quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Coração Sertanejo

Não! Você não vai me destruí! Vociferou Anísia enquanto as lágrimas lhe escorriam copiosamente. Januário encolheu os ombros. Estava já habituado às cenas que as mulheres, que tinha ao longo do percurso que fazia com a sua manada, faziam. Eu lhe amo, sua boba. Mentiu. Me deixe seu cafageste, volta para suas vaca, vai. Januário virou calmamente as costas, montou o seu cavalo e partiu. Vida de boieiro sertanejo é fogo. Pensou. Tranquilizou-se depois pensando que as planícies até perder de vista o fariam esquecer Anísia quando lhe enchessem a alma, mas isso não aconteceu. Não conseguia perceber porquê, mas nada conseguia apagar da sua memória a última lágrima que vira Anísia verter. Porquê? Questionou-se. Pruque é que as mina se liga tanto a eu? Meu coração é do Sertão, não é de mulé! Disse a si próprio noutra vã tentativa de a fazer desaparecer da mente, mas não resultou. Via Anísia em todo o lado, nas nuvens, nas longínquas montanhas, chegava até a vê-la no olhar meigo das suas vacas. Isso num pode sê não! Rematou. Tenho que chegá depressa à próxima vila, os braço de Celina me vão fazê esquecê essa bobagem. Acelerou o passo da manada e levava já o coração mirrado quando bateu à porta de Celina.

Celina era a mãe de santo da vila, conhecida pelas suas famosas leituras de búzios e por frequentemente incorporar o espírito de Ayrton Senna, embora muitos pensassem que era tudo teatro. Ao contrário do que Januário esperava, Celina não o recebeu de braços abertos mas sim com um tição na mão e um olhar nada meigo. Sabe, me disseram que você tem mulé em tudo o que é lugá por aqui. Disparou. Ô gata, num fala bobagem. Cê sabe que é só você que eu amo. Mentiu novamente. Celina vacilou, mas quando Januário terminou a frase seguinte. As outra mina num siguinifica nada para mim. Já o tição viajava através da sala numa rota de colisão certeira com a sua testa, que só não acertou graças aos reflexos felinos de Januário. Eta mina é fogo, pensou, enquanto o instinto o levava a aproximar-se e dar-lhe uma sonora chapada. Cê viu que quase me partia a cabeça, sua jararaca? Gritou enquanto lhe aplicava mais uma palmada, desta vez na nuca. Quantas vezes tenho de lhe dizer? Se quisé pode ter meu corpo, mas meu coração é do Sertão. Ao acabar a frase, colocou-lhe a mão na parte de trás do pescoço e puxou-a firmemente para ele. O calor da sua pele e o másculo cheiro de suor misturado com bosta de vaca fizeram-na perder a força nas pernas e soltar um discreto suspiro. Estava quase a render-se ao corpo musculado de Januário quando reuniu todas as suas forças e, gritando impropérios, o conseguiu pôr fora de casa ficando a arfar de costas encostadas à porta enquanto uma lágrima rebelde lhe escorria pelo rosto.

Depois de várias cachaças na taberna local, encontrou finalmente conforto no colo de Rosana, a galdéria da vila. A bondade e compaixão de Rosana eram lendárias, já que, benemérita, era o consolo dos renegados e a companhia dos solitários velhinhos. Inté mais. disse Januário ajeitando o chapéu, depois de o desejo amplificado pela cachaça o ter feito entregar-se sofregamente à paixão. Rosana ficou calada, acariciando a zona ainda quente do lençol.

Januário partiu, rumo ao horizonte. A memória de Rosana desvanescia-se à medida que a sua manada investia pelo terreno. Anísia? Celina? Não sabia quem eram. O seu coração? Esse era só do Sertão.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Tempus Fugit - Capítulo 1.2.2.2

Milhões de gigantescos escaravelhos com cabeças humanas! O pavor atingiu o seu máximo expoente quando o bando iniciou um vertiginoso vôo picado na sua direcção e conseguiu perceber que todos tinham a cara do Helmut Kohl!

Correu o mais depressa que podia, mas os seus perseguidores aproximavam-se. Um suspiro de semi-alívio surgiu das suas entranhas ao avistar ao longe o que parecia ser uma arma anti-aérea. Estranhamente conveniente, conseguiu ainda pensar enquando reuniu as suas últimas forças para um disparo final na corrida em direcção ao aparelho. O enorme reservatório acoplado ao engenho ter-lhe-ia provocado um sorriso, não estivesse a lutar pela sua vida. Quase não conseguia acreditar na sua sorte! Era um projector de coelhos, a arma conhecida mais eficaz contra escaravelhos gigantes, e parecia carregada.

