Nessa noite sonhei que estava num enorme corredor estranhamente iluminado. Caminhava olhando para ambos os lados, quando noto alguém à minha frente. Acelero o passo para apanhar a pessoa, que caminhava no mesmo sentido, permitindo-me apenas ver as suas costas encurvadas. Aproximo-me e abordo-a tocando-lhe o ombro. Ao deparar-me com o seu rosto assustadoramente hediondo, os olhos esbugalhados pela ausência de pálpebras, no lugar do nariz tinha apenas dois buracos disformes e a ausência de lábios permitia ver os seus dentes afiados e caoticamente dispostos, acordei com um espasmo, como se o medo me tivesse feito saltar imediatamente de volta para a realidade.
Ao virar a cabeça e ver a esfera que tinha tirado do bolso no dia anterior e colocado em cima da mesa-de-cabeceira, lembrei-me imediatamente da louca história do Caracol. Pensei logo que o sonho teria sido originado por ela, tinha ficado com aquilo no subconsciente e não era nada de estranho que tivesse sonhado com coisas esquisitas. Ter percebido isto não conseguiu evitar que tivesse ficado com uma certa inquietude, que me esforcei por ignorar.
Estava a sair de casa quando me apercebi que ao voltar ao quarto para me vestir, instintivamente peguei na esfera e guardei-a no bolso. Achei curioso, parecia que a esfera é que tinha querido vir comigo e, mesmo não acreditando minimamente que aquilo fosse mais que uma mera esfera de aço, a verdade é que senti uma estranha sensação de segurança ao tê-la comigo.
O dia decorreu normalmente. A inquietude acabou por sucumbir, vítima da distracção, e foi só quando voltava para casa que, ao ver ao longe uma velhota vestida com cores muito berrantes, que as coisas transcenderam ligeiramente o banal. Ao aproximar-me comecei a distinguir a sua maquilhagem ridiculamente excessiva. Quase não havia parte do seu rosto que não estivesse pintada, os lábios e as maçãs do rosto estupidamente vermelhos e o branco que ia desde as suas pálpebras até às sobrancelhas, que não eram feitas de pelos, mas sim grosseiramente pintadas a lápis, fariam inveja a qualquer palhaço, achei particularmente piada ao facto de os lábios não estarem pintados até aos cantos da boca, o batom chegava apenas a três quartos do lábio, para cada lado, e o restante estava coberto pela mesma camada de base que cobria o resto do rosto, fingindo assim uma boquinha minúscula que fazia a velhota parecer uma horripilante boneca. Automaticamente lembrei-me da advertência do Caracol e, ao questionar por uma fracção de segundo a se a velhota não seria um deles, senti-me extremamente idiota por ter-me instintivamente sossegado pensando que não poderia ser porque a esfera não estava a reagir.
A tua imbecilidade é inacreditável, disse silenciosamente para mim mesmo, como é que é possível estares a deixar-te influenciar pela história parva de um louco, sim, está bem, ser louco é uma coisa dúbia e bastante relativa, mas a verdade é que sabes que a história é completamente absurda, continuei, não me vais dizer que acreditas naquilo. Não, não acredito, respondi-me, acredita que não acredito, mas um gajo não controla os pensamentos, não tive qualquer controle sobre o que pensei ao ver a velhota, automaticamente me lembrei do Caracol, quanto a isso não posso fazer nada. Mas se te lembraste é porque a história te ficou na cabeça, continuei, argumentando comigo mesmo, tu se calhar não queres acreditar, mas acho que qualquer coisa lá no nosso âmago acredita, acho que caso contrário não estaríamos sequer agora a discutir isto. Não acredito nada, a história só ficou na cabeça pela incomunidade da cena toda, só porque foi tudo muito estranho, só isso. Tudo bem, só estou curioso sobre quão cedo iremos ter esta conversa outra vez, e já agora, embora faça sentido, se considerarmos que “comunidade” também pode significar a característica daquele que é comum, não sei se “incomunidade” existe...
O resto do dia decorreu, obviamente, sem lapsos, e de noite sonhei novamente que estava no corredor da noite anterior, mas desta vez não havia monstros.
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