quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Tempus Fugit - Capítulo 1.2.1.1

Alguns segundos depois de abrir os olhos, a realidade atingiu-o como um raio. Seria melhor uma existência solitária num mundo congelado, mas onde se podia mexer, ou uma existência fisicamente vegetativa num mundo compartilhado? O dilema fervilhava no seu cérebro e embora uma parte dele o tentasse convencer que o importante era a mente e não o corpo e que poderia ter uma vida gratificante, não conseguia acreditar. O dilema era fictício, sabia perfeitamente que nunca escolheria a sua situação actual, a que mais cruelmente se apresentava como real.

Doutor, quero voltar a estar em côma, disse assim que o médico atravessou a porta do quarto. Desculpe? Retorquiu incrédulo. Sei que é possível induzir um côma, quero que me façam isso, insistiu. Não podemos fazer isso. Esse procedimento envolve muitos riscos e é usado apenas em casos de dor extrema, como acontece, por exemplo, em casos de queimaduras muito extensas. Além do mais, não pode ficar aqui indefinidamente, existem outras pessoas a precisar dessa cama e, como a sua condição já se encontra estabilizada estamos até a pensar dar-lhe alta dentro de uma semana, tem que começar a fazer os preparativos para voltar para casa e refazer a sua vida. Já percebi que não vale a pena insistir, mas como é que propõe que eu faça esses preparativos? O hospital está a tentar entrar em contacto com a sua família, certamente alguém virá para o ajudar.

Estava já instalado na sua casa, a família tinha já contratado uma enfermeira para tratar dele, a quem decidiu não dirigir mais palavras do que as estritamente necessárias, quando, no meio de toda a sua revolta surgiu um refrescante pensamento positivo. Nem parecia seu, era como se lhe tivesse sido enviado de fora e dizia-lhe que uma pessoa é a sua mente e não o seu corpo, o corpo era apenas uma ferramenta. Dizia-lhe que a evolução pessoal não era feita no mundo físico, mas no campo espiritual, que era este o importante e que não lhe estava vedado. Lembrou-se das crenças budistas e obrigou-se a acreditar que a libertação do plano terreno era de facto possível. Começou a passar a grande maioria do seu tempo em meditação e libertou-se aos poucos das amarras dos apegos às coisas do mundo físico. Quando finalmente conseguiu sair do seu corpo estava já num ponto tal da sua cultivação pessoal que não sentiu qualquer euforia. Estava já livre de todas as paixões. Compaixão era o único sentimento que perdurava.

Viajou por inúmeros planos de existência e estabeleceu contacto com vários seres iluminados. O seu corpo passou o resto dos dias imóvel até perecer, mas a sua mente percorreu o universo e perdurou.

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