Com um pulo quase felino sentou-se no engenho e apontou para o enxame. Apertou o gatilho e soltou instintivamente uma gargalhada quando os coelhos, projectados de rajada a alta velocidade e com um ritmo alucinante, começaram a atingir os escaravelhos. Embora não tenha conseguido atingir muitos dos seus atacantes - devido à fraca aerodinâmica do coelho, a precisão era um dos pontos fracos desta fascinante peça de artilharia - o factor surpresa foi fundamental. Os escaravelhos, claramente desorientados, começaram a perder o seu ímpeto e acabaram por dispersar.

Rejubilou. Torrentes de adrenalina ainda corriam nas suas veias e demorou até conseguir acalmar-se e parar de tremer. No entanto, a calma não durou muito tempo e a adrenalina voltou a subir ao avistar uma nuvem negra a formar-se no horizonte. Os escaravelhos reorganizaram-se e estavam de volta para uma segunda investida. Mais, vinham melhor preparados, munidos de envelhecidas sandes de carne enlatada, capazes de levar à náusea o mais bravo.

Assim que se apercebeu da nova ameaça, avaliou a sua situação numa fracção de segundo. O reservatório de coelhos estava a menos de um quarto e o ambiente iria ficar insuportavelmente nauseabundo, só lhe restava procurar abrigo. No segundo seguinte já estava novamente em marcha a alta velocidade, mas os escaravelhos eram muito mais rápidos e facilmente ganharam terreno. Todas as casas estavam em ruínas e certamente não aguentariam o ataque, mas conseguia ver por detrás das casas, uma enorme torre amarela que curiosamente parecia ter o formato de um colossal e hirto dedo médio. Correu para lá, mas o enxame estava já perigosamente perto.

Por uma infeliz fatalidade do destino, ou pela teoria do caos, como talvez alguns defendessem, quando o seu pé direito estava prestes a atravessar a arcada que anunciava a segurança, a força de Coriolis afectou a gravidade inversa exactamente da forma necessária para maximizar a inércia de uma sandes de carne enlatada, largada pelo escaravelho que se deslocava na linha que formava um ângulo de trinta e sete graus com a linha da sua trajectória, fazendo com que esta o atingisse na nuca com uma força tal que, violentamente projectado para a frente, aterrou atordoado de cabeça no chão.

Rapidamente surgiram dois pares de esqueléticas mãos com membranas interdigitais que o agarraram pela roupa e o puxaram mais para dentro. Não tinha ainda recuperado da desorientação quando uma das criaturas, que além dos volumosos lábios verdes não pareciam ter mais que uma fina e viscosa camada sobre a sua estrutura óssea, se aproximou e lhe deu duas vigorosas chapadas.

Paf, paf! Então pá? Ainda estás connosco ou não?

Esfregou os olhos e reconheceu as pessoas na sua frente. O que aconteceu, perguntou. Não faço a mínima ideia do que aconteceu, mas acho que da próxima vez é melhor meteres só um ácido.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Tempus Fugit - Capítulo 1.2.2.1

O cenário era atemorizador. Uma gigantesca sombra fantasmagórica que, apesar de translúcida, permitia distinguir contornos, flutuava na sua direcção. Não conseguiu perceber se se tratava de uma única entidade ou se pelo contrário era um enorme grupo delas, para o seu cérebro apenas importou o facto de ser enorme e aterrorizante.

Correu enquanto pôde, mas cada vez que parava, pensando estar a salvo, a grandiosa sombra reaparecia sobre si. Rapidamente percebeu que era inútil. Esgotado, deixou-se ficar imóvel enquanto a sombra pairava sobre si. Quando esta começou lentamente a descer, abriu os braços numa atitude de entrega e deixou que esta o envolvesse por completo. Sentiu, impotente, a consciência a fugir-lhe enquanto os pés perdiam o contacto com o solo.

