quarta-feira, 30 de novembro de 2005

Lixo

Andava mesmo a ser difícil escrever. É muito mau sinal quando já temos uma folha cheia de frases, ideias, textos começados e não conseguimos escrever nada que nos satisfaça minimamente. Há uma infinidade de coisas sobre as quais podemos escrever, e uma muito boa parte delas tem imenso potencial, porque é que é tão difícil?
Reli alguns dos meus rabiscos, onde se encontram ideias parvas para personagens como “O Grácio Espada tinha um fetiche por marcas de BCG…” ou “Mas o Nicolau conseguiu adaptar o seu metabolismo ao novo sistema, e enquanto por todo o tempo em que se levantava até passar o torniquete do trabalho era um poço de energia, assim que o passava, até o seu ritmo cardíaco abrandava subitamente. Ia calmamente tomar o seu pequeno-almoço, calmamente beber o seu café e fumar o seu cigarro, nada de novo.”. Encontram-se também ideias para esse novo género literário designado por post, que nunca vingaram, como por exemplo uma carta a deus que seria algo como:

Olá Deus,
Então tudo bem? Por aqui vai-se andando, tudo mais ou menos na mesma. Não devemos ter evoluído muito desde a última vez que alguém te viu.
Um amigo meu acha que já deves estar entretido num planeta longínquo qualquer e que já nem te lembras de nós, mas eu garanti-lhe que estavas só de férias. Agora não me deixes ficar mal visto! Não é que nós não nos orientemos, até há quem se oriente bastante bem, mas estamos a ficar muito materialistas, até aqueles que nos querem fazer acreditar que andam a espalhar a tua mensagem!
Mas a verdade é que antigamente fartavas-te de aparecer, aconselhavas mandamentos, aplicavas uns cataclismas quando era preciso… agora nada!
Já pensaste que agora até é muito mais fácil passar uma mensagem? Eu sei que deve ter sido muito frustrante estares a tentar orientar-nos e ver que as coisas nunca saíam como tu querias, mas que tal tentares de novo? Além do mais, os mandamentos já precisavam de uma revisão, tipo: não desenvolverás software malicioso, etc. E que tal criares um website? Que tal a ideia? Podia ter dicas para sermos melhores, podia ter um countdown para o fim do mundo, podia ter até uma parte para verificarmos se estamos a tender para o céu ou para o inferno, era capaz de mudar a opinião da muita gente que anda por aí a pensar que basta comer a rodela de pão todos os domingos…

Ou qualquer historieta sobre separação que começaria assim:

As rosas estavam já murchas na mesa posta para dois, a penumbra envolvia a sala, tinha sido tarde demais, ela tinha-se ido embora e ali estava eu sentado no canto com o olhar fixo na silhueta da cadeira vazia. Na minha mente vi todas as fotografias que nunca tirámos, as fotografias dos momentos que não quisemos recordar mais tarde…

Havia até no emaranhado de frases textos já começados que achei que poderiam até ser mais desenvolvidos, quem sabe até dar um livro, e que numa esperança vã de um dia voltar a pegar neles foram ficando… Ficando… Coisas como:

Estava lixado com a vida! Levantei-me, peguei nas minhas coisas e saí sem uma palavra. Meti-me no carro e arranquei sem saber para onde, mas isso não era importante, o importante era ir; nada mais havia senão a estrada, sempre pronta a levar-me onde eu quisesse. Era já noite cerrada quando me apercebei que estava numa estrada deserta e sem iluminação, a única paisagem eram luzes longínquas de pequenas povoações. Abri a janela e gritei a plenos pulmões: “Estou livre!!!”, acendi o cigarro e senti que de facto era verdade, não era mais uma daquelas mentiras que contamos a nós próprios e nos obrigamos a acreditar para tornar a nossa existência mais confortável, não, era verdade, mesmo verdade, e tive a certeza que nunca mais iria voltar.
Encostei o carro, reclinei o banco e recostei-me a tentar digerir a situação, mas depressa desisti, decidi apenas que não iria parar, não iria voltar para trás! Deixei-me dormir e acordei com o sol matinal na cara e senti-me genuinamente feliz. Arranquei com o objectivo de encontrar um sítio para comer. Minutos depois entrava numa povoação (que podia muito bem ser Sarnadas de Ródão), vi uma tasca aberta, parei o carro e entrei. O interior era pitoresco, escuro, antigo, paredes revestidas de madeira até metade, as quatro mesas e respectivas cadeiras também de madeira, serradura espalhada pelo chão de mosaicos pretos e brancos. Na mesa do canto, provavelmente o cliente mais habitual, sorvia ruidosamente a sua taça de tinto. Ao balcão, que era também revestido a madeira como as paredes, com o habitual armário em vidro onde se podia seleccionar a iguaria pretendida de entre variados peixes fritos e bifes panados, uma mulher que não consegui adivinhar a idade. Tão pequena que se via pouco mais que a cabeça, com a pele enrugada como se já não tivesse idade, mas com um olhar e um semblante estranhamente jovial, quase infantil. Pedi uma sandes de panado e, para me integrar melhor no ambiente, uma taça de tinto. A energia da velha senhora tornava ainda mais difícil a estimativa da sua idade, e escassos segundos depois tinha já o meu pedido satisfeito. Antes de beber, ergui o copo ao meu companheiro de taberna, ao que respondeu com um quase imperceptível aceno de cabeça, e dei início à minha primeira refeição em várias horas. Tinha já a boca aberta para perguntar onde estava, mas detive-me. Para quê saber? Não interessa onde estamos nem para onde vamos, o que interessa é ir, somente ir. Paguei, e saí com um amigável “continuação de um bom dia” e segui caminho…

