quinta-feira, 29 de dezembro de 2005
Ilusão
Se é que ainda era preciso, cá está mais uma prova que o "ver para crer" não é inteligente.
Há uma miríade de dimensões que escapam aos nossos olhos e não é descabido afirmar que o que os nossos olhos vêm não é a realidade. Embora pareça a olho nu, observando as coisas ao nível atómico verifica-se, por exemplo, que a matéria não é contínua, entre os nossos átomos existe espaço. Segundo consta, se se removesse esse espaço a serra de Sintra caberia numa colher de chá, naturalmente pesando o mesmo. Qual é então a realidade real? A matéria contínua como a vemos ou a matéria descontínua como um microscópio electrónico a vê? Que cada um escolha a que preferir, mas é inegável que há muito mundo para além dos nossos sentidos.
Segundo o mail onde vinha a imagem este desenho foi criado por Phillippe G. Schyns e Aude Oliva da Universidade de Glasgow.
Observem as imagens sentados à distância normal do monitor, o Sr. Raiva está à esquerda e a Sra. Calma está à direita. Agora levantem-se do lugar e afastem-se para trás uns metros. Alguma diferença? Arte e ciência de mãos dadas!
sexta-feira, 23 de dezembro de 2005
Natal
Pois é verdade, está aí o Natal outra vez. Nem consigo saber ao certo o que é que eu mais gosto no Natal, agrada-me bastante o consumismo desenfreado, o acotovelar nas lojas, a enfatização das diferenças sociais das crianças através dos presentes, mantendo-os na ilusão que tudo depende da maneira como se comportam.
Mas acho que para decidir mesmo o que eu mais gosto nesta quadra teria que escolher entre o facto de poder competir com a família e amigos a ver quem é que dá a prenda mais cara e o facto de ser a época em que faço questão de me preocupar com os menos favorecidos para poder ignorá-los o resto do ano sem peso na consciência.
Viva o Natal!
Mas acho que para decidir mesmo o que eu mais gosto nesta quadra teria que escolher entre o facto de poder competir com a família e amigos a ver quem é que dá a prenda mais cara e o facto de ser a época em que faço questão de me preocupar com os menos favorecidos para poder ignorá-los o resto do ano sem peso na consciência.
Viva o Natal!
quinta-feira, 22 de dezembro de 2005
Fundo do Baú II
Até sonetos há por lá! Ganda curte! :)
Somos muitos, multidão
Corremos os cantos da Terra
Sem espada na nossa mão
A paz é a nossa guerra
Com a palavra combatemos
Derrubamos qualquer muro
Não recuamos, não vacilamos
E avançamos pelo futuro
Somos vento, tempestade,
Fervor, euforia, paixão
Impelidos pelo amor à verdade
Mais que cidadãos do mundo
Cidadãos do universo
Cidadãos do espaço profundo
Somos muitos, multidão
Corremos os cantos da Terra
Sem espada na nossa mão
A paz é a nossa guerra
Com a palavra combatemos
Derrubamos qualquer muro
Não recuamos, não vacilamos
E avançamos pelo futuro
Somos vento, tempestade,
Fervor, euforia, paixão
Impelidos pelo amor à verdade
Mais que cidadãos do mundo
Cidadãos do universo
Cidadãos do espaço profundo
quarta-feira, 21 de dezembro de 2005
Fundo do Baú
Descobri, não sei bem como nem porque estava no sítio onde o descobri, um papel onde tinha escrevinhado já há algum tempo (impossível saber quanto porque, lamentavelmente, esqueço-me sempre de datar estas coisas, ainda bem que o blog faz isso por nós) um poema. Curiosamente não me pareceu tão estúpido como certamente terá parecido na altura e isto fez-me ir ao fundo do baú ler algumas coisas escritas no passado. Da mesma forma, e não sem alguma estranheza, encontrei mais uns poemas dos quais já nem tinha qualquer recordação, e que até me agradaram (embora não tenha resistido em dar-lhes um retoque). Assim, nasce esta rubrica "Fundo do baú".