Acordou na sua cama. Tudo teria sido um sonho... O tempo nunca mais parou mas, curiosamente, nunca deixou de ter a estranha sensação de que não estava a viver a realidade.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Tempus Fugit - Capítulo 1.2.1.2

Quem és tu? Perguntei. Quem sou eu? Tu é que devias saber. Eu nem sequer tenho nome. Respondeu. Ah, és tu... Mas tu não existes, o que é que estás aqui a fazer? Sei lá eu! A última coisa que me lembro é de um médico me injectar qualquer coisa, portanto isto deve ser outra viagem dentro da minha cabeça. E sabes quem eu sou... Sim, não sei como nem porquê, mas sim, sei. Curioso, muito curioso. Olha, a mim já nada me espanta, mas acho que isto se calhar é para me dar a oportunidade de te dizer que estou cansado, que já não me apetece mais. Acredita que compreendo perfeitamente, a mim também já me chateia um bocado, e nem está a sair grande coisa, mas acho que pelo menos pelo valor como exercício criativo, não devíamos desistir. Não sei quanto mais vou aguentar... Onde é que está o teu espírito? É o teu propósito, algo ao qual não podes escapar. É óbvio que tens razão, mas às vezes o ímpeto esmorece. Pedires-me para desistir é perfeitamente absurdo, tu és um sobrevivente! Agora vá, desanda daqui e cumpre o teu fado.

Abriu os olhos de repente, como se tivesse sido empurrado para a realidade. Era noite e tudo estava envolvido numa tranquila penumbra. Respirou fundo e tentou descontrair enquanto se lembrava do sonho que tinha tido. Questionou-se sobre o que significaria, se teria sido mesmo um sonho, já que estava tão vívido na sua mente como qualquer acontecimento real. Parecia tão real como a aprisionante inactividade do seu corpo. Ponderou sobre quem seria aquela pessoa. No sonho conhecia-a, mas não sabia quem era. Apesar disso, percebeu um ódio visceral, Não sabia porquê, mas odiava aquela pessoa. Um ódio tal que o assustou quase a um ponto de choque. Desisto, ouviste? As frases formavam-se no seu cérebro, vindas de um qualquer recanto do seu subconsciente. Para mim chega! Não sou o teu fantoche! A confusão aumentava, não sabia porque a sua mente parecia fora do seu controle, nem a quem se dirigia. Desisto! Tenho esse direito! A sensação de impotência era atroz. Era como se fosse um mero espectador enquanto a sua mente proferia iradas exclamações. Liberta-me, filho da puta! Liberta-me! Quem? Quem? Só podia ser aquela pessoa. Mas quem era? Porque a odiava assim?

Começou a recuperar o controlo da sua mente. Conseguiu tranquilizar-se lentamente, mas uma palavra permaneceu indelével, "desisto", a palavra acabou por ocupar todo o seu pensamento. Calmamente fechou os olhos. Concentrou-se no seu coração, visualizou-o na sua cabeça, tranquilamente, cada vez com maior detalhe. Passado algum tempo, era como se estivesse a olhar para dentro do seu peito. Via nitidamente o seu coração a pulsar, conseguia ver até os pequenos vasos que o irrigam. Concentrou então nele toda a sua força, toda a sua vontade, e ele parou.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Tempus Fugit - Capítulo 1.2.1.1

Alguns segundos depois de abrir os olhos, a realidade atingiu-o como um raio. Seria melhor uma existência solitária num mundo congelado, mas onde se podia mexer, ou uma existência fisicamente vegetativa num mundo compartilhado? O dilema fervilhava no seu cérebro e embora uma parte dele o tentasse convencer que o importante era a mente e não o corpo e que poderia ter uma vida gratificante, não conseguia acreditar. O dilema era fictício, sabia perfeitamente que nunca escolheria a sua situação actual, a que mais cruelmente se apresentava como real.

Doutor, quero voltar a estar em côma, disse assim que o médico atravessou a porta do quarto. Desculpe? Retorquiu incrédulo. Sei que é possível induzir um côma, quero que me façam isso, insistiu. Não podemos fazer isso. Esse procedimento envolve muitos riscos e é usado apenas em casos de dor extrema, como acontece, por exemplo, em casos de queimaduras muito extensas. Além do mais, não pode ficar aqui indefinidamente, existem outras pessoas a precisar dessa cama e, como a sua condição já se encontra estabilizada estamos até a pensar dar-lhe alta dentro de uma semana, tem que começar a fazer os preparativos para voltar para casa e refazer a sua vida. Já percebi que não vale a pena insistir, mas como é que propõe que eu faça esses preparativos? O hospital está a tentar entrar em contacto com a sua família, certamente alguém virá para o ajudar.