Ou até coisas mais românticas tipo:

Ele acreditava piamente que a paixão ia durar, imaginava-os com 80 anos a brincar como brincavam outrora. Muita gente diria que ele estava a ser ingénuo, que a paixão nunca dura para sempre, mas a verdade é que a paixão ainda arde dentro dele, ele ainda sente, quando ela se aproxima, a força que o puxa para ela, como se cada célula do seu corpo lutasse para se aproximar dela. Ele não consegue ficar-lhe indiferente, não consegue passar por ela sem reconhecer a sua presença, sem tocá-la, abraçá-la. Mas ela não, nela a paixão esmoreceu, consumiu-se, desfez-se em cinzas, e no seu lugar ficou um amor, que é sem dúvida legítimo, mas também precocemente envelhecido. Ela ama-o, disso não há dúvida, mas não sente aquela paixão avassaladora que a puxaria para ele como uma atracção incontrolável.

Mas isto estava tudo a ganhar pó virtual no canto do disco, lixo portanto, e eu não conseguia escrever nada.

Liguei o televisor num daqueles canais nostalgistas para me distrair um bocado e estava a dar uma série que eu via quando era mais novo. Neste episódio aparecia um casal de velhos que me pareceu especial, não sei bem o que foi mas é capaz de ter sido o aspecto índio que me cativou. Não sei se é paranóia minha, mas parece-me sempre que os índios velhos sabem uma infinidade de coisas que nós, pessoas comuns não sabemos, parece que têm sempre um brilho de certeza no olhar. Para pelo menos escrever alguma coisa, mesmo que fosse mais lixo para a pilha, decidi transformar aquele casal de velho nos personagens principais de mais um texto. Na falta de um motor de arranque para a história decidi também usar as linhas gerais da história do episódio, que aparentavam resumir-se basicamente ao casal de velhos ficar uma noite na casa de um dos personagens da série e acabar por ficar lá montes de tempo. Claro que havia uma razão oculta para os velhos terem lá ficado aquele tempo todo, eles só se terão ido embora quando o seu trabalho estava feito, mas isto era uma das coisas fantásticas da arte, podemos interpretar mil coisas diferentes e, se calhar, nenhuma delas passou na cabeça do artista. Na esperança de conseguir aprofundar as personalidades do casal de velhos e da sua missão oculta comecei assim:

Estava uma daquelas noites péssimas, a chover torrencialmente e uma ventania de fazer abanar as janelas. Estávamos no quentinho com os gatos a ver um filme quando alguém tocou à campainha. Achámos muito estranho, mas decidimos ir ver quem seria e quando espreitei pelo óculo da porta vejo um casal de velhos com uma aparência que deixava na dúvida se seriam esquimós ou índios sul-americanos. Era tão surreal que parecia que não estava a ver o outro lado da porta, mas sim outra realidade num outro lugar qualquer. Ainda demorei uns segundos a reagir, mas obviamente abri a porta. O homem, que assim como a mulher aparentava ter entre sessenta e setenta anos, sobrepôs a sua voz ao assobiar do vento dizendo que tinham sido apanhados pela tempestade e que não tinham condições de ir para casa. Perguntou se nos importaríamos que passassem a noite na nossa escada. Instintivamente ofereci-lhes dormida na nossa casa, ao que, após a recusa educada de forma a verificar se a oferta era sincera, acederam. Preparámos uma ceia, uma cama no sofá e percebendo que estavam ambos visivelmente cansados deixámo-los para que pudessem pôr-se à vontade.
- Não achas estranho? Esta rua não é propriamente um ponto de passagem. De onde é que eles vinham e para onde é que eles iam para acabarem por vir bater logo à nossa porta? Disse ela
- Pois tens razão aí… mas achas que eles nos querem fazer algum tipo de mal? Eu, por muito que o meu instinto de sobrevivência me tente convencer do contrário, não consigo acreditar que aquele casal de velhotes nos tenha aparecido à porta com a intenção premeditada de nos fazer mal.
- Sim, também não acredito nisso, mas acho tudo isto muito estranho.

