sexta-feira, 29 de junho de 2007

O Caracol - Capítulo 2

Fez um gesto com uma mão para que me aproximasse, enquanto me estendia, com a outra, uma caneca de chá, ao qual tinha já previamente adicionado uma generosa dose do bagaço que guardava com reverência dentro do saco, que, no fundo, continha a sua casa. O xarope para a tosse, chamou-lhe. Aproximei-me e, recolhendo a caneca que me era dirigida, sentei-me no chão à sua frente, como uma criança que espera uma história. Vagarosamente levou a caneca à boca e, sorvendo ruidosamente um trago, respirou fundo com um suspiro, como se tomasse fôlego para a revelação que iria partilhar.
Sabes, começou com um ar grave, nem todas as pessoas são realmente pessoas. Não são realmente pessoas, perguntei com falso espanto, sei que muitas pessoas não são realmente humanas, mas sempre pensei que fossem todas pessoas. Pois não são, retorquiu, muitas delas já deixaram de o ser e são agora um deles, tu também serias se eu não te tivesse salvado, acrescentou arregalando os olhos. E não penses que a pessoa fica lá presa e que pode voltar, continuou, não, a pessoa perde-se para sempre, fica apenas o seu corpo, a casca. A alma, ou consciência ou aquilo que lhe quiseres chamar, que era a pessoa, morre, e de lá ninguém volta. Pois, disse eu pausadamente, isso é muito curioso, mas continuo sem saber quem é que eles são afinal. Para ser sincero, respondeu, não sei exactamente o que eles são, nem de onde vêm, se de outro planeta, de outro tempo ou até mesmo de outro plano de existência, mas posso garantir-te que existem, e são cada vez mais, exclamou. Mas como é que sabes isso, e falaste há bocado de um "lapso", de que é que estavas a falar, perguntei rapidamente. Há já muito tempo que os ando a observar, recomeçou depois de outra inspiração mais profunda, tudo começou quando, por acaso, assisti a um lapso, como eu lhe chamo, que é quando eles se reúnem para arranjar mais corpos. Pelo que já vi, continuou após uma pausa para um gole de chá, eles precisam de reunir-se em grande número para criar condições para que outros deles possam invadir os corpos dos coitados que lá estiverem que ainda não sejam deles. Eu assisti a um desses lapsos e sobrevivi, não sei como nem porquê, mas a verdade é que sobrevivi e fiquei a saber que eles existiam. Então... mas como é que foi, perguntei já com alguma curiosidade genuína. Eles vão-se juntando, ficam muito imóveis e com os olhos muito abertos; quando são suficientes algo acontece que automaticamente mata toda a gente à volta, respondeu elevando a voz, imaginas o meu pavor quando vejo toda a gente, excepto os que estavam feitos estátuas, a cair no chão ao mesmo tempo. E quando os vi todos novamente a levantar-se, perguntou retoricamente já visivelmente empolgado, claro que fiquei completamente petrificado, deixei-me estar quietinho que nem um rato, daqueles que ficam muito quietos, porque também os há bastante irrequietos, pensando bem... acho que até é a grande maioria... porque é que se dirá que se fica quieto que nem um rato... os ratos não são assim tão parados... acho que fica melhor é dizer que fiquei quieto que nem um caracol. Não consegui evitar abrir um sorriso ao ouvir a divagação, obviamente também achava que o termo se adaptava muito mais. Fiquei ali, quietinho como um caracol, disse retomando o discurso sem aparentar ter reparado no aumento da minha boa disposição, e vi-os todos levantar-se, acenar com a cabeça aos outros e saíram todos juntos. Isso é uma história e peras, respondi, à espera que continuasse. Desde aí tenho tentado salvar algumas pessoas, mas foste a primeira que consegui, todas as outras resistiram e acabaram mortas, disse com ar triste. Quem as pode censurar, se calhar não te vês ao espelho há muito tempo, pensei, mas, então e eles nunca te apanharam, foi o que da minha boca apenas se ouviu. Já tentaram, uma vez vieram atrás de mim até quase aqui, mas assim que chegaram perto da nespereira, era vê-los a correr como o diabo da cruz, exclamou com uma ponta de alegria. Também não sei ao certo porquê, mas há algo nas nespereiras que eles não suportam. Não sei se é o cheiro, ou algum químico que elas emanam, mas foi o que me salvou naquele dia e me tem mantido a salvo até hoje. Parece estúpido, não é, perguntou, a nossa única arma conhecida contra eles ser uma nespereira. Limitei-me a responder com um encolher de ombros, não achava que a questão da nespereira fosse tão mais absurda que o resto da história, achei até que se enquadrava. Absurdo mas verdade, continuou acariciando carinhosamente o tronco da nespereira, esta árvore salvou-me a vida, e desde esse dia tenho vivido aqui. Sem saber bem o que dizer, permiti-me alguns momentos de silêncio para saborear a extraordinária história do Caracol.

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