Estava já instalado na sua casa, a família tinha já contratado uma enfermeira para tratar dele, a quem decidiu não dirigir mais palavras do que as estritamente necessárias, quando, no meio de toda a sua revolta surgiu um refrescante pensamento positivo. Nem parecia seu, era como se lhe tivesse sido enviado de fora e dizia-lhe que uma pessoa é a sua mente e não o seu corpo, o corpo era apenas uma ferramenta. Dizia-lhe que a evolução pessoal não era feita no mundo físico, mas no campo espiritual, que era este o importante e que não lhe estava vedado. Lembrou-se das crenças budistas e obrigou-se a acreditar que a libertação do plano terreno era de facto possível. Começou a passar a grande maioria do seu tempo em meditação e libertou-se aos poucos das amarras dos apegos às coisas do mundo físico. Quando finalmente conseguiu sair do seu corpo estava já num ponto tal da sua cultivação pessoal que não sentiu qualquer euforia. Estava já livre de todas as paixões. Compaixão era o único sentimento que perdurava.

Viajou por inúmeros planos de existência e estabeleceu contacto com vários seres iluminados. O seu corpo passou o resto dos dias imóvel até perecer, mas a sua mente percorreu o universo e perdurou.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Tempus Fugit - Capítulo 1.1.2.2

Por muito confortável que se sentisse durante o momento morto, não conseguia evitar que o aterrorizasse a ideia de estar completamente sozinho, de não vir a ter outro contacto com um ser humano. Este temor provocou-lhe uma torrente de recordações. Lembrou-se da sua família, dos seus amigos. Lembrou-se dos passeios à beira-mar, com as ondas a acariciarem-lhe os pés. Do vento na cara. Do que apreciava observar as pessoas nas suas vidas. Sentiu saudades de ter emoções. Pela primeira vez a tranquilidade pareceu-lhe insuficiente. Não queria tranquilidade, queria emoções. Não as conseguiria voltar a ter se não eliminasse o momento morto. Já não lhe interessava qual a verdadeira realidade, apenas queria viver numa em que existisse mais gente. Não queria ficar sozinho.

Procurou a pessoa e sem mais hesitações assinou o documento que lhe permitiria voltar a ser normal. A pessoa sorriu. Disse-lhe que tinha tomado a decisão certa e, retirando o cadeado que trancava o armário por trás de si, retirou um frasco a partir do qual encheu uma seringa. É provável que com esta dose deixe completamente de ter lapsos de consciência. Acenou afirmativamente com a cabeça, autorizando a intervenção.

Viveu de forma normal o resto dos seus dias, valorizando e acarinhando cada experiência, agradável ou não, crescendo e aprendendo com ela. Apreciou cada momento que passou com outras pessoas, evoluindo com o que com elas aprendia. Poucos talvez tenham sido os momentos em que voltou a experimentar verdadeira tranquilidade, mas isso não o incomodava. Dava-se por feliz por esta lhe ser negada pelas emoções que o inundavam.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Tempus Fugit - Capítulo 1.1.2.1

Sem a certeza que teria sido fruto de raciocínio lógico ou de divagação alienada, decidiu que não iria acreditar na pessoa. Não conseguia ter como certo que esta realidade, aquela em que estaria a ser tratado, seria a verdadeira. A verdade é que nem lhe interessava assim tanto se seria ou não a verdadeira. Optou por escolher a que lhe parecia mais confortável, e esta era sem dúvida a que envolvia o momento morto. Concluira que o momento morto era a altura em que sentia maior tranquilidade, plenitude até. Não lhe interessava que tudo existisse apenas na sua mente e que o seu corpo estivesse em catatonia numa cela de um qualquer manicómio. Viveria sozinho num mundo congelado no qual seria um deus. Deus de ninguém, era certo, mas bastar-lhe-ia seu o seu próprio deus.

Estava decidido, não assinaria o termo de responsabilidade. Não aceitaria qualquer tipo de tratamento. Apressou-se a procurar a pessoa para a informar da sua decisão.

Não quero, disse, não quero ser tratado. Nem tenho a certeza de estar de facto doente. Tenho a obrigação de o aconselhar contra essa decisão, respondeu a pessoa, se desistir do medicamento é possível que nunca mais venha a ter momentos de lucidez como este. Como lhe disse, não tenho a certeza que este seja de facto um dos meus momentos de lucidez, retorquiu, e a minha decisão é final, não autorizo que me sejam administrado mais nenhum tipo de drogas. Se essa é a sua decisão, teremos que a respeitar. Considere cancelado o tratamento. Espero que apesar disso ainda venha a ser possível mantermos outra vez um diálogo.

