sexta-feira, 13 de abril de 2007

Os desejados

Encontrei -os novamente.
E que falta me faziam :)


"A tentar
Pra sentir
E mudar
Pra voltar a cair
Para me levantar
Para nunca mais tentar
Mentir
Pra crescer
Para amar
Para ser
O lugar
Pra viver
E gostar
De gostar
De viver
Pra fugir
Pra mostrar
Pra dizer
Pra ter paz
Pra dormir
Pra fingir acordar
Para ser
Derramar
Para nunca mais tentar
Mentir "

Ornatos Violeta "Para nunca mais mentir"

Albúm - O Monstro Precisa de Amigos (1999)

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Psicose

O ambiente estava carregado. Os que não contemplavam os pormenores do monótono padrão formado pelas frias lajes do chão, perdiam-se nas macabras figuras desenhadas nas paredes pelo descascar da tinta junto ao tecto. O silêncio seria absoluto, não fosse o velho louco que a um canto balbuciava blasfémias e as repetidas e abafadas pancadas, a uma cadência lenta e constante, que se ouviam muito ao longe e cuja reverberação metálica se propagava pelos longos corredores. O cheiro a mofo, misturado com as emanações dos corpos era fracamente atenuado pela brisa débil, oferecida por uma decrépita e preguiçosa ventoinha que pendia no tecto, provocando ténues variações na luz.
Uma palavra começou a ganhar forma no meu cérebro, cada vez mais distinta. Era uma palavra familiar, tão familiar…
O meu nome? Sim, era o meu nome! Olhei na direcção da voz e já ninguém olhava o chão, muito menos a tinta das paredes, todos olhavam para mim, para mim! O pânico cresceu ao tomar consciência que alguém no grupo de facto me chamava. O coração disparou, como se se projectasse violentamente contra a parede interior do meu peito, numa desesperada tentativa para sair. Os músculos começaram a paralisar, um a um, e tudo ficou branco…

- Está tudo bem. Dizia uma voz suave. Amanhã tentamos outra vez, mas temos que nos esforçar mais. Está bem?
- Não!!! Respondi sem emitir qualquer som, mantendo os olhos fechados.
- Agora vamos descansar, amanhã correrá melhor.
- Não! Não. Não…

Arrastei-me pelos infindáveis corredores tentando evitar aqueles que me olhavam fixamente. Odiava-os, parecia que olhavam para dentro de mim, como os odiava...
Sentei-me na poltrona do canto e perdi-me, contemplando o desenho abstracto que as várias décadas de utilização gravaram na sua superfície. Outra vez aquela palavra familiar ecoava no fundo do meu cérebro, cada vez mais expressiva. Percebi que novamente alguém me chamava. Porque é que não me deixavam em paz? Porque não esqueciam que eu existia? Ignorei, mantive o meu olhar fixo na poltrona e desejei que a voz se extinguisse, mas isso não aconteceu, pior, tornou-se cada vez mais próxima, mais próxima. Depois de uma fracção de segundo, em que me transformei numa estátua de pânico ao sentir uma mão sobre o meu ombro, a adrenalina disparou e perdi o controle sobre o meu corpo. Sentia apenas o meu corpo a rodopiar freneticamente e as mãos a embater violentamente contra tudo o que me rodeava, até que a dolorosa picada no braço me fez desfalecer.

Gargalhadas, escuridão e gargalhadas. Tremi de medo ao sentir as gargalhadas que ribombavam pelo meu cérebro. De onde vinham? Quem estaria ali? Porque ria assim? Sentei-me encolhido e, semicerrando os olhos, perscrutei a escuridão. Um violento espasmo percorreu o meu corpo quando me pareceu vislumbrar o contorno esbatido de um rosto pálido e fantasmagórico. Cerrei os olhos, não sei por quanto tempo, horas talvez, até que consegui reunir coragem para os abrir novamente. Rapidamente me apercebi que não era um rosto, eram vários! Estava rodeado de rostos arrepiantes que com um lúgubre esgar, riam tresloucadamente. O terror aumentava, atingindo o seu fastígio quando os rostos se começaram a aproximar. Vinham de todos os lados, cada vez mais perto e quando comecei a conseguir distinguir os contornos escuros dos seus corpos escancarei a boca para gritar mas nenhum som saiu. Em vez disso uma dor lancinante invadiu-me a cabeça fazendo-me fechar os olhos em agonia. Quando os abri, comecei a focar a cor esbatida que me rodeava, com a sua matriz de círculos perfeitamente espaçados. Lentamente recuperei os sentidos enquanto o meu coração abrandava. Tacteei o chão e sorri ao sentir os montículos almofadados. Fechei novamente os olhos.

