terça-feira, 29 de julho de 2008

Tempus Fugit - Capítulo 1.1

O tempo passou, ou não, e numa altura em que já sentia que vivia sozinho num mundo só seu, eis que, durante o momento morto, ouve uma voz. Não sabia se seria mesmo uma voz real ou se apenas existia dentro da sua cabeça, mas parecia aproximar-se, até ao ponto de se tornar inteligível.

- Acho que estás pronto.

- Quem és tu? Onde estás?

- Sou conhecido por muitos nomes, mas a verdade é que não tenho nenhum. E... acho que pode dizer-se que estou em todo o lado.

- Pronto! Acho que posso concluir que estou definitivamente louco. Provavelmente até já estou internado num qualquer manicómio e isto está tudo a passar-se dentro do meu cérebro...

- Não precisas de te preocupar. Tudo vai fluir naturalmente. Tenho a certeza que foste a escolha certa. Não soubesse eu tudo.

- Já percebi. Estás em todo o lado, sabes tudo... És Deus, certo?

- Esse é um dos nomes pelo qual sou conhecido.

- Isto pode ser um choque, mas eu não acredito em ti. Talvez não seja um choque porque provavelmente também já sabias isso, não é?

- Sim, sabia e não traz qualquer problema. Não irá provocar qualquer impedimento à realização do meu plano.

- Plano... Tens um plano para mim?

- Sim. É verdade. Apesar de muita gente pensar que tenho um plano para toda a gente, isso não é verdade. São raríssimas as vezes que intervenho na vida das pessoas. Esta é regida quase unicamente pelo livre-arbítrio. A vida de cada um é apenas definida pelas suas próprias opções. Mas para ti, sim, tenho um plano.

- Não fiques a pensar que estou a acreditar nisto tudo, porque não é verdade. Tenho a certeza que tu não existes fora da minha mente e que não és mais que uma manifestação da minha demência. Mas vou entrar no jogo. Qual é o plano?

- Estou cansado. Quero passar as minhas responsabilidades a um substituto e esquecer este universo.

- Boa! Vou ser Deus! Ao ponto a que eu cheguei... Será que vão conseguir curar-me ou estarei condenado a viver o resto da vida nesta espécie de realidade só minha?

- O resto da tua vida é a eternidade. E já te disse que o facto de acreditares não faz diferença nenhuma. O fenómeno que tens andado a experimentar, aquele a que chamaste momento morto, não é mais que uma forma de te ajudar a criar a necessária distância emocional do mundo. Senão ias querer ajudar toda a gente, acabar com a fome, com as doenças, com a crueldade, sem sequer ponderares sobre as possíveis consequências. Lá se ia o livre-arbítrio, não era?

- Como é que sabes que lhe chamei momento morto? Ah, compreendo, se és um produto da minha mente sabes tudo o que eu sei. Mas olha, pelo menos apesar de doido, não estou estúpido. Parece que o meu cérebro ainda consegue fabricar devaneios com algum sentido. Essa do livre-arbítrio está muito boa. Agora a questão é: será que faria sentido se não estivesse demente?

- Acredita no que te for mais confortável, é o que a maioria das pessoas faz.

- Suponho que sim. Então e como é que isso vai acontecer? Vou ter algum tipo de treino? Existe um curso de formação para deus?

- Gosto do teu senso de humor. Foi até uma das razões pelas quais te escolhi. Muita gente pensa o contrário, mas eu tenho senso de humor, gosto de me divertir. O curso, já estás a frequentá-lo há algum tempo e as boas notícias são que não tens que fazer qualquer esforço. Quando o momento chegar, e não falta muito, estarás preparado. Já estás praticamente desligado do que te rodeia, só falta habituares-te à tua nova condição. Quando esse momento chegar, venho oficializar a passagem de responsabilidades e vou desaparecer para o meu merecido descanso.

- E isso vai ser quando? Estás a ouvir-me? Deus?...

A situação era demasiado absurda para continuar a achar que se encontrava mentalmente são. Atingira o ponto da aceitação, estava louco. Provavelmente o estender progressivo do momento morto seria a sua condição a agravar-se cada vez mais, provavelmente para culminar num constante momento morto. E aí? O que faria? Como seria capaz de viver num mundo congelado? Apercebendo-se que todas estas questões lhe ocorriam como um mero processo mental e não como uma preocupação, decidiu simplesmente continuar a viver como até aí, um dia de cada vez, deixando que os acontecimentos surgissem de uma forma natural e espontânea.

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