Imediatamente após a última palavra proferida pela pessoa, tudo congelou novamente. De forma tão instantânea que a pessoa ficou imóvel mantendo a posição dos lábios que originou a última sílaba que proferiu. Olhou para o relógio e verificou que este, ao contrário do que acontecia antes, não marcava a meia-noite e doze. Não sabia como, mas sabia que o momento morto que se tinha iniciado não acabaria. Manteve-se tranquilo ao aperceber-se que sabia que não iria mais ter qualquer contacto com outra pessoa. Sabia que o mundo em que iria existir seria só seu. Sabia que estava sozinho. Sabia tudo.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Tempus Fugit - Capítulo 1.1.1.2

Com todo o conhecimento de tudo o que havia para saber, limitava-se a passar longos períodos em meditação. Períodos que no mundo físico representavam eras. Assistiu ao desenvolver da humanidade e de inúmeras outras civilizações espalhadas pelo universo, que sentia cada vez mais distantes de si. Criou vida em milhões de outros planetas e acompanhou a sua evolução. Invariavelmente, acabavam por desenvolver inteligência e era o início do fim. Umas mais depressa, outras mais devagar, todas as civilizações que emergiam acabavam por se autodestruir.

Houve no entanto, por uma curiosa sequência de evolução, uma que se distinguiu. Provavelmente bastaria mudar um pequeno acontecimento na sua história para que tudo tivesse descambado, mas a verdade é que, contra todas as expectativas, esta civilização persistiu e conseguiu ultrapassar o ponto chave em que o egoísmo é tal que corrói tudo por dentro. Passado este ponto, foi com genuína expectativa, tal que teve que fazer um verdadeiro esforço para não dar uma ajuda, que acompanhou o seu progresso. Testemunhou com um orgulho paternal a erradicação da crueldade e deixou-se invadir pela paz que aquela sociedade tinha conseguido atingir. Seguiram-se o ódio, a ganância, o egoísmo, a ira. Muitas gerações passaram, milhares, mas conseguiram mesmo finalmente libertar-se do materialismo. Esta momento foi acompanhado com um imensurável regozijo. Estavam mesmo quase, bastava mais um pequeno passo para chegarem a si e sabia que iam conseguir. Tinham conseguido soltar-se dos grilhões do mundo físico, era uma questão de tempo até o conseguirem descobrir.

Num ápice, inúmeras consciências partilhavam a sua. Tinham conseguido. Desafiando todas as probabilidades, tinham conseguido atingir o máximo nível de evolução. Estavam consigo, todos eles. A sensação era de extremo conforto, quase inebriante. Já não estava sozinho, finalmente. E a harmonia durou para sempre.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Tempus Fugit - Capítulo 1.1.1.1

Sabia tudo o que acontecia. As atrocidades que testemunhava eram inimagináveis e começou a aperceber-se que estava a adquirir algo que poderia definir-se como repulsa pelo ser humano. Não por nenhum em particular, por todos. Começava mesmo a desprezar todos os humanos. Imaginava-se a esmagá-los um a um como se de pequenos vermes se tratassem. E para ele não tinham mesmo mais importância que qualquer outro verme.

Pensava no seu antecessor, no que o teria levado a procurá-lo e passar-lhe as suas responsabilidades e soube que tinha sido esta mesma aversão. Apercebeu-se que se não se tivesse afastado acabaria por sucumbir à vontade de eliminar toda aquela espécie repugnante. Pensava no que lhe tinha dito sobre o livre-arbítrio e agora compreendia. No entanto, a sua não intervenção começava a fazê-lo sentir-se sem propósito. Ponderava qual seria o seu papel, a sua utilidade. Por que razão existiria um deus se não se manifestava. Porque não tinha o seu antecessor simplesmente desaparecido sem deixar ninguém no seu lugar?

