A pessoa sempre tinha sonhado ser actor, não o era, mas também nunca tinha feito nada por isso. Era daqueles sonhos que não existem para ser concretizados, mas sim para serem unicamente sonhados, e a pessoa estava satisfeita com isso, além do mais, era para si impensável submeter-se a castings e essas coisas. No entanto, um dia pensou que seria interessante concretizar um pouco do seu sonho, mas na vida real, ser um actor da vida real!
Entusiasmado com a ideia de ser outro, tinha apenas que criar a sua personagem e encarná-la. Assim que começou a pensar nisto decidiu logo que a personagem não iria partilhar a exagerada timidez da pessoa, seria audaz, não teria qualquer problema em falar alto em sítios cheios de gente. A pessoa divertia-se bastante fingindo-se de burro e achou que seria divertido embrutecer a personagem, teria no entanto que tentar não exagerar de forma a manter a credibilidade. Por outro lado, havia traços da sua personalidade que achou bem incluir também na personagem, como o seu sagaz sentido de humor, que tentaria que não parecesse inteligente e a sua simpatia e boa disposição que tentaria exacerbar ao máximo. Pensou também em criar gostos diferentes para a personagem, mas achou que seria complicado e custoso de suportar pelo que decidiu deixar a questão dos gostos pessoais em aberto e nos momentos chave decidiria se a personagem iria partilhar a opinião da pessoa ou se, pelo contrário, inventaria no momento uma opinião para a personagem. Pensou até que o que já tinha era suficiente para iniciar a representação e que poderia depois ir aprofundando a personagem com o tempo.
Fechou os olhos e treinou a metamorfose, o momento em que deixava de ser a pessoa e se tornava a personagem, e depois de interiorizar o que imaginava ser algo como uma nova máscara, saiu para beber um café e testar o seu projecto. Embora não tivesse alterado nada no seu aspecto físico, tinha conseguido interiorizar a personagem de tal forma que se sentia realmente diferente, tinha até a estranha sensação de que se se visse ao espelho conseguiria ver a personagem e não a pessoa, mas isto era obviamente absurdo. Entrou no café, pediu o respectivo, num volume que não deixou dúvidas que todos os presentes tinham ouvido e, pensando que a personagem não era de estar ali no seu canto calada e quieta, disparou um “Então e o nosso Benfica?” ao empregado e ficou muito satisfeito por verificar que não só tinha conseguido despoletar uma efusiva conversa sobre futebol, como conseguiu participar nela activamente, e, naturalmente, no tom de voz adequado ao tema. Saiu com um ar triunfante, tinha tido a prova que precisava, iria conseguir levar a sua ideia a cabo!
No dia seguinte a pessoa levantou-se, vestiu a sua personagem e, deveras bem disposto, foi trabalhar. Tinha consciência que dificilmente alguém iria estranhar sobremaneira a mudança, pois, embora já lá trabalhasse há vários meses, não se podia dizer que tivesse uma relação pessoal com alguém, nunca tinha passado da conversa de circunstância e nas situações em que a isso era obrigado; não é que fosse anti-social, simplesmente era uma pessoa que tinha reservas em dar-se a conhecer, além de que o repugnava manter conversas fúteis, em particular as que eram relacionadas com as condições climatéricas. Da mesma forma, embora parecesse que não tinha amigos, tinha-os, mas era sempre uma relação longínqua, um telefonema ou um jantar de vez em quando para manter o contacto e voltava à sua vida solitária. Assim, o máximo que poderia acontecer era as pessoas acharem-no mais comunicativo e seguro de si, mas não seria o suficiente para desconfiarem que a pessoa estava apenas a representar um papel.
Entrou no edifício cumprimentando as pessoas da recepção, mesmo não estando ninguém a olhar para ele, coisa que para a pessoa era suficiente para entrar despercebido, foi desejando bom-dia a toda a gente por quem passou e ao chegar ao seu lugar emitiu um vigoroso e afável cumprimento a todas as pessoas da sala. Reparou que houve quem fizesse uma expressão de estranheza, mas com o passar dos dias toda a gente passou a considerar normal o seu comportamento. Uma das coisas que o deixava orgulhoso dos seus dotes de actor era o facto de ter deixado de usar o telefone para falar com pessoas na mesma sala, passando a falar sem problemas com volume suficiente para ser ouvido do outro lado da sala, que não era pequena, coisa que só a personagem poderia fazer, já que a timidez da pessoa a sempre tinha impedido.