A conversa antes de dormir teria que ficar por aqui porque estava outra vez bloqueado, temi ter acabado de escrever mais um monte de letras inúteis, mas tentei não ser pessimista. Fui fumar um cigarro para desanuviar decidido a insistir na história, só teria que haver um motivo oculto e, de preferência, com alguma profundidade que tivesse levado os velhos lá a casa e estava a história feita, não seria certamente um livro, mas um post havia de sair!
O cigarro deu frutos, consegui arranjar um objectivo para os velhos, certamente diferente de qualquer possível objectivo do casal de velhos da série que me serviu de inspiração. Sendo este o principal requisito, dei-me por satisfeito. Para abrir as possibilidades de interpretação decidi também não tornar completamente explícito este objectivo do casal de velhos, seria o objectivo para quem escreve, quem lesse teria que poder inferir o objectivo que entendesse. Resumidamente, o objectivo dos velhos deveria dizer qualquer coisa a quem lesse a história, mas não necessariamente o mesmo que a mim. Prossegui…

Na manhã seguinte, quando nos levantámos os velhos já estavam de pé. A cama estava desfeita, os cobertores e lençóis dobrados em cima do sofá, e havia panquecas para o pequeno-almoço! Ainda meio atordoados, tanto por termos acordado há pouco tempo como pela cena pouco usual com que nos deparámos, sentámo-nos à mesa, em resposta do qual nos apareceu à frente uma caneca de café com leite e um prato de panquecas com compota. Durante o pequeno-almoço ocorreu a conversa normal. Como é que estão, como é que dormiram, etc. e depois de “quebrar o gelo” tentei saber mais alguma coisa sobre eles, perguntei onde moravam e como iriam para casa, ao que o velho respondeu evasivamente que moravam para Sintra, mas que tinha havido uma derrocada de terras junto à sua casa e que ainda estava a ser limpa, pelo que não podiam voltar já para lá. Nitidamente era mentira. Além do mais, como é que ele tinha sabido daquilo? Senti alguma indignação, principalmente pelo facto de eles estarem nitidamente a fazer-se convidados na nossa casa por tempo indeterminado sem sequer o pedirem, mas instintivamente mantive a cordialidade, apercebendo-me depois que tinha sido porque o casal de velhos transmitia uma calma imensa. Parecia que onde eles estavam reinava uma paz impenetrável que contagiava tudo o que os rodeava. Os gatos, que não são de dar confiança, só queriam estar perto deles e nós, numa situação em que seria normal ter uma atitude mais ríspida, parecíamos não conseguir evitar ter com eles uma tolerância fora do comum. Os velhos não eram de todo pessoas faladoras e nenhum deles disse nada que não fosse absolutamente necessário, ou seja, apenas falaram em resposta às nossas perguntas e a conversa acabou por esmorecer. Uma troca de olhares foi suficiente para sairmos até ao quintal para fumar um cigarro e trocar impressões.
- O que é que achas disto? Achas que devemos tomar uma atitude? Perguntei.
- Na realidade não sei. Eu até acho que sim, não é nada normal termos duas pessoas que não conhecemos a morar connosco, mas a verdade é que, ao contrário do que seria de esperar, não me sinto minimamente constrangida perto deles, é como se já os conhecesse há montes de tempo. Até mesmo nos momentos de silêncio, que poderiam facilmente ser constrangedores, sinto-me perfeitamente à vontade, nem sequer sinto aquela necessidade de dizer alguma coisa só para quebrar o silêncio. Parece-me até um silêncio estranhamente agradável.
- Sim, eu também sinto isso, não sinto que eles sejam estranhos, nem sinto que estejam a afectar o nosso conforto.
- Vamos então deixar a coisa andar e ver o que acontece.
Decidido isto, voltámos para dentro. Encontramos toda a loiça do pequeno-almoço lavada e arrumada e os velhos em silêncio a montar um puzzle.
- Gostam de puzzles? Perguntei
- Sim, descontrai-nos. Respondeu o velho
- Mas… onde é que traziam o puzzle? Perguntei baralhado.
- Trazíamo-lo connosco, naquele saco.
Olhei para o chão onde vi um saco de plástico que nunca tinha visto antes, dentro do qual estavam mais quatro puzzles. Mencionei que não tinha reparado no saco no dia anterior e de facto, era capaz de jurar que eles não traziam saco nenhum. Como já era esperado, a conversa esmoreceu, os velhos continuaram a montar o puzzle, sem se incomodarem minimamente com o facto de nós termos ficado lá em silêncio a observá-los.
Intrigava-me os velhos não falarem um com o outro, certamente já estariam juntos há muito tempo e a necessidade de palavras tinha-se reduzido drasticamente. Certamente compreendiam qualquer gesto, expressão ou olhar do outro e, ao contrário do que aparentava, a comunicação existia, tinha a certeza disso.
Passaram alguns dias, os velhos ajudavam em tudo, cozinhavam, limpavam, e nas horas vagas entregavam-se aos puzzles. A situação começou a tornar-se demasiado estranha, não aparentavam pretender ir-se embora e nós, apesar de nos sentirmos bastante confortáveis com eles, começámos a sentir que teríamos que tomar uma atitude. Nessa noite, já depois de os velhos estarem deitados, discutimos a questão.
- Eu gosto deles, não tenho duvidas que gosto, mas começo a achar que eles já estão mesmo a abusar.
- Reparaste que na noite em que eles apareceram eles não estavam molhados? Só depois é que me apercebi, mas estava a chover a potes, eles não tinham guarda-chuva e não estavam minimamente molhados. É a coisa que mais me intriga…
- Não me tinha apercebido, mas há várias coisas neles que são no mínimo estranhas. Eles nunca falam um com o outro e quando tentamos fazer conversa respondem sempre as coisas mais simples, mas a verdade é que acertam na mosca. Sempre que tentei pedir opiniões sobre alguma coisa eles têm sempre uma resposta pronta e é sempre uma visão simples e perfeitamente lúcida sobre a questão. É curioso que, apesar de eles quase não falarem, acho que já aprendi imenso com eles.
- Eu também sinto isso, acho que com eles aprendi muito sobre mim próprio, acho até que eles vieram com uma missão, com um objectivo muito bem definido, nem sei se eles serão mesmo pessoas como nós.
- Mas qual será o objectivo? Eles não parecem ser propriamente interventivos, nem parecem estar preocupados em cumprir nenhum objectivo.
- Eu acho que nos podemos ver neles, ver-nos no futuro, ou pelo menos um futuro possível. Um futuro que me parece óptimo. Acho que se conseguirmos crescer interiormente e amadurecer juntos conseguimos chegar ao nível daqueles velhos. Eles não só se conhecem a si próprios como conhecem o outro perfeitamente. Parece-me que é uma boa fórmula para o sucesso a dois. Precisamos de nos conhecer a nós próprios, não só para saber o que nos move, o que nos faz agir como agimos, mas também para podermos conscientemente melhorar e evoluir. Mas este caminho é árduo e pode afastar-nos de quem amamos. Temos que conseguir também fazê-lo um em relação ao outro, tu tens que saber o que me move, porque é que eu reajo de determinada forma, e eu a mesma coisa em relação a ti. Só assim conseguimos evoluir como casal. Acho que devemos tentar saber o que eles sabem quando chegarmos à sua idade. Conseguirmos compreender-nos e aceitarmo-nos pacificamente. Ou seja, é possível que o objectivo dependa apenas de nós e não deles.
No dia seguinte a cama estava arrumada, os cobertores e os lençóis dobrados em cima do sofá, mas não havia panquecas, não havia ninguém. Não precisámos de palavras, prosseguimos com a nossa vida, mas o aperto no peito ainda durou algum tempo.

