sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Tempus Fugit - Capítulo 1.1.1.1

Sabia tudo o que acontecia. As atrocidades que testemunhava eram inimagináveis e começou a aperceber-se que estava a adquirir algo que poderia definir-se como repulsa pelo ser humano. Não por nenhum em particular, por todos. Começava mesmo a desprezar todos os humanos. Imaginava-se a esmagá-los um a um como se de pequenos vermes se tratassem. E para ele não tinham mesmo mais importância que qualquer outro verme.

Pensava no seu antecessor, no que o teria levado a procurá-lo e passar-lhe as suas responsabilidades e soube que tinha sido esta mesma aversão. Apercebeu-se que se não se tivesse afastado acabaria por sucumbir à vontade de eliminar toda aquela espécie repugnante. Pensava no que lhe tinha dito sobre o livre-arbítrio e agora compreendia. No entanto, a sua não intervenção começava a fazê-lo sentir-se sem propósito. Ponderava qual seria o seu papel, a sua utilidade. Por que razão existiria um deus se não se manifestava. Porque não tinha o seu antecessor simplesmente desaparecido sem deixar ninguém no seu lugar?

Decidiu enfim deixar de ser meramente passivo. Queria fazê-los sofrer, obrigá-los a viver tragédias que só conseguiriam ultrapassar se se aproximassem uns dos outros. Iria despertar a compaixão pela necessidade. Mandou terramotos, pragas, inundações e todo o tipo de catástrofes de proporções bíblicas. Assistiu impávido enquanto morriam aos milhões, acreditando que desta forma, através de um processo de selecção natural, faria com que os altruístas sobrevivessem através da entreajuda. Verificou no entanto que, apesar de toda a miséria e sofrimento, havia sempre, sempre alguém disposto a usufruir da desgraça alheia. Percebeu que o instinto de sobrevivência fazia com que tudo fosse permitido e testemunhou actos de impensável crueldade. Aceitou finalmente que era inútil, nada poderia salvar aquela mesquinha criatura. Tinha um defeito de fabrico. Não, era ainda mais profundo que isso, era um erro de concepção. Não havia nada a fazer.

Com um pensamento, todos os primatas desapareceram da superfície da Terra e, depois de minucioso planeamento, decidiu tentar de novo noutra ponta do universo.

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