Com o tempo a personagem ganhou forma, adensou-se, e com o passar das semanas a pessoa começou a perceber que se sentia curiosamente confortável representando a sua personagem, era compreensível que a autoconfiança e a presença da personagem tivessem melhorado bastante a sua relação com os outros, mas a verdade é que o conforto que sentia ia muito além disso. Sentia-se menos vulnerável pelo facto de não se estar a expor, não estava a dar a conhecer o seu verdadeiro eu e assim não tinha nada a temer, as opiniões e críticas que eventualmente lhe fizessem seriam à personagem e não à pessoa e assim a pessoa estava completamente protegida dos julgamentos, muitas vezes sumários, que o ser humano tem tendência a fazer em relação aos outros. Era como se a pessoa estivesse invulnerável dentro de uma carapaça que era a personagem. Até o facto de ter decidido que a personagem seria pouco inteligente funcionou como uma óptima protecção, bastaram algumas imbecilidades bem colocadas para toda a gente passar a não esperar nem exigir dele nada de complexo e, depois de ter conseguido vencer o desconforto que sentia ao verificar que mais alguém ficou a pensar que a pessoa era um idiota, mesmo apesar de não gostar muito de aturar o paternalismo de alguns, passou a ser infinitamente mais fácil impressionar os outros. Bastava-lhe dizer ou compreender algo que fosse pouco mais que básico para que achassem que estava a fazer um óptimo trabalho!
A pessoa sentia-se realmente abismada em como o facto de estar a representar um néscio ter facilitado tanto a sua vida. Constatou que efectivamente a inteligência é inversamente proporcional à felicidade e teve mesmo momentos em que desejou ser realmente burro. Ponderava se a humanidade teria mesmo ganho alguma coisa com a evolução da inteligência humana, podíamos não ter o conforto da vida moderna, mas cada vez acreditava mais que seríamos todos muito mais felizes. No entanto, dado que não tencionava submeter-se a nenhuma intervenção cirúrgica de forma a diminuir a sua inteligência, que certamente algum cirurgião cerebral experimentalista aceitaria executar, nem tampouco introduzir, pelo nariz, um lápis de cera no crânio; afastava estes pensamentos dizendo para si próprio que já que tínhamos evoluído até aqui, ao ponto de sermos infelizes, não valeria a pena dar passos para trás, só nos restaria continuar a evoluir, tentar evoluir para além da infelicidade.
Os meses passaram e a personagem estava cada vez mais cravada na pessoa, já não requeria qualquer esforço representá-la, e a pessoa continuava confortavelmente acomodada na sua redoma impenetrável, como quem observa o mundo de fora e a cada momento que passava a personagem aproximava-se tanto do mundo como a pessoa se afastava, e para esta tudo estava bem. Mas um dia alguém telefonou, era um amigo, alguém quem considerava realmente um amigo, com quem tinha uma relação sem exigências que conseguia manter sem se sentir obrigado a nada, mas que como tal, tinha períodos de afastamento. Ficou contente com o telefonema e atendeu bem-disposto. Mas a alguns minutos da conversa o amigo achou a pessoa estranha, e embora não falassem há já bastante tempo, a relação entre os dois nunca se tinha alterado, aliás, o facto de, mesmo após longos períodos sem contacto a relação se manter inalterada era uma coisa que estimava muito na sua amizade com a pessoa, era uma coisa que lhe dava segurança, pois sabia que quando algum deles tomasse a iniciativa de dizer qualquer coisa ao outro, que iriam recomeçar de onde tinham parado e o tempo decorrido não os faria sentirem-se menos confortáveis um com o outro. Mas desta vez havia algo errado, a pessoa parecia-lhe realmente diferente, lembrou-se da altura em que andavam muito juntos e que se divertiam desmesuradamente com a pessoa a fazer-se de estúpida para os empregados dos cafés ou restaurantes, e era impressionante a resistência que