Cá vai um:
Gostava de saber pegar
nas emoções que em mim fervilham
e com elas encher pautas
de sublimes sinfonias que brilham
muito fáceis de tocar
Gostava de saber encher
a alvura de uma tela vazia
com a cascata de sentimentos
que às vezes em demasia
percorre todo o meu ser
Gostava de saber transformar
nas páginas de um belo romance
toda a alegria de viver
e talvez assim descanse
este animal que não sei domar
Gostava de saber criar
poemas inflamados,
que dessem descanso por fim
aos pensamentos exacerbados
que há dentro de mim
e que não consigo sossegar
Cá vai um:
Gostava de saber pegar
nas emoções que em mim fervilham
e com elas encher pautas
de sublimes sinfonias que brilham
muito fáceis de tocar
Gostava de saber encher
a alvura de uma tela vazia
com a cascata de sentimentos
que às vezes em demasia
percorre todo o meu ser
Gostava de saber transformar
nas páginas de um belo romance
toda a alegria de viver
e talvez assim descanse
este animal que não sei domar
Gostava de saber criar
poemas inflamados,
que dessem descanso por fim
aos pensamentos exacerbados
que há dentro de mim
e que não consigo sossegar
segunda-feira, 19 de dezembro de 2005
Personagens #2 - O Figueiredo
O Figueiredo era o sargento encarregue do funcionamento do refeitório naquela instituição que, apesar de ter feito de mim um homem, não vai ver lá filho meu. Contrastava um coração bondoso com uma mente tresloucada e na verdade era um porreiro, toda a gente o tratava por tu e sabia que podia contar com ele.
Além do seu passatempo de columbófilo selvagem (era o Figueiredo aparecer e todos os pombos das redondezas convergiam para lá, e ai de quem fizesse mal a algum!), o que o fez ficar famoso foi a sua tendência para projectar, com uma pontaria mortífera, o que quer que estivesse ao seu alcance quando via alguém a fazer uma traquinice. Ora, como disse, o Figueiredo geria o refeitório e o que estava normalmente ao seu alcance eram víveres, tendo preferência pelos bolos e pacotes de leite ou sumo. Era fantástico ver o seu talento em acção, quando alguém insuspeito cometia uma travessura e, como que vindo do nada, um pacote de leite o atingia e, naturalmente, explodia molhando toda a gente num raio de vários metros, factor que não tinha a mínima importância para o Figueiredo, danos colaterais, devia pensar para ele, o importante é cumprir a missão. Este talento era já tão famoso que os mais dados aos desportos radicais gozavam com ele de propósito para na fracção de segundo seguinte tentarem desviar-se do projéctil, que nunca passava a mais de um palmo, aniquilando por vezes inocentes incautos. Bem hajas Figueiredo, contigo não havia refeições monótonas!
Além do seu passatempo de columbófilo selvagem (era o Figueiredo aparecer e todos os pombos das redondezas convergiam para lá, e ai de quem fizesse mal a algum!), o que o fez ficar famoso foi a sua tendência para projectar, com uma pontaria mortífera, o que quer que estivesse ao seu alcance quando via alguém a fazer uma traquinice. Ora, como disse, o Figueiredo geria o refeitório e o que estava normalmente ao seu alcance eram víveres, tendo preferência pelos bolos e pacotes de leite ou sumo. Era fantástico ver o seu talento em acção, quando alguém insuspeito cometia uma travessura e, como que vindo do nada, um pacote de leite o atingia e, naturalmente, explodia molhando toda a gente num raio de vários metros, factor que não tinha a mínima importância para o Figueiredo, danos colaterais, devia pensar para ele, o importante é cumprir a missão. Este talento era já tão famoso que os mais dados aos desportos radicais gozavam com ele de propósito para na fracção de segundo seguinte tentarem desviar-se do projéctil, que nunca passava a mais de um palmo, aniquilando por vezes inocentes incautos. Bem hajas Figueiredo, contigo não havia refeições monótonas!
quarta-feira, 14 de dezembro de 2005
Manuel Alegre
Por acaso andava para escrever um post sobre o Manuel Alegre, entretanto recebi este texto do Manuel Monteiro que, algo desconcertantemente para mim, devo dizê-lo, se aproxima bastante do que eu queria dizer, portanto olha, menos trabalho para mim.
VOLTAR A SONHAR
Por Manuel Monteiro
«Sejamos realistas exijamos o impossível»
Depois pode vir o exército a polícia as forças todas do número e da norma podem cercar-nos por todos os lados, intimar-nos com fogo
ou pior ainda: horários disciplina regras e obrigações.
Manuel Alegre, Che
Lê-se na Bíblia, no livro do Apocalipse: “Sede frios ou sede quentes porque eu vomitarei os mornos”. Não gosto de políticos titubeantes. Não gosto de políticos que nunca ousaram algo na antítese do politicamente correcto. Que nunca ousaram o impossível. Não gosto de políticos que acham que não há diferenças entre a esquerda e a direita.