sexta-feira, 25 de novembro de 2005

A esmola

- És maluco??? Eu vi bem? Deste dois euros à velha???
- Dei. Qual é o problema?
- O problema é que anda por aí muita gente a pedir esmola que tem mais dinheiro que tu. E além do mais dois euros são quatrocentos paus!
- É só dinheiro. Achas que vou notar alguma coisa no meu orçamento? Se não os tivesse dado à velha eles iam desaparecer na mesma e para mim ia ser igual. E posso estar enganado, mas não me pareceu que aquela velha tivesse mais dinheiro que eu…
- Ouve, aquelas cenas do marido ter morrido e ter quatro filhos é tudo tangas, é sempre a mesma história, só muda a velha.
- Eu sei, é muito provável que seja tudo tanga, mas eu não percebo como é que tu, que deves gastar uma média de cinco euros por semana em gorjetas nos restaurantes, ficas tão escandalizado por eu dar dois euros à velha que, até pode ser mentira, mas parece precisar muito mais do que os empregados dos restaurantes. Aliás, tu e a grande maioria das pessoas! Dão gorjetas nos restaurantes, aos taxistas e a toda a gente a que é politicamente correcto dar, mas são incapazes de dar uns trocos a um pobre que esteja a pedir. Isso é que é de ficar escandalizado, dão quando fica bem e não quando quem recebe precisa mesmo!
- Não deixas de ter alguma razão aí... pá, mas tu nestas coisas da vida és um bocado tanso…
- …

quinta-feira, 24 de novembro de 2005

É pedir muito?

Queria não ter que estar onde não quero estar. Queria não ter que fazer aquilo que não quero fazer. Queria não ter que ir onde não quero ir. É pedir muito?

sexta-feira, 18 de novembro de 2005

Personagens #1 - O Balila

Há pessoas que passam pela nossa vida sem nela ter um papel importante mas que deixam marcas e recordações, às vezes até alguma saudade ou algo mais perto da nostalgia. Com este pensamento decidi iniciar esta rubrica, à qual minimalisticamente decidi chamar 'Personagens deste romance comico-trágico que foi a minha vida até agora', ou, carinhosamente, 'Personagens'.
De referir que, de maneira nenhuma o critério de escolha dos personagens está relacionado com a importância que têm para mim. Não quero que nenhum dos personagens, deste romance comico-trágico que foi a minha vida até agora, quê lêm isto (vá-se lá saber porquê...) se sinta de alguma forma desconsiderado por não ser mencionado.
Dito isto...