eles tinham a achar que estavam a ser gozados, em pontos em que o amigo assistia já incrédulo, eles continuavam cheios de paciência, pensando sempre que a pessoa era realmente bastante limitada e, embora talvez se questionassem se não seria uma farsa, a verdade é que a coisa nunca correu mal. Mas a pessoa nunca tinha feito isso com o amigo, o amigo achava até que era um dos poucos felizardos que consegui conhecer realmente a pessoa, mas este telefonema fê-lo duvidar de tudo isto. Perguntou-lhe se estava mesmo tudo bem, se se sentia bem, que o achava diferente. A pessoa tinha já a boca aberta para responder que estava tudo óptimo quando se apercebeu que, sem que tivesse qualquer controle sobre isso e não o tendo decidido fazer, quem falava ao telefone com o seu amigo não era a pessoa, era a sua personagem, já tão intrincada em si que estava a ter sérias dificuldades em impedir que ela emergisse. Conseguiu responder que talvez não estivesse tudo bem, que lhe explicaria tudo mas não podia ser naquele momento, precisava de pensar e ligar-lhe-ia mais tarde. Desligou o telefone e encostou-se a reflectir sobre o que estava a acontecer. Não era preciso ser um génio para perceber, tinha encarnado a personagem de uma forma tão intensa e durante tanto tempo, durante o qual, como não tinha tido contactos pessoais, raramente foi a pessoa. Nunca pensou que tal podia acontecer, mas a verdade é que estava tão confortavelmente habituado a ser a personagem que se tinha esquecido de ser a pessoa! Uma sensação de pânico começou a apoderar-se dele à medida que tomava consciência de que já não tinha a certeza de se conhecer a si próprio. Estava literalmente a tornar-se a personagem e percebeu que já não conseguia ser naturalmente a pessoa outra vez, tinha já até dúvidas sobre se um traço de personalidade pertenceria à pessoa ou à personagem. Enquanto o pânico aumentava teve a certeza que, mesmo com toda a segurança que lhe oferecia, não queria tornar-se a personagem, não queria que a personagem se tornasse uma pessoa, a sua pessoa, queria ser a pessoa que era dantes. Aliás, se a personagem passasse a ser uma pessoa a segurança da carapaça desapareceria. Por uma fracção de segundo pensou que poderia criar uma nova personagem e continuar o ciclo, mas percebeu que se sentia vazio, sentia que tinha deixado de ser uma pessoa dentro da redoma de uma personagem para passar a ser apenas a redoma, uma casca vazia, e que a única maneira de anular o vazio que sentia era voltar a ser a pessoa, a pessoa que era na realidade. Com o pânico já algo controlado consegui pensar claramente e aceitou que dada a confusão de que sofria, seria muito difícil conseguir sozinho ser a pessoa outra vez. Cumprindo o prometido, telefonou ao amigo dizendo que gostava que se encontrassem porque preferia contar-lhe pessoalmente o que se passava e que achava que iria precisar da sua ajuda. O amigo, identificando medo na voz da pessoa propôs que jantassem juntos nesse dia e poderiam falar à vontade. A personagem acedeu e durante o jantar, num esforço para ser a pessoa contou ao amigo tudo desde o princípio. Pediu ao amigo para passar algum tempo com ele e o ajudasse a identificar os momentos e atitudes em que estava a ser a personagem e os em que estava a ser a pessoa, ao que o amigo acedeu.
Foi um trabalho árduo a princípio, mas com o amigo a servir de âncora à realidade, a pessoa começou a conseguir impor-se à personagem, de tal forma que começou de novo a ganhar coragem para, quando saíam, se divertir com o amigo, como outrora, a representar pequenos papeis, no entanto nunca deixou de se questionar se não teria algo da pessoa desaparecido para sempre. A verdade é que a pessoa sonhava em ser actor, era daqueles sonhos que não existem para ser concretizados, mas sim para serem unicamente sonhados.
1 comentário:
Rai's parta a consciencia :)
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