiser, está convidado a sentar-se na mesa dela. Demorei alguns segundos a reagir e respondi que por educação iria aceitar a cerveja, mas que, por favor, dissesse à senhora que não podia conhecê-la. Observei o empregado a voltar, falar com ela e perante o meu espanto, enquanto eu pensava que ela iria sentir-se ferida no orgulho e nunca mais olhar para mim, eis que com um sorriso ela ergue o seu copo na minha direcção numa atitude tão pacífica que aparentava uma perfeita compreensão e respeito pela minha decisão. Fiquei abismado, esta mulher era única, verdadeiramente perfeita! Senti algo a percorrer o meu corpo partindo da zona do peito e espalhando-se em todas as direcções, de dentro para fora, quase temi explodir quando aquela sensação chegasse à pele, mas senti que irradiou de mim como uma onda de energia. Nunca mais fui o mesmo a partir desse momento, foi nesse momento que me apercebi da dimensão que o amor podia atingir. Abriu-me as perspectivas, nunca pensei que fosse possível amar alguém assim, mas era! Um sentimento avassalador que me fazia sentir que a qualquer momento deixaria de caber dentro de mim. Não consegui evitar as lágrimas que nem sabia se eram de alegria ou de tristeza, pensei que eram simplesmente lágrimas de amor e afastei-me com a sensação de que o chão estava mais macio que antes.

Cheguei a casa e comecei a escrever-lhe outra carta. Um ronco do estômago fez-me reparar na pilha de páginas que já tinha escrito, a pilha de páginas fez-me aperceber que já deviam ter passado várias horas, informação que o relógio confirmou, tinham já passado mais de quatro horas. Admoestei-me porque devia estar já a dormir, se de manhã não me conseguisse levantar a tempo de a ver nunca me conseguiria perdoar. Naturalmente que mesmo que quisesse, nunca conseguiria deixar-me dormir demais, e à hora precisa vi-a sair. Como sempre já tinha a sua boleia à espera, mas quando o carro arrancou ela pôs o braço de fora e acenou. Acenou para quem? Não parecia ter sido para ninguém que estivesse ali, ninguém respondeu. Fiquei apreensivo, as coisas não estavam a correr como eu tinha previsto, ela não devia tentar aproximar-se de mim, ela nem devia saber que eu existo! Pensei que devia desaparecer por algum tempo mas sabia que nunca conseguiria, e ao fim da tarde lá estava eu outra vez, sentado no banco do jardim a tentar controlar o pânico que o atraso dela, que já ia em mais de dois minutos, me estava a provocar. Ao olhar nervosamente para o relógio uma outra vez senti o aroma. Completamente petrificado, ali fiquei a sentir o seu perfume, o perfume da mulher que eu idolatrava, paralisado por um tempo que tanto pode ter sido uma fracção de segundo como uma hora, ao fim do qual, consegui virar lentamente o pescoço para o lado de onde vinha o aroma e lá estava ela, sorriso aberto e sincero, linda como só ela podia ser, a proximidade permitiu-me adivinhar a textura da sua pele que acariciei mentalmente. Não sei quanto tempo passou até ela falar, mas por mim podia ter sido a eternidade, se ela não tivesse falado, teria ficado ali para sempre, e para sempre seria feliz. Mas ela quebrou o silêncio com um: “Então? Por aqui outra vez?”. A suavidade da sua voz fazia parecer que todo o ruído à volta deixava de existir, sentia que quando ela falava, todos os outros sons se calavam em sinal de respeito. Abri a boca para responder, mas as palavras não saíram. Tentei de novo. Nada. Ela, não perdendo o sorriso, disse: – Não é preciso dizeres nada, podemos só desfrutar da companhia e da paz deste fim de tarde. Seria este momento real? Não seria mais uma das minhas fantasias? Parecia tudo estranhamente perfeito, ela ali ao meu lado, sem necessidade de palavras. Parecia até que me compreendia! Deixei-me ficar e o tempo ficou suspenso até ao momento em que ela se levantou e, com a sua natural simpatia se despediu com um inquietante “Então, até amanhã!”. A muito custo consegui produzir um pequeno aceno com a cabeça, e fiquei a vê-la a afastar-se tentando digerir o momento. Uma parte de mim queria dizer-lhe o que sentia, queria abraçá-la, beijá-la, passar com ela o resto da vida. Queria que ela passasse a fazer parte da minha vida, não apenas nos efémeros momentos em que a conseguia observar, mas sempre, queria que ela estivesse sempre comigo. Mas, à medida que o meu estado de euforia se foi atenuando, conseguiu fazer prevalecer a razão. Porquê correr o risco de estragar algo tão belo? Porquê destruir um amor tão puro? Sim, porque eu tinha consciência que ela era real, teria defeitos, nunca conseguiria cumprir as expectativas de perfeição que eu lhe tinha inculcado. E porquê submeter-me a isso? Ela já era minha, perfeita como eu a desejava e era essa pessoa que eu amava com todas as minhas forças. Eu amava a sua essência, não amava o que ela se poderia vir a revelar. Não, não podia deixar isso acontecer, não podia deixá-la aproximar-se. Mas a verdade é que depois daquela tarde nunca mais me iria conseguir satisfazer ao observá-la ao longe. O que fazer? Continuei no banco do jardim à procura de uma solução, e já a luz do dia esmorecia quando tive uma ideia, uma solução para ela passar a fazer parte da minha vida sem correr o risco de estragar este sentimento perfeito. Estremeci perante a radicalidade da solução, mas era a única, tinha que ser assim, não a queria perder! Além do mais, apesar de eu me ter proibido de pensar nisso, a possibilidade de ela conhecer alguém era real, e só a ideia dessa possibilidade fez-me perceber porque me impunha a proibição, sentia que o meu sangue fervia. Tinha mesmo que ser assim! Levantei-me, fui até à casa dela, toquei, à tradicional pergunta respondi que era a pessoa com quem ela tinha estado no banco do jardim. Ela abriu, convidou-me a entrar e quase me fez desistir do meu plano, mas disse mais uma vez a mim próprio que era a única solução e com isto, quando ela se virou de costas, com um golpe seco senti o seu pescoço partir, senti o seu corpo desmoronar-se. Peguei nela, deitei-a na cama, despi-a, despi-me, pousei a roupa onde não se sujasse e, inserindo a mão por baixo do esterno, retirei-lhe o coração e comi-o, ainda quente. Lavei-me, vesti-me, peguei na roupa dela e saí. Agora posso dizer que ela faz parte de mim, está sempre comigo e eu amo-a mais que nunca. Quando quero senti-la basta-me cheirar a sua roupa e sinto o seu coração a bater dentro do meu peito. Ela é minha para sempre e eu sou para sempre dela.