O Balila

Não é que o Balila tenha influenciado a minha vida ou nela seja um personagem preponderante, a particularidade é que o Balila foi, até agora (e ainda bem), a única pessoa entre as que eu considero amigas, que morreu, e morreu mesmo bastante jovem.
Devíamos ter uns 10 ou 12 anos e o Balila e mais outros amigos nossos andavam pendurados nos comboios. A estação da Amadora estava no processo de se tornar o que é hoje e havia uma plataforma provisória feita de madeira. Quando o comboio chegou à estação o Balila ficou com o pé entalado entre a escada do comboio e a plataforma e, provavelmente aliando a sua corpulência à adrenalina do momento de stress conseguiu partir a coluna ao tentar soltar-se, segundo ouvi em primeira mão, e não foi socorrido a tempo.
Era o mago do gamanço no continente, uma coisa profissional, até recebia encomendas de skates que era exímio a roubar com um à-vontade quase invejável.
Aqui fica um registo do Balila, podia não ser a mente mais brilhante do mundo, mas era provavelmente uma das mais bem dispostas. Espero que ainda haja muita gente a lembrar-se dele.

Nota: O irmão do Balila é o Bitra. Não sei onde é que eles arranjaram estas alcunhas…

terça-feira, 15 de novembro de 2005

Maaaaaaau!

Observei um fenómeno deveras interessante, há cerca de um ano atrás havia um ou outro gajo aqui no trabalho que, ao satisfazer as necessidades fisiológicas de carácter líquido, mijar portanto, curiosamente retirava antes uma folha de papel das mãos para, depois de descarregado o conteúdo da bexiga, limpar a última pinguinha. Achava curioso, mas eis que agora verifico que 1/4 a 1/3 das pessoas executa este interessante ritual. Nunca tinha visto isto em lado nenhum, nem sequer nos outros pisos, mas a verdade é que é bastante comum alguém entrar nesta casa de banho e retirar logo uma folhinha de papel. Estimo que daqui a mais um ou dois anos metade dos homens daqui a usará!
O que é que eu penso disto? Se querem mesmo saber (e mesmo que não queiram) o que eu penso é que se a última pinga, que é mínima se o instrumento for habilmente sacudido, sempre caiu na cueca, porque é que havemos de abolir essa característica tão representativa do ser humano masculino? Além do mais a cueca vai para lavar ao fim do dia, não é? Será que eles andam a tentar poupar na lavagem das cuecas e o ritual é para ela se aguentar apresentável toda a semana? Ainda por cima, indirectamente tentam acabar com o milenar sacudir do pene, que ainda é das muito poucas coisas que nos conseguem ligar aos nossos antepassados mais remotos. Qual folhinha de papel qual quê? Maaaaaau! Tenho que chamar o Fernando, é?

segunda-feira, 7 de novembro de 2005

O rio

Já que toda a gente escreve uma história para crianças quando tem um filho, eu, como não quero paracer esquisito, segui a onda e saíu 'O rio'. É para ti, piteco.