A coragem e a insubmissão de Manuel Alegre temperadas com a dose cavalar do seu espírito democrático e do seu amor à liberdade devolvem-me um brilhozinho nos olhos para o combate político.
Manuel Alegre, deputado recordista do número de vezes que ousou votar contra o seu próprio partido, tem sido um olhar permanentemente vigilante da liberdade e da democracia, elevando a sua voz de barítono sempre que necessário.
Ao contrário de outros, esteve sempre do lado da democracia e da liberdade, contra as censuras azuis e vermelhas, contra os despotismos de direita e de esquerda.
Ao contrário de outros, não se limitou a ser uma mera oposição, uma mera voz de protesto, participando também na esfera do poder para construir algo positivo.
Gosto de ver que ainda há quem acredite que a junção das palavras “político” e “sério” não constitui um oxímoro e que a política ainda pode ser a arte de mudar o mundo para melhor. Gosto de ver que ainda há quem lute pelo sonho de uma sociedade mais livre, mais justa e mais fraterna mesmo nas condições mais adversas. Mesmo sem o dinheiro e sem os caciquismos dos aparelhos partidários. Porque é bonito ver tanta gente a voltar a lutar por ideais.
Seria bonito ter um Presidente da República-Poeta cuja alma não dança apenas com números e que ainda por cima quer pôr as pessoas a aprender a lei suprema do país – a Constituição - nas escolas; que almeja combater a iliteracia; e que propõe ao país um modelo de desenvolvimento cujo alavancamento não sejam os baixos salários mas a aposta no capital intelectual.
Estou cansado, mental e fisicamente exausto de tanto ouvir o discurso gasto e bafiento de que primeiro precisamos de crescer para depois distribuir. Porque é que nunca em país algum, fosse qual fosse o seu patamar de crescimento, se admitiu em determinada altura que se poderia (finalmente!) redistribuir?!...
Hoje como ontem, aqui em Portugal como no resto da Europa, é sempre altura de nos preocuparmos com o crescimento económico, descurando as desigualdades. Sempre, sempre, sempre. Não nos iludamos: por mais que cresçamos nunca ouviremos dizer que agora é altura de nos preocuparmos com a pobreza e a miséria. E é por isso que as desigualdades e a exclusão social vão grassando. E é por isso que me agradou tanto ouvir o Manuel Alegre dizer que “A melhor distribuição da riqueza é uma pré-condição para o desenvolvimento”.
Oscar Wilde escreveu que um mapa que não contemplasse a Utopia não seria digno de um só olhar. Sonho com um Portugal de todos. Imagino-o com toda a força e intensidade. E nele vejo Manuel Alegre a Presidente.
VOLTAR A SONHAR
Por Manuel Monteiro
«Sejamos realistas exijamos o impossível»
Depois pode vir o exército a polícia as forças todas do número e da norma podem cercar-nos por todos os lados, intimar-nos com fogo
ou pior ainda: horários disciplina regras e obrigações.
Manuel Alegre, Che
Lê-se na Bíblia, no livro do Apocalipse: “Sede frios ou sede quentes porque eu vomitarei os mornos”. Não gosto de políticos titubeantes. Não gosto de políticos que nunca ousaram algo na antítese do politicamente correcto. Que nunca ousaram o impossível. Não gosto de políticos que acham que não há diferenças entre a esquerda e a direita.
A coragem e a insubmissão de Manuel Alegre temperadas com a dose cavalar do seu espírito democrático e do seu amor à liberdade devolvem-me um brilhozinho nos olhos para o combate político.
Manuel Alegre, deputado recordista do número de vezes que ousou votar contra o seu próprio partido, tem sido um olhar permanentemente vigilante da liberdade e da democracia, elevando a sua voz de barítono sempre que necessário.
Ao contrário de outros, esteve sempre do lado da democracia e da liberdade, contra as censuras azuis e vermelhas, contra os despotismos de direita e de esquerda.
Ao contrário de outros, não se limitou a ser uma mera oposição, uma mera voz de protesto, participando também na esfera do poder para construir algo positivo.
