Mais uma para o meu piteco.
Quem é que esteve na sala dos sonhos? Perguntou o enorme zurbalino com a sua voz grave e possante. Os parrecos entreolharam-se com ar interrogativo durante alguns instantes e, alguns deles encolhendo os ombros, voltaram todos a face na direcção do zurbalino. Alguém roubou um sonho, continuou o zurbalino antecipando a pergunta óbvia, e ninguém sai daqui enquanto não se descobrir quem foi. Contagem! Disse em tom autoritário. Numa reacção imediata, todos os parrecos se colocaram lado a lado em fila. Um! Disse o primeiro parreco enquanto dava um leve piparote na nuca do companheiro ao seu lado. Dois! Disse o segundo, imitando o gesto. Todos os parrecos cumpriram na sua vez, até que o último gritou alto: noventa e nove! Noventa e nove? Repetiu, admirado, o zurbalino. Falta um! Quem?? Gritou. Alguns instantes depois, durante os quais os parrecos voltaram a entreolhar-se, eis que aparece o que faltava, a apertar as calças. O que é que se passa? Já não se pode ir à casa de banho? Perguntou desconfiado ao aperceber-se que todos os olhares incidiam em si.
Afinal parece que estão cá todos, disse o zurbalino, pondo fim ao burburinho que se tinha instalado. O que eu sei é que antes do meu intervalo todos os sonhos estavam no sítio, continuou, caminhando vagarosamente entre os parrecos, e quando voltei, faltava um! Levantou a voz em tom dramático ao terminar a frase. Eu sou um zurbalino compreensivo, continuou, sei que uma sala repleta de sonhos é uma tentação, mas vocês têm que perceber que um sonho não serve para nada se não soubermos o que fazer com ele. Espero que quem o tirou compreenda isso e vou dar-lhe uma oportunidade de se arrepender. Vou dar uma volta até lá fora e espero que, quando voltar, o sonho esteja novamente no sítio. Se isso acontecer, eu esqueço toda a questão, concluiu enquanto dava meia volta e se retirava. Nenhum dos parrecos se mexeu até ao regresso do zurbalino, que, com um visível esforço para manter a calma disse: já vi que o sonho não foi restituído, terei que adoptar medidas mais drásticas. Vocês, parrecos, são muito previsíveis, e não será nada difícil elaborar um método para descobrir qual de vocês é que tem um sonho que não lhe pertence, disse o zurbalino em tom ameaçador, mas a verdade é que não tinha qualquer ideia sobre como fazê-lo. Todos de volta ao trabalho, ordenou, e ninguém sai daqui até eu voltar! Depois de alguns momentos de desorganização, todos os parrecos retomaram os seus lugares e continuaram o seu labor. Com um suspiro, o zurbalino recolheu-se para a sala dos sonhos para pensar numa solução.
Sentado na sua cadeira, como que em busca de inspiração, o zurbalino contemplou os sonhos, meticulosamente organizados nas prateleiras que revestiam todas as paredes. O que é que torna um parreco com um sonho diferente dos restantes? Perguntou, em voz alta, a si mesmo. Haverá certamente uma forma de o detectar, continuou, mas já sem verbalização. De repente, os seus olhos frontais brilharam. É isso, disse levantando-se energicamente, e é tão simples. Basta-me perguntar-lhes o que desejam, certamente o que tiver o sonho vai dizer algo mais elaborado que os outros. Seguro do sucesso da sua ideia, entrou de rompante na oficina dos parrecos, com um sorriso algo maquiavélico. Quero todos em fila para falar com vocês um a um, disse alto. Numa questão de segundos, todos os parrecos estavam alinhados e prontos para o interrogatório. Perguntou a cada um o que desejava e desmoralizou ao receber de todos praticamente a mesma resposta. Todos os parrecos responderam que a única coisa que desejavam era trabalhar na fábrica de sonhos. Frustrado, o zurbalino voltou para a sua sala sem proferir outra palavra.
Menosprezei-o, pensou, já sentado na sua cadeira, ele percebeu que se denunciaria se fosse sincero e respondeu o que sabia que devia responder. Não estou a lidar com um parreco normal… Claro que não estou a lidar com um parreco normal, disse para si, reprimindo-se, a um parreco normal não lhe ocorreria roubar um sonho, estou a lidar com um degenerado, e descobri-lo vai ser um verdadeiro desafio. Tenho que pensar noutra solução. É isso! Disse o zurbalino, saltando da cadeira. Um parreco normal não tem aspirações, mas um que deseja ter um sonho terá de certeza. Vou montar-lhe uma armadilha, anuncio a criação do cargo de líder dos parrecos e ele de certeza que não vai resistir, pensou, com um semblante algo malévolo.