Havia um rio que era maravilhoso, as suas águas eram límpidas e era a casa de muitas famílias de animais. Peixes, aves, répteis, batráquios, muitas aranhas de todos os tamanhos e feitios e inúmeros insectos, entre os quais, libelinhas, alfaiates, borboletas e larvas de todas as cores. A paisagem era bela e verdejante e bastava sentarmo-nos um pouco numa pedra a ouvir o gorgolejar do rio para sermos invadidos por uma calma imensa. Era mesmo um sítio muito bonito e todos os animais que lá viviam eram muito felizes.
Certa noite, andavam os peixinhos a brincar antes de irem dormir, quando ouvem um som muito estranho, uma espécie de ronco que nunca nenhum deles tinha ouvido antes. Avançando na direcção de onde vinha o som, viram um enorme monstro que se aproximava. Nunca tinham visto nada assim, não tinha barbatanas nem pernas, andava sobre umas coisas redondas e pretas que rodavam, tinha dois olhos tão brilhantes que iluminavam tudo à sua frente e rosnava de forma assustadora. Parecia ter saído de dentro de um pesadelo, pensaram os peixinhos. Cheios de medo nadaram o mais depressa que conseguiam para ir chamar os pais. Os pais, que também tinham ouvido o barulho, foram logo ver o que se passava, assim que os pequenos disseram que lá estava um monstro enorme e feio, mas, quando se aproximaram do local onde os peixinhos tinham visto o monstro não conseguiram avançar mais. A água tinha um cheiro horrível, sabia muito mal e todos tiveram que se afastar porque estavam a ficar muito mal dispostos. Voltaram para as suas casas no meio da vegetação, combinando encontrarem-se logo de manhã para discutirem o assunto. De manhã bem cedo, todos os peixes acordaram e, em cardume, foram ver como estava o rio. Foi uma visão desoladora, nem sequer se conseguiam ir ao sítio onde o monstro tinha aparecido, o cheiro tinha-se espalhado e havia já uma boa parte do rio onde era muito desagradável estar, e podiam ver que todas as ervas naquela zona estavam amarelas e doentes. Era terrível, porque é que aquele monstro faria uma coisa destas? E se ele voltasse? Se só uma vez tinha sido o que se via, se ele voltasse podia destruir tudo, os peixes e todos os outros animais teriam que deixar as suas casas e as plantas e as árvores estariam condenadas! Tinham que fazer alguma coisa! Mas o quê?
Estavam todos a discutir o que poderiam fazer quando alguém falou num velho e lendário peixe-gato que se dizia que vivia sozinho numa gruta rio acima, ele talvez os pudesse ajudar, mas a verdade é que sabiam dele por histórias que os seus avós tinham ouvido e ninguém tinha a certeza que esse velho peixe existia mesmo. A maioria achou que era uma ideia parva e que, mesmo que ele tivesse existido, a história era tão antiga que certamente o velho peixe-gato já não estaria vivo.
Decidiram espalhar a notícia e tentar reunir os animais para que pudessem ajudar, mas era uma tarefa muito difícil. Falar com as aves era muito complicado porque elas não se calavam, estavam sempre em acesas conversas uns com os outros e nem sequer ligavam aos peixes, os insectos, nem valia a pena tentar, era impossível falar com um insecto, ficavam a olhar com um ar de quem não percebeu nada e nunca respondiam. As coisas não estavam a correr nada bem, mas sempre iam passando a mensagem aos outros peixes que se foram juntando. A corrente ia tornando a água melhor, mas a coisa malcheirosa que o monstro deitou iria seguir rio abaixo e iria estragar outros sítios.
Dadas as dificuldades houve um grupo que achou que, visto que ninguém sabia como combater o monstro, faria uma tentativa para encontrar o velho peixe. Decidiram então que iriam numa expedição rio acima para encontrar o velho peixe-gato enquanto os outros continuariam a pensar numa solução para evitar que o monstro voltasse. Seguiram contra a corrente do rio, à procura de grutas e a perguntar aos peixes que passavam se alguma vez tinham visto tal peixe-gato, mas ninguém alguma vez o tinha visto. Ao fim do dia, já estavam todos exaustos, num sítio estranho e ainda não tinham encontrado nada. Procuraram um sítio onde pudessem passar a noite em segurança e alguém encontrou um espaço entre duas grandes pedras onde poderiam ficar. Ao entrarem aperceberam-se que não era apenas um pequeno espaço, era como uma gruta que seguia até perder de vista na escuridão. Decidiram dormir ali e continuar a exploração pela manhã. Para dormirem mais descansados ficaria sempre um acordado. Escolheram a ordem pela qual o fariam e assim, cada um ficaria acordado uma hora, ao fim da qual acordaria o seguinte e iria dormir e assim foi até o sol nascer.
De manhã, aproveitando o facto de a o sol estar no ponto certo para a sua luz entrar pela gruta e iluminar bastante bem o caminho seguiram, um pouco amedrontados, gruta adentro. Foram seguindo enquanto a luz ia esmorecendo e o medo que sentiam nem sequer os deixou apreciar a beleza do local, a gruta ia alargando e todas as rochas à sua volta eram verdadeiras obras de arte esculpidas pela água e em cada buraquinho ou fenda havia criaturas que nunca antes tinham visto. Ao chegarem ao ponto em que já quase não viam, o medo foi aumentando e rapidamente perceberam o seu erro, o Sol ia deixar de iluminar a gruta, tudo ia ficar escuro, decidiram então voltar para trás, mas o Sol foi seguindo o seu caminho no céu em direcção ao poente e em pouco tempo a gruta ficou à sombra e os peixes no meio de total escuridão. Juntaram-se todos uns aos outros, muito agarrados e cheios de medo sem saber o que fazer, quando sentiram que a água se estava a movimentar, sentiam correntes como se algo grande tivesse passado perto. Claro que nesta altura estavam já todos aterrorizados e, abraçados uns aos outros, tremiam de pavor. Nisto, ouvem uma voz grave e cavernosa. “Agarrem-se à minha cauda”, disse a voz e segundos depois sentiram uma enorme cauda de peixe a roçar neles. Era uma cauda gigantesca, maior que todos eles e, sem outra alternativa, os peixes agarraram-se a ela e começaram a ser suavemente puxados em direcção à saída da gruta. Ao se aproximarem da saída, assim que começaram a ter luz, puderam vislumbrar o tamanho do peixe que os estava a puxar, Não era só o maior peixe que já tinham visto, era muito, mas muito maior do que qualquer outro peixe que já tinham visto. Os peixes perto dele pareciam ratinhos e nunca se tinham sentido tão pequeninos. Tinha um corpo cinzento-escuro com aspecto sedoso, uma boca enorme e uns bigodes que quase lhe chegavam à cauda, podia ver-se que era muito velho.