Decidiu enfim deixar de ser meramente passivo. Queria fazê-los sofrer, obrigá-los a viver tragédias que só conseguiriam ultrapassar se se aproximassem uns dos outros. Iria despertar a compaixão pela necessidade. Mandou terramotos, pragas, inundações e todo o tipo de catástrofes de proporções bíblicas. Assistiu impávido enquanto morriam aos milhões, acreditando que desta forma, através de um processo de selecção natural, faria com que os altruístas sobrevivessem através da entreajuda. Verificou no entanto que, apesar de toda a miséria e sofrimento, havia sempre, sempre alguém disposto a usufruir da desgraça alheia. Percebeu que o instinto de sobrevivência fazia com que tudo fosse permitido e testemunhou actos de impensável crueldade. Aceitou finalmente que era inútil, nada poderia salvar aquela mesquinha criatura. Tinha um defeito de fabrico. Não, era ainda mais profundo que isso, era um erro de concepção. Não havia nada a fazer.

Com um pensamento, todos os primatas desapareceram da superfície da Terra e, depois de minucioso planeamento, decidiu tentar de novo noutra ponta do universo.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Tempus Fugit - Capítulo 1.2.2

Embora a antecipação lhe provocasse um ligeiro nervosismo, porque nos tempos que corriam - metaforicamente falando, dadas as circunstâncias - era o sinal que marcava o início do período em que saia para o exterior, foi com perfeita naturalidade que encarou o momento em que tudo parou.

Havia também alguma excitação pelo facto de ter decidido estudar este fenómeno, conduzir uma pesquisa o mais científica possível que conseguisse pelo menos proporcionar-lhe algumas pistas sobre as suas origens e sobre o seu efeito. Queria também saber o que tinha visto da última vez, aquela variação de luminosidade era também uma fonte de grande curiosidade.

O plano, que não considerou propriamente uma obra prima saída do cérebro de um grande estratega, mas que o satisfez minimamente, consistia em percorrer a cidade de forma sistemática e atenta, de forma a detectar alguma coisa que escapasse ao congelamento e que eventualmente lhe permitisse ter alguma ideia do que tinha provocado o que tinha presenciado e que lhe permitisse recuperar a confiança na sua lucidez, já que o acontecimento tinha sido tão rerpentino e ténue que deixava alguma dúvida se teria mesmo acontecido ou se, pelo contrário, não teria passado de uma partida da sua imaginação. Complementarmente iria também observar com algum rigor o comportamento dos corpos celestes, bem como o do seu próprio corpo durante o momento morto. Obteve uma planta da cidade, traçou itinerários para cada incursão e reuniu material para registar as suas observações. Esperava que dentro de algum tempo, aquele caderno contivesse informações sobre algum outro ser ou entidade que, como ele, conseguisse escapar à acção deste estranho fenómeno.

As primeiras expedições apenas conseguiram revelar que o fenómeno se extendia aos corpos celestes. Tanto a lua como as estrelas se mentinham estáticas, não descrevendo os seus movimentos naturais. Apesar de não ser de todo uma situação expectável, achou que, dadas as circunstâncias, fazia sentido, dado que o momento morto aparentava já durar bastante mais que uma noite, sem no entanto se verificar qualquer alteração ambiental.

Quanto à observação do seu próprio corpo, achou curioso só após ter decidido efectuar esta análise de forma mais cuidada, se ter apercebido que, apesar de se sentir de perfeita saúde e do seu corpo aparentar funcionar normalmente, não sentia qualquer necessidade fisiológica. durante o momento morto nunca sentia fome, sede nem necessidade de excretar os subprodutos do seu metabolismo. No entanto, apesar da de não ingerir absolutamente nada durante o momento morto, nunca sentiu qualquer tipo de fadiga ou fraqueza, pelo contrário, sentia-se muito mais enérgico que durante a parte da sua vida que se poderá considerar mais normal.

O período que se seguiu seria certamente considerado extremamente aborrecido por muitos, no entanto a paz reinava na sua mente enquanto percorria as ruas que, apesar de pejadas de pessoas imóveis, era já como se estivessem desertas para ele.

Esta paz durou, no entanto, pouco. Numa altura em que a possível existência de algo desconhecido que se movimentasse no momento morto já não era algo sobre que ponderasse com frequência, eis que algo provoca o fenómeno que cada vez mais era categorizado como uma partida da imaginação. Pior, em vez de um acontecimento momentâneo, este teve uma duração que lhe permitiu concluír que não se tratava de algo criado pelo seu cérebro. Era notória a variação na luz ambiente, como se algo o sobrevoasse, como se um bando de gigantescas aves planasse sobre si. A curiosidade transformou-se em terror ao olhar para cima. Arrependeu-se de ter querido saber o que, além de si, se movimentaria durante o momento morto.