Com ar casual, o zurbalino dirigiu-se à oficina e afixou, falsamente desinteressado, o aviso que tinha composto para servir de isco à sua armadilha. Ficou à espreita e, quando verificou que os parrecos se dirigiam ao aviso, voltou para a sua sala com um sorriso triunfante. É uma questão de tempo até te apanhar, disse o zurbalino num murmúrio, enquanto se sentava. Só me resta esperar, pensou satisfeito. As horas passaram e nenhum dos parrecos apareceu. É mais inteligente que eu pensava, disse, irritado, o zurbalino, falando sozinho. Ou então menosprezei o poder do sonho que ele levou, também pode ser isso, continuou em voz alta, como se estivesse de facto a dialogar consigo próprio e esperasse uma opinião. É isso, a um parreco com um sonho verdadeiro não deve parecer minimamente apelativo ser o líder dos parrecos. Não posso mesmo menosprezar nem este parreco, nem o poder de um sonho. Se calhar estou a dar demasiada importância a isto, talvez o melhor seja não fazer nada e esperar que ele se denuncie. Ele não há-de conseguir resistir para sempre ao poder do sonho e, quando tentar alguma coisa, eu apanho-o. Com este pensamento, o zurbalino deixou-se afundar na cadeira e tentou descontrair. Passando casualmente o olhar pelo monitor que mostrava a oficina, reparou que, enquanto todos os restantes trabalhavam concentrados, um dos parrecos olhava distraidamente para o infinito. Rapidamente o parreco voltou ao trabalho e deixou de se distinguir dos demais, mas algo se iluminou na mente do zurbalino. Porque é que nos matamos a pensar em formas elaboradas e complicadas de resolver os nossos problemas quando a solução normalmente nos surge quando não nos estamos a esforçar para isso? Ponderou o zurbalino. E a verdade é que as soluções normalmente são extremamente simples, mas a nossa tendência para complicar impede-nos de chegar a elas, continuou, bastava-me observar os parrecos à procura de um ar sonhador, tão simples como isso. A verdade é que nunca tinha visto qualquer utilidade neste monitor, nunca tinha tido qualquer tipo de problema com os parrecos, disse para si próprio em jeito de desculpa, e por isso nem me ocorreu usá-lo. Manteve o olhar na imagem e, confirmando a sua teoria, aquele parreco voltou a passar alguns instantes a olhar para o infinito, como que embrenhado em pensamentos. Satisfeito, o zurbalino dirigiu-se à oficina e, subtilmente, disse àquele parreco que fosse até à sua sala e que esperasse por ele, pois precisava de lhe falar. O parreco retirou-se obedientemente e o zurbalino perdeu alguns momentos a informar os outros parrecos que a situação estava resolvida e que podiam retomar o trabalho sem se preocuparem mais com a questão do sonho roubado. Quando se dirigia para a sua sala, meditando sobre a melhor maneira de lidar com o prevaricador, eis que só consegue vislumbrar ao longe o parreco ladrão a sair a correr da sua sala com todos os sonhos que conseguia carregar. Correu o mais que podia, mas o seu corpo volumoso não o permitiu apanhar o parreco antes de este chegar ao pátio. O que é que estás a fazer? Gritou o zurbalino. Sabes que não tens por onde escapar. Quem disse que eu quero escapar, respondeu, seguro, o parreco, eu só quero soltar os sonhos. Soltá-los?? Repetiu, atónito, o zurbalino, porque é que alguém quereria fazer uma coisa dessas? Para que eles possam chegar a qualquer pessoa, retorquiu muito depressa o parreco. Mas isso é uma estupidez, continuou, algo aflito, o zurbalino, é um desperdício gastar um sonho em alguém que não o vai usar devidamente. Quem és tu para saber se alguém merece um sonho ou não? Perguntou o parreco de forma cortante. E mesmo que não se use devidamente, mais vale ter um sonho que não se usa do que não ter nenhum. Nem sei porque estou a debater isto contigo, disse rispidamente o zurbalino, não tens por onde fugir, portanto entrega-me os sonhos e eu serei benevolente. Podes apanhar-me a mim, respondeu o parreco em tom desafiador, mas pelo menos estes sonhos serão livres de ser encontrados por qualquer pessoa, quer saiba o que fazer com eles ou não. Dito isto, o parreco começa a correr à volta do pátio, soltando os sonhos que flutuavam para longe. Não! Gritou o zurbalino enquanto, trôpego, corria na tentativa de os apanhar. Depois de soltar todos os sonhos, o parreco retirou do bolso aquele que tinha roubado inicialmente. Gostava muito de ficar contigo, disse ao sonho, mas já que eu não sou livre, tu podes sê-lo, faz alguém feliz, gritou enquanto o libertava. O sonho, em vez de flutuar para longe como os outros, começou a crescer, a crescer, até que acabou por envolver o parreco e ambos levantaram vôo. O parreco não conseguiu segurar uma genuína gargalhada ao ver o zurbalino lá em baixo a praguejar, agitando um dos seus braços, de punho fechado no ar. Passados alguns momentos, derrotado, o zurbalino deixou cair os braços e deixou-se ficar a ver o parreco, envolto no seu sonho, a afastar-se cada vez mais, até desaparecer no horizonte para nunca mais ser visto.
7 comentários:
Muito bom :)
Thanks! :)
Big Fish?...
O teu piteco tem muita sorte por poder sonhar acordado contigo :):)
Gostei muito
Gostei muito, muito mesmo.
Muito bom!!!!
You're too kind, dearest friend :)
Eu sei o que é o big fish(!), não fosse eu um discípulo do grande deus Tim (not Tim, the enchanter, the other one...). Não tinha era percebido a alusão. Percebi agora. Thanks! :)
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