Gosto de ver que ainda há quem acredite que a junção das palavras “político” e “sério” não constitui um oxímoro e que a política ainda pode ser a arte de mudar o mundo para melhor. Gosto de ver que ainda há quem lute pelo sonho de uma sociedade mais livre, mais justa e mais fraterna mesmo nas condições mais adversas. Mesmo sem o dinheiro e sem os caciquismos dos aparelhos partidários. Porque é bonito ver tanta gente a voltar a lutar por ideais.
Seria bonito ter um Presidente da República-Poeta cuja alma não dança apenas com números e que ainda por cima quer pôr as pessoas a aprender a lei suprema do país – a Constituição - nas escolas; que almeja combater a iliteracia; e que propõe ao país um modelo de desenvolvimento cujo alavancamento não sejam os baixos salários mas a aposta no capital intelectual.
Estou cansado, mental e fisicamente exausto de tanto ouvir o discurso gasto e bafiento de que primeiro precisamos de crescer para depois distribuir. Porque é que nunca em país algum, fosse qual fosse o seu patamar de crescimento, se admitiu em determinada altura que se poderia (finalmente!) redistribuir?!...
Hoje como ontem, aqui em Portugal como no resto da Europa, é sempre altura de nos preocuparmos com o crescimento económico, descurando as desigualdades. Sempre, sempre, sempre. Não nos iludamos: por mais que cresçamos nunca ouviremos dizer que agora é altura de nos preocuparmos com a pobreza e a miséria. E é por isso que as desigualdades e a exclusão social vão grassando. E é por isso que me agradou tanto ouvir o Manuel Alegre dizer que “A melhor distribuição da riqueza é uma pré-condição para o desenvolvimento”.
Oscar Wilde escreveu que um mapa que não contemplasse a Utopia não seria digno de um só olhar. Sonho com um Portugal de todos. Imagino-o com toda a força e intensidade. E nele vejo Manuel Alegre a Presidente.
terça-feira, 13 de dezembro de 2005
Cultura
Não se pode falar em cultura sem virem logo os pseudo-intelectuais com a porcaria da arte! Cultura não é arte, cultura é ciência! É a ciência que faz avançar e evoluir a humanidade e a civilização tornando as nossas vidas mais fáceis e confortáveis, não a arte. A arte, no máximo, é um subproduto da cultura, mera imitação da vida para preencher os tempos livres.
terça-feira, 6 de dezembro de 2005
Côja
Mais um fim-de-semana em Côja, ao contrário do que é normal, em vez de estar um frio de rachar estava era a chover biblicamente. Claro que este facto não muda nada quando o que se pretende é vegetar ao pé da lareira. Basicamente foi o que aconteceu, este post é mais para a palavra "Côja" ficar neste nosso blog e, quem sabe, dar origem a aparecer no google através da pesquisa desta palavra (claro que há ainda o desejo secreto de aparecer antes da "Côja no sapo").
No entanto vou referir (os) dois acontecimentos:
O barbeiro
Ir a Côja é sempre uma óptima oportunidade de receber um corte de cabelo "à homem", num cenário tipicamente português e por um preço muito em conta. Desta vez, como estava (só) com barba de uns dias decidi empreender um projecto arrojado, uma experiência nova, fazer a barba no barbeiro! Foi engraçado, nada de especial, e não senti a vida ameaçada em nenhum momento.
O gato
Não foi preciso esperar muito tempo depois da chuva ter parado para se ouvir o miado inconfundível do gato com alma de cão que vai lá comer, que, como qualquer outro cão significa ingerir a maior quantidade de comida no menor espaço de tempo possível, até não haver mais comida. O miado dele é algo entre a ordem e súplica, e com um volume que o torna totalmente impossível de ignorar. Tem uma envergadura que lhe permite passear tranquilamente por todo o lado e desta vez, para confirmar as minhas suspeitas que tem alma de cão, veio connosco deitar o lixo, rebolou-se na estrada, e voltou connosco passando indiferente por cães e pessoas.
No entanto vou referir (os) dois acontecimentos:
O barbeiro
Ir a Côja é sempre uma óptima oportunidade de receber um corte de cabelo "à homem", num cenário tipicamente português e por um preço muito em conta. Desta vez, como estava (só) com barba de uns dias decidi empreender um projecto arrojado, uma experiência nova, fazer a barba no barbeiro! Foi engraçado, nada de especial, e não senti a vida ameaçada em nenhum momento.