- O que é que andam aqui a fazer?
Perguntou o velho peixe-gato.
- Viemos à sua procura!
Responderam em uníssono.
- À minha procura? Como é que vocês me conhecem?
- Por histórias que ouvimos dos nossos avós. O nosso rio está em perigo e precisamos de ajuda!
Respondeu um dos peixes.
- Lamento, mas eu não vos posso ajudar.
Disse o velho peixe-gato, para desilusão dos peixes.
- Mas há um monstro que estragou a água, e ele pode voltar. Não podemos deixá-lo destruir o nosso rio sem pelo menos tentar fazer alguma coisa. Ajude-nos por favor.
Choramingaram os peixes.
- Eu não disse que não vos queria ajudar. O que eu disse foi que não vos podia ajudar. Decidi afastar-me e vim viver para esta gruta, mas passei aqui muito tempo dentro e agora sou demasiado grande para caber na saída. Estou aqui preso e nunca mais vou conseguir sair.
Explicou o velho peixe-gato. Os peixes ficaram sem palavras, não conseguiam acreditar que, depois de terem feito o mais difícil que foi encontrar o velho peixe-gato, embora tenha sido ele a encontrá-los, o seu plano iria ser um fracasso por causa de uma questão de tamanho, mas de facto todos verificaram que seria impossível para um peixe tão grande passar pela abertura que conduzia à liberdade do rio.
Ficaram todos calados por momentos, a pensar numa solução até que um dos peixes teve uma ideia, se houvesse pescadores ali perto, podiam prender os seus anzóis numa das pedras da entrada da gruta e eles puxavam-na, mas tinham que ser vários. Todos ficaram encantados com a ideia incluindo o velho peixe-gato e os peixes saíram à procura de pescadores. Tiveram sorte e conseguiram apanhar os anzóis de três pescadores e, depois de salvarem as minhocas, levaram calmamente os anzóis até à pedra e prenderam-nos. Dando um puxão na linha, os pescadores pensaram que tinham apanhado um dos grandes e começaram a puxar, ao mesmo tempo que o velho peixe-gato empurrava a pedra do lado de dentro. Lentamente a pedra começou a mover-se e, numa ânsia de liberdade, o velho peixe-gato reuniu todas as suas forças e, com um empurrão forte a pedra cedeu e caiu para o fundo do rio levando os anzóis consigo. O velho peixe-gato saiu e, eufórico, nadou e saltou de alegria, enquanto os peixes, radiantes com o seu feito, observavam o espectáculo único que é um velho e gigantesco peixe-gato a pular como se fosse jovem outra vez. Quando a euforia começou a passar voltou para junto dos peixes, abraçou-os todos de uma vez entre as suas enormes barbatanas e agradeceu do fundo do coração por o terem salvo da prisão em que vivia.
A alegria esmoreceu quando se lembraram do que os levou ali e pediram ao velho peixe-gato que, usando a sua enorme experiência dado ter já vivido muito mais que qualquer um dos outros peixes do rio, os aconselhasse sobre o que fazer para evitar que o monstro voltasse. O velho peixe-gato pensou um pouco e disse que a única solução que poderia resultar tinha que envolver todos os animais.
- Juntos somos mais fortes, disse, temos que alertar todos os animais para a situação e pedir o apoio de todos.
- Nós tentámos, mas aves não nos ligam nenhuma, e os insectos não percebem nada.
- Os insectos não falam, só entendem linguagem gestual. E em relação às aves, pode ser que eu consiga atrair a atenção delas.
Respondeu o velho peixe-gato.
- Linguagem gestual?
Repetiram os peixes com um ar de dúvida.
- Sim, linguagem gestual é falar sem usar a voz, comunicar com gestos, com o corpo.
Esclareceu o velho peixe-gato.
- Ah, então por isso que eles nunca nos respondem! Concluíram os peixes. Mas nós não sabemos essa linguagem, como é que vamos fazer?
- Em tempos fui muito amigo de uma aranha, pode ser que vos consiga ajudar.
Respondeu o velho peixe-gato, para alegria de todos os peixes. Aproximou-se então de alguns insectos e começou a efectuar uma espécie de dança, os peixes não estavam a perceber nada, mas a verdade é que mais insectos se foram juntando e no fim da estranha representação todos os insectos se espalharam para passar a mensagem a outros. Os peixes estavam perplexos mas muito agradecidos por poderem contar com uma ajuda tão preciosa.
Seguiram então rio abaixo e, à medida que passavam todas as aves se calavam e ficavam espantadas a olhar, nunca ninguém tinha visto um peixe tão grande neste rio, era uma imagem extraordinária, e, aproveitando o momento da sua atenção, com a sua voz poderosa, o velho peixe-gato conseguiu falar com alguns patos que estavam perto, pedindo para todos se juntarem rio abaixo.
Nada podia ter preparado os peixes para o que viram quando chegaram à sua zona do rio, a notícia tinha viajado mais depressa que eles e, embora a água estivesse muito má, certamente o monstro tinha voltado na noite anterior, o rio fervilhava de actividade, patos, gansos, garças, pardais e até algumas gaivotas tinham vindo do mar para ajudar, uma infinidade de insectos de todas as formas e feitios, rãs, sapos, salamandras, cobras de água e muitos, muitos outros animais tinham vindo ajudar, só lhes faltava era um plano, e seria bom que se despachassem pois dentro de pouco tempo seria noite e o monstro poderia voltar novamente.