O sol que entrava pela janela, sem grades e aberta de par em par, aquecia-me a face. Uma branda brisa soprou, renovando o ar do quarto e agitando os meus cabelos desalinhados. Lentamente levantei-me e, aproximando-me da janela, inspirei profundamente o ar puro e fresco, de aroma a terra e flores. Enquanto o fazia os meus pés descalços perderam o contacto com o chão. O meu corpo elevava-se e lentamente flutuei janela fora. O tempo perdeu o sentido enquanto flutuava sobre extensas planícies coloridas, majestosos desfiladeiros, densas e verdes florestas, rios, mares…

O som metálico da fechadura fez-me imediatamente voltar a sentir o chão debaixo das minhas costas. Porque não me deixariam sossegado, com os meus pensamentos? Porque estavam tão decididos a ouvir-me? Que achariam que tinha para lhes dizer? Não desistiriam, tinha que fugir daquele sítio. Tinha a certeza que se conseguisse abrir uma janela, poderia realmente voar. Estaria mesmo demente? Sabia que as pessoas não voavam. Apesar de o fazer de maneira diferente da maioria, o meu cérebro parecia funcionar na perfeição. Mas eu tinha a certeza! O longínquo chão não me assustava, sabia que voaria para onde quisesse, para a liberdade. Tinha que encontrar uma saída. Tinha que haver uma janela sem grades!
Uma ideia brilhou na minha mente. Era simples, bastava conseguir ficar invisível! Se estivesse invisível conseguiria entrar na sala proibida sem ninguém perceber. Era brilhante! Mas será que conseguia?
A porta abriu-se. Saí em silêncio, decidido a testar a minha capacidade de me tornar completamente invisível.
Dirigi-me a um dos corredores de maior movimento, aquele que eu evitava a todo o custo e que me provocou um profundo arrepio na coluna quando me aproximei dele. A luz, irregularmente difusa, mergulhava o ambiente numa estranha soturnidade. Só a motivação do meu objectivo me permitiu continuar. Obstinado, coloquei-me a meio do corredor, respirei fundo e concentrei-me. Concentrei-me profundamente em ficar invisível e, para meu gáudio, senti que começava a acontecer. Olhei para baixo e tive ainda um vislumbre do meu corpo translúcido antes de desaparecer completamente. O júbilo transformava-se em euforia, quase impossível de conter!
Deixei-me ficar e cada pessoa que passava, impassível à minha presença, elevava um pouco mais o meu espírito. Tive a confirmação absoluta quando fui obrigado a desviar-me, para que um dos passantes não esbarrasse comigo. Vinha mesmo direito a mim, era óbvio que não me via. Estava mesmo a resultar. Sucesso, sucesso!!!

Seria muito simples. Bastava colocar-me junto da porta da sala proibida e, quando alguém saísse, eu esgueirar-me-ia para dentro antes que a porta se fechasse.
Não havia nenhuma razão para adiar mais. Reforcei a minha concentração em manter-me invisível, dirigi-me para o local seleccionado e esperei. A sala tinha muita afluência, muita gente entrava, mais tarde ou mais cedo alguém teria que sair. E eis que acontece! Com um pulo cuidadoso, para que não me ouvissem, entrei. Era enorme. De um lado, uma comprida mesa oferecia as mais variadas iguarias, a maioria das quais irreconhecíveis para mim. Do outro, os que não se deliciavam com os prazeres gastronómicos oferecidos no lado oposto, entregavam-se aos prazeres da carne em luxuriosas e animalescas orgias em que os contornos dos corpos se diluíam, parecendo apenas uma enorme e grotesca criatura. Era então isto que acontecia aqui, pensei, mas num ápice, toda a minha atenção se concentrou na parede ao fundo da sala. Uma janela! Uma janela sem grades, sem trancas! Confiante na minha invisibilidade, atravessei calmamente a sala e aproximei-me da janela. O meu coração palpitava em antecipação e quase me saiu pela boca quando, ao accionar o puxador, a janela se abriu. Fleumaticamente mas decidido, subi, tinha chegado o momento, seria livre! Abri os braços e com um pequeno impulso os meus pés deixaram para trás o frio parapeito.

quarta-feira, 4 de abril de 2007

Angústia

Estava num recanto de um prédio. Acanhadamente tentava interpelar as pessoas que, com total indiferença, passavam sem sequer desviar o olhar. Ao passar por ela, ouvi um desfalecido “O senhor pode ajudar-me, por favor?”. Se calhar mais por falta de hábito de andar pelo centro da cidade, onde os mendigos - nem todos merecedores de ajuda - abundam, do que por solicitude, parei, dei um passo atrás com um “Sim?”, pensando que a velha senhora precisava de indicações. O meu coração começou imediatamente a encolher quando ela, sem conseguir conter as lágrimas que lhe escorriam pela face, disse que lhe tinham descoberto um cancro, que estava a começar a fazer quimioterapia, que não tinha nada em casa para comer… Instintivamente despejei nas suas mãos as moedas que tinha e tive vontade de a abraçar, de lhe dizer que tudo iria correr bem, tentar aliviar um pouco da sua dor. Não sei se teria servido para alguma coisa, mas sei que não tenho robustez emocional para uma situação daquelas, pelo que, com um aceno em resposta aos agradecimentos, me afastei rapidamente, no limiar das lágrimas. Revendo agora a situação, uma senhora já com alguma idade ali naquele recanto, invisível, reaviva a angústia que senti. Percebia-se perfeitamente que era uma situação nova para ela, o seu constrangimento era notório e via-se a vergonha e o desespero nos seus olhos. Nem por um segundo duvidei da sua necessidade e o meu coração continua encolhido por não ter podido fazer mais. Num país que se diz desenvolvido, uma pessoa não devia chegar àquela idade e ter que pedir esmola.