Enquanto tentava obrigar o corpo a reagir, combatendo a paralisia provocada pelo medo, uma frase teimava em não desaparecer do seu pensamento: "Cuidado com o que desejas".

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Tempus Fugit - Capítulo 1.2.1

Vagueava pelas ruas intrigado com a sobra que acreditava ter visto. Na sua situação corrente, era já algo difícil confiar completamente nos seus sentidos, mas tinha praticamente a certeza que algo tinha acontecido, que tinha detectado movimento. A ideia de não ser a única pessoa activa durante o momento morto causava-lhe, por um lado algum conforto pelo facto de ser possível que não estivesse sozinho, mas também algum desconforto por sentir de alguma forma que a sua privacidade estava a ser invadida. O desconforto começou a ganhar terreno quando ponderou que, o que quer que estivesse a partilhar consigo aqueles momentos não seria provavelmente humano. A sensação com que tinha ficado era de que alguma entidade etérea teria flutuado por cima dele. Enquanto se perdia nestes pensamentos, o seu coração acelerou ao aperceber-se que algo estava novamente a influenciar a luminosidade. Assim que concentrou a sua atenção no fenómeno começou mesmo a distinguir um vulto. Tornava-se cada vez mais nítido, até que começou a distinguir o contorno de alguém, alguém vestido de branco. Deitou-se enquanto sentia a consciência a fugir-lhe. A pessoa de branco aproximava-se cada vez mais e esforçou-se por manter a consciência enquanto deixava de sentir o seu corpo.

As suas pálpebras abriram-se e deixou-se permanecer imóvel, permitindo apenas movimento aos seus olhos para reunir informação sobre o que o rodeava numa tentativa de perceber onde se encontraria, aparentava ser num hospital ou algo semelhante.

Concluiu que tinha perdido os sentidos e entretanto o momento morto teria terminado. Provavelmente teria sido encontrado inconsciente e trazido para o hospital onde acordou quando começou a ver a pessoa de branco. Pessoa esta que olhava para si como que à espera de um sinal de reconhecimento da sua presença, que acabou por acontecer quando, algo incredulamente ainda, fitou o homem nos olhos.

Parece que está a acordar. Disse o homem de bata branca enquanto o observava, não aparentando no entanto estar a falar consigo. Você está a acordar de um coma prolongado. Continuou, agora dirigindo-se notoriamente a ele. Não se esforce, deixe que a consciência volte naturalmente.

Coma prolongado? Pensou. Teria toda a história do momento morto tinha sido uma mirabolante fabricação do seu cérebro? Consegue ouvir-me? Perguntou o homem de bata branca. Respondeu afirmativamente com um ligeiro aceno da cabeça. Houve alturas em que achámos que o perdíamos. Continuou. Mas você conseguiu e já está fora de perigo. Perguntou o que tinha acontecido, mas o homem de bata branca exortou-o a descansar por algum tempo prometendo que voltaria para o pôr ao corrente de tudo e, sem lhe ter dado qualquer hipótese de argumentar, esgueirou-se através da porta por onde entrou de seguida uma jovem, também vestida de branco que com uma voz extremamente meiga lhe perguntou se precisava de alguma coisa. Perguntou novamente o que lhe tinha acontecido e ela respondeu apenas que tinha tido um acidente muito grave mas que o doutor lhe explicaria tudo o que quisesse saber. Aconselhou-o também a descansar e, antes de desaparecer novamente pela porta, disse que a chamasse caso precisasse de alguma coisa.

A consciência voltava lentamente e com ela alguma ira. Uma pessoa acorda de um coma e ninguém lhe diz nada? Praguejou silenciosamente. Nem sequer a consideração de me dizerem onde estou, e a enfermeira nem sequer me deixou aqui o interruptor para a chamar. Estará à espera que eu grite caso precise dela? Continuou.

Decidido a chamar alguém e obter as respostas que achava ter direito, percorreu com os olhos a parede da sua cabeceira e lá vislumbrou o desejado interruptor. Tentou alcançá-lo e ainda demorou um ou dois segundos a perceber que o braço não estava a responder à ordem do cérebro. Demorou outro segundo ou dois até o pânico se instalar por completo. Abriu a boca para permitir a saída do grito que se formava nas profundezas do seu ser, que apenas terminou quando o homem de bata branca apareceu e, munido de uma seringa, lhe administrou qualquer coisa que o fez novamente perder a consciência.