- Não, não, não! Errado!! Isso não faz qualquer sentido!
- Mas… Isto é ficção, tudo é possível…
- Claro que tudo é possível, desde que faça sentido.
- Então, mas não disseste nada sobre a parte em que o personagem desenha uma cara num saco de papel e depois tem um diálogo com ele. O saco responde-lhe e tu não reclamaste.
- Claro que não reclamei, isso faz sentido.
- Um saco de papel a falar faz sentido?
- Sim.
- Então porque é que a gravidade da Terra começar a aumentar e o pessoal começar a ficar todo atarracado não faz?
- Um diálogo com um objecto inanimado pode ser visto como uma introspecção, e mesmo que seja literal, embora não seja provável, quem sabe não é possível, em determinada circunstância, um saco de papel responder-te?
- Então e não será possível, embora muito pouco provável, que a gravidade da Terra aumente desenfreadamente?
- Não.
- Porquê?
- Bom, além da questão física de que para aumentar a gravidade teria que aumentar a massa e que essa matéria extra teria que vir de algum lado, que faz com que não faça qualquer sentido e que seja impossível, é estúpido.
- Estúpido? Isso é um termo técnico? Belo mentor que me saíste…
- Eu estou a fazer o que é suposto, estou a ensinar-te. E sim, é um termo técnico. Agora se não consegues perceber uma questão desta simplicidade, acho que vai ser um longo e tortuoso caminho.
- Pronto! Está bem, a gravidade da Terra não aumenta, ninguém fica pequeno, é o anão que começa a crescer de uma forma inexplicável. Que tal?
- Olha, estás a ver? Isso já faz sentido. E não é, de todo, absurdo.
- Uff…
O anão começou a aperceber-se que algo estava a acontecer quando, ao deitar-se, reparou que os seus pés tocavam no fundo da cama. No dia seguinte confirmou o que já calculava, tinha crescido mais de dez centímetros. Enquanto, radiante, se olhava ao espelho, não conseguiu evitar um pulo de alegria…
- Ahem, ahem…
- O que foi agora?!
- Eu não sei se isto vai resultar… Por acaso ocorreu-te que se um anão adulto reparasse que estava a crescer, o mais provável seria ficar preocupado? Ainda por cima o teu anão trabalha num circo, o seu emprego depende de ser anão. Fará sentido que ele fique radiante por estar a crescer? Além do mais, toda a gente sabe que os anões têm uma enorme dificuldade em saltar.
- Argh! Isto é ficção, é suposto ser surreal. O meu anão pode muito bem ficar contente e até mesmo saltar como uma gazela!
- Surreal não é o mesmo que irreal. E ainda há o facto de ser estúpido.
- Acho que tens razão no facto de isto se calhar não vir a resultar…
Enquanto, preocupado, se olhava ao espelho, ponderou sobre como a sua vida se alteraria se crescesse até uma altura normal. Ficou apreensivo por achar que as alterações não seriam positivas.
No circo, o contorcionista sem pernas…
- Porque é que estás a assobiar assim?
- Por acaso imaginaste o que estás a escrever?
- Mais ou menos.
- Pois, mais ou menos não chega. O que tu queres não é que quem ler consiga visualizar a cena?
- Sim… acho que sim…
- Então como é que achas que isso vai resultar se nem tu a imaginaste?
- Cada um que imagine à sua maneira.
- Está bem, isso não é necessariamente errado, mas imagina lá um contorcionista sem pernas.
- Estou a imaginar. O que é que tem?
- Não te parece um bocado estúpido? Um gajo sem pernas a fazer contorcionismo. O que é que ele tem para contorcer?
- Pode ser um bocadinho de humor inglês.
- Não te metas nisso, pá. Ainda nem rastejar sabes e já queres correr? Escreve lá a tua historieta e deixa-te de tentar ter piada.
- Sim, mestre.
No circo, o contorcionista sem braços reparou que o anão não estava bem. Então Zé, estás cá com uma cara. O que é que se passa? Perguntou o contorcionista. Nem sei bem o que se passa, só sei que nos últimos dias cresci mais de dez centímetros. Respondeu o anão. O contorcionista abriu muito os olhos. A sério? Não te esqueças que, aconteça o que acontecer, tu vais ser sempre tu, independentemente da altura que tenhas, ok? Não queremos cá crises de identidade. E já sabes, desde que não seja para um abraço ou para uma palmada nas costas, podes contar comigo.
- Muito bem, gostei. Focar a questão da identidade. Faz sentido. E um bocadinho de humor português também não ficou mal, não senhor. Verei uma luz no fundo do túnel?
- Importas-te?
- Desculpa.
Obrigado Rogério, és um bom amigo. Dá cá mais cinco!
- Não abuses!
- ...
Os dois riram com gosto. Era o que o anão realmente precisava, de uma boa gargalhada. Sabes Rogério, esta é uma das coisas que mais gosto em ti, a capacidade de te divertires com os teus problemas. Quando conseguimos fazer isso é como se deixassem de ser problemas. Disse o anão. Quais problemas? Respondeu o contorcionista com um sorriso gozador. Imagina lá, por exemplo, eu dizer ao Flávio qualquer coisa como “Então Flávio, estás fino?”. Riram durante mais alguns minutos. Estou a ver onde queres chegar. Pois, contigo sei que posso estar à vontade, sem ter que estar com atenção ao que digo. Se a minha cara não ficasse à altura dos teus genitais, até te dava um abraço! Mais algumas gargalhadas depois, chegou a hora de pegar ao trabalho e cada um foi para o seu sítio.
- Nada mau, nada mau. As piadas já estão a ficar um bocadinho forçadas, mas não está nada mau. Se calhar é dos uísques que já bebi, mas até está com graça. Então e o que é que vai acontecer agora? Como é que vais transformar a ideia de pôr o anão a crescer num enredo, numa mensagem?
- Não faço a menor ideia. Isto não é nada do que eu tinha pensado inicialmente.
- Ainda bem! Lição número um, a nossa criatividade não está no consciente mas sim no subconsciente. Quando pensamos muito na história e nos esforçamos para que seja complexa e profunda, o mais provável é sair algo frio e artificial. O melhor é começar simplesmente a escrever sem pensar muito nisso e é aí que as coisas saem realmente profundas. Tens que deixar que seja o subconsciente a decidir o rumo das coisas.
- Ok, vamos lá ver…
Quando o anão acordou, assustado, verificou que para caber na cama estava praticamente em posição fetal. Horrorizado, saiu da cama para constatar que durante a noite o fenómeno se tinha agravado. Estava praticamente com o dobro da altura!
- Pronto, já estamos a descambar outra vez para a estupidez…
- Olha, sabes que mais?
- Que mais?
O anão foi crescendo, crescendo. Quando atingiu um metro e setenta arranjou emprego num banco. The end.
- Até amanhã.
- Até amanhã.
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