segunda-feira, 2 de julho de 2007
O Caracol - Capítulo 3
Bom… disse eu para quebrar o silêncio, pousando a caneca e sacudindo as calças num movimento espontâneo, já se faz tarde, tenho que ir andando. Olhou para mim com estranheza, estava certamente perdido nos seus pensamentos e não estava habituado a ser interrompido. Então e o que é que vais fazer agora que sabes de tudo, perguntou o Caracol. Hum… não sei bem… vou precisar de algum tempo para pensar nisto tudo e organizar as ideias, respondi hesitante, a verdade é que não planeava fazer nada, nem sequer me tinha ocorrido alterar o que quer que fosse na minha vida por causa da mirabolante história daquela pessoa tão peculiar, excepto talvez contar prazenteiramente o acontecimento aos amigos. Fica pelo menos mais atento, disparou rispidamente o Caracol, eu sei que já tenho alguma experiência, mas também não é assim tão difícil perceber quando está para acontecer um lapso, continuou, aquele velho de boné e patins em linha era demasiado óbvio, e aquele cego, acrescentou repentinamente, foge dele a sete pés, ou àqueles que tiveres, porque certamente ninguém terá sete pés, nem sei porque se diz isto, três, vá lá, quatro, em quem nasça com defeitos físicos, mas sete pés é uma estupidez, parou por momentos perdido em pensamentos até que, apercebendo-se que, ao contrário do costume, não estava sozinho, continuou, vê-se logo que aquilo não é um cego normal, muito cuidado com o cego! Sem querer ofender, retorqui suavemente, mas se vou estar a desconfiar de cada coisa estranha que vejo na rua, passo a vida desconfiado, e eu nem sequer sou uma pessoa desconfiada, terminei com um sorriso amarelo, para aligeirar o ambiente; ainda estava com algum receio que o homem desatasse a disparatar, como costuma acontecer com algumas destas pessoas que têm formas de pensar diferentes do que é comum. Acho que já não preciso disto, continuou como se falasse sozinho enquanto tirava do bolso um objecto envolto num trapo, posso dar-ta se prometeres que tentas salvar alguém se presenciares outro lapso, é o mínimo que podes fazer para retribuir. O que é, perguntei. Encontrei-a num sítio onde eles costumam andar, reparei que reage à sua presença vibrando e aquecendo ligeiramente, muito ligeiramente, disse enquanto abria o trapo e retirava uma esfera com cerca de três centímetros de diâmetro, aparentemente daquelas dos rolamentos, que pedíamos nas oficinas quando éramos pequenos. Prometes, perguntou enquanto me estendia o objecto. Não sabia muito bem o que fazer, não fiquei muito empolgado com a ideia de fazer aquela figura e não gostava nada de fazer promessas vãs, mas lá prometi e aceitei a oferta. Para demonstrar algum interesse, perdi algum tempo a observar minuciosamente a esfera, e de facto fiquei surpreendido com a sua perfeição, não tinha qualquer mácula ou sujidade e o reflexo era perfeito, era também bastante leve. Envolvi-a num lenço e guardei-a cuidadosamente, sempre observado pelo seu anterior proprietário. Obrigado, acho, espero que me seja tão útil como foi a ti, mas há ainda uma questão que me escapa, qual é o objectivo deles, perguntei censurando-me logo de seguida, devia era estar a tentar livrar-me daquele filme e ainda estava a dar conversa. Não posso ter a certeza, respondeu, suponho que queiram ocupar a nossa realidade ou qualquer outra coisa assim maléfica, se quiseres aparece cá outro dia e discutimos isso, é sempre bom debater, e confesso que gostei muito de poder partilhar isto com alguém, já quase nem me lembrava de como era ter alguém com quem conversar. Senti alguma pena, por muito que se aprecie a solidão, há sempre momentos em que nos apetece falar com alguém que responda. Perdendo o ímpeto de me ir embora, deixei-me ficar mais um pouco. Sem saber o que dizer e não querendo continuar com a história deles, fiz um comentário inútil sobre meteorologia que saiu muito pouco natural. Não sei se foi por perceber que já só lá estava movido por pena ou se queria realmente ficar sozinho, o Caracol estendeu-se preguiçosamente no saco-cama. Está na minha hora, levanto-me sempre muito cedo, já sabes, se quiseres aparecer para conversar de vez em quando, serás bem-vindo, disse-me em jeito de despedida. Pois, retorqui algo atrapalhado, aquela do tempo tinha saído mal, foi uma futilidade estúpida, uma pessoa que nunca conversa com ninguém não estaria certamente interessada em debater o estado do tempo, também tenho que ir andando, até um dia destes então, e obrigado pelo chá, estava… diferente. Até à próxima, e cuidado, eles andam aí! Tive que me virar de imediato para disfarçar e abafar uma gargalhada, nunca tinha ouvido aquela frase dita tão a sério, e o efeito foi exactamente o oposto, não consegui evitar achar piada. Sem me virar para que não percebesse a minha boa disposição, limitei-me a acenar e afastei-me tentando reviver mentalmente e manter na memória todo aquele curioso episódio, enquanto sentia, com a ponta dos dedos, o volume da esfera no meu bolso, como que para me certificar que tinha mesmo sido real.
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