Neste momento um monte de ideias começou a surgir, umas mais absurdas que outras, mas todas pareciam bastante disparatadas. Nisto o velho peixe-gato mantinha-se calado e, quando as vozes se começaram a calar, apercebendo-se que assim não conseguiam nada, todos se viraram para o velho peixe-gato, que parecia nem estar a ouvir nada.
- Tens alguma ideia?
Alguém perguntou.
- Sim. Respondeu. A minha ideia é organizarmo-nos e juntar várias das vossas ideias. Para conseguirmos alguma coisa temos que saber trabalhar bem em conjunto. Mesmo todos juntos certamente não temos força para afugentar o monstro, portanto vamos ter que usar a inteligência. Na minha opinião devemos montar armadilhas, alguém disse que as aves podiam usar pedras para bombardear o monstro, eu acho muito boa ideia, mas para ter o melhor efeito têm que ser todos ao mesmo tempo. Uma ideia muito boa que alguém também teve foi lançar limos para os olhos do monstro, os peixes podem fazer isso, e durante o ataque, os insectos em enxame, desviam a atenção do monstro para que ele não consiga reagir, vocês… Disse dirigindo-se aos pardais e restantes aves pequenas. Serão os nossos olhos, quando ele aparecer voam para ver o que se passa, mantendo-se fora do seu alcance, caso haja alguma coisa inesperada voltam logo a avisar-nos. Se todos fizermos a nossa parte, isto pode resultar, mas estejam preparados para fugir caso seja necessário! Peço agora aos batráquios que se espalhem pelo caminho e coaxem se o virem ou ouvirem a aproximar-se.
Todos os animais se prepararam para cumprir os seus papéis, as aves juntaram um monte das pedras mais pesadas que conseguiam carregar, houve até algumas que se juntaram para conseguirem levantar um pequeno tronco caído, os peixes reuniram uma grande quantidade de limos enquanto os insectos, incluindo algumas espécies que normalmente nem se davam muito bem, combinaram o plano de ataque e se espalharam junto ao fim do caminho. A noite caiu e os animais estavam todos preparados em silêncio para a vinda do monstro, ao contrário do que era normal, não se ouvia nada além do barulho da água.
Estavam já alguns quase a adormecer quando se ouvem coaxos e muito pouco tempo depois o ronco que tanto os tinha assustado nas noites anteriores. Prontamente os pardais levantam voo e mergulham na penumbra mas alguns minutos depois voltaram muito aflitos a dizer que o monstro já tinha apanhado dois humanos, tinham conseguido vê-los lá dentro!
“Temos que os ajudar!” alguém disse e todos imediatamente concordaram, mas isto era inesperado, o que podiam fazer? Não tinham tempo para pensar num novo plano. O velho peixe-gato tentou acalmar toda a gente e propôs que mantivessem o plano, mas com uma alteração, em vez de bombardearem o monstro, as aves largariam as pedras no caminho na tentativa de o bloquear, e só depois de ele estar encurralado é que o bombardeariam e com a ajuda dos insectos talvez o conseguissem enfraquecer o suficiente para os humanos conseguirem sair. Sem tempo para mais discussões todos se prepararam para o momento. Quando o monstro chega, com o seu ronco assustador e os seus olhos brilhantes, estavam já as aves a levar as pedras para taparem o caminho e os peixes prontos para lançarem os limos, todos ficam boquiabertos quando duas portas se abrem no monstro e os humanos saem, aparentemente ilesos. E, para maior espanto de todos os animais os humanos puxaram uma mangueira do monstro e começaram a despejar aquela coisa malcheirosa que estragava a água. Os animais não podiam acreditar no que viam, os humanos faziam parte da natureza, sempre tinham visto as coisas assim, e estavam dispostos a ajudá-los como se fossem quaisquer outros animais, porque é que eles estavam a fazer tanto mal à natureza? Não fazia qualquer sentido! Mas não podiam deixá-los continuar com isto e com um incentivo do velho peixe-gato, todas as aves se lançaram sobre os dois humanos, prontamente imitadas pelos insectos. Os humanos, apanhados completamente desprevenidos, ainda levaram algumas bicadas e ferroadas antes de conseguirem meter-se de novo dentro do monstro que, como era agora óbvio, não passava de uma horrenda máquina construída pelos humanos para lhes estragar o lindo rio onde moravam.
“As pedras!” gritou o velho peixe-gato, e logo as aves foram buscar as pedras que tinham largado no caminho para as largar sobre a máquina. Tencionavam pregar tamanho susto aos humanos que nunca mais pensariam em destruir a natureza assim. Assim que a chuva de pedras começou, os humanos, sem saberem muito bem o que estava a acontecer fugiram a toda a pressa, enquanto todos os animais rejubilavam. Os peixes saltavam na água, todos os insectos saltitavam eufóricos, todas as aves esvoaçavam dando gritos de alegria, Parecia que todos estavam contentes, mas o velho peixe-gato não se ria, estava até com uma expressão de grande tristeza.
- Porque é que não estás alegre? Afugentámos os humanos, pregámos-lhes um tal susto que não devem aparecer aqui tão cedo…
Perguntou um dos peixes.
- Estou triste porque me apercebi do que os humanos são capazes, porque me apercebi que nenhum sítio estará a salvo deles, mas nunca se esqueçam…
Disse enquanto se afastava rio abaixo.
- Assim como nem todos os peixes são iguais, nem todos os humanos são iguais, e haverá muitos que ainda se preocupam com a natureza. Protejam-se, defendam-se, mas não percam a fé em nenhum dos animais, nem mesmo nos humanos.
E partiu, ajudado pela corrente para onde o rio era mais largo e fundo, ainda ouviu ao longe os agradecimentos dos peixes e das aves e sorriu.