O gato
Não foi preciso esperar muito tempo depois da chuva ter parado para se ouvir o miado inconfundível do gato com alma de cão que vai lá comer, que, como qualquer outro cão significa ingerir a maior quantidade de comida no menor espaço de tempo possível, até não haver mais comida. O miado dele é algo entre a ordem e súplica, e com um volume que o torna totalmente impossível de ignorar. Tem uma envergadura que lhe permite passear tranquilamente por todo o lado e desta vez, para confirmar as minhas suspeitas que tem alma de cão, veio connosco deitar o lixo, rebolou-se na estrada, e voltou connosco passando indiferente por cães e pessoas.
quarta-feira, 30 de novembro de 2005
Lixo
Andava mesmo a ser difícil escrever. É muito mau sinal quando já temos uma folha cheia de frases, ideias, textos começados e não conseguimos escrever nada que nos satisfaça minimamente. Há uma infinidade de coisas sobre as quais podemos escrever, e uma muito boa parte delas tem imenso potencial, porque é que é tão difícil?
Reli alguns dos meus rabiscos, onde se encontram ideias parvas para personagens como “O Grácio Espada tinha um fetiche por marcas de BCG…” ou “Mas o Nicolau conseguiu adaptar o seu metabolismo ao novo sistema, e enquanto por todo o tempo em que se levantava até passar o torniquete do trabalho era um poço de energia, assim que o passava, até o seu ritmo cardíaco abrandava subitamente. Ia calmamente tomar o seu pequeno-almoço, calmamente beber o seu café e fumar o seu cigarro, nada de novo.”. Encontram-se também ideias para esse novo género literário designado por post, que nunca vingaram, como por exemplo uma carta a deus que seria algo como:
Olá Deus,
Então tudo bem? Por aqui vai-se andando, tudo mais ou menos na mesma. Não devemos ter evoluído muito desde a última vez que alguém te viu.
Um amigo meu acha que já deves estar entretido num planeta longínquo qualquer e que já nem te lembras de nós, mas eu garanti-lhe que estavas só de férias. Agora não me deixes ficar mal visto! Não é que nós não nos orientemos, até há quem se oriente bastante bem, mas estamos a ficar muito materialistas, até aqueles que nos querem fazer acreditar que andam a espalhar a tua mensagem!
Mas a verdade é que antigamente fartavas-te de aparecer, aconselhavas mandamentos, aplicavas uns cataclismas quando era preciso… agora nada!
Já pensaste que agora até é muito mais fácil passar uma mensagem? Eu sei que deve ter sido muito frustrante estares a tentar orientar-nos e ver que as coisas nunca saíam como tu querias, mas que tal tentares de novo? Além do mais, os mandamentos já precisavam de uma revisão, tipo: não desenvolverás software malicioso, etc. E que tal criares um website? Que tal a ideia? Podia ter dicas para sermos melhores, podia ter um countdown para o fim do mundo, podia ter até uma parte para verificarmos se estamos a tender para o céu ou para o inferno, era capaz de mudar a opinião da muita gente que anda por aí a pensar que basta comer a rodela de pão todos os domingos…
Ou qualquer historieta sobre separação que começaria assim:
As rosas estavam já murchas na mesa posta para dois, a penumbra envolvia a sala, tinha sido tarde demais, ela tinha-se ido embora e ali estava eu sentado no canto com o olhar fixo na silhueta da cadeira vazia. Na minha mente vi todas as fotografias que nunca tirámos, as fotografias dos momentos que não quisemos recordar mais tarde…
Havia até no emaranhado de frases textos já começados que achei que poderiam até ser mais desenvolvidos, quem sabe até dar um livro, e que numa esperança vã de um dia voltar a pegar neles foram ficando… Ficando… Coisas como:
Estava lixado com a vida! Levantei-me, peguei nas minhas coisas e saí sem uma palavra. Meti-me no carro e arranquei sem saber para onde, mas isso não era importante, o importante era ir; nada mais havia senão a estrada, sempre pronta a levar-me onde eu quisesse. Era já noite cerrada quando me apercebei que estava numa estrada deserta e sem iluminação, a única paisagem eram luzes longínquas de pequenas povoações. Abri a janela e gritei a plenos pulmões: “Estou livre!!!”, acendi o cigarro e senti que de facto era verdade, não era mais uma daquelas mentiras que contamos a nós próprios e nos obrigamos a acreditar para tornar a nossa existência mais confortável, não, era verdade, mesmo verdade, e tive a certeza que nunca mais iria voltar.
Encostei o carro, reclinei o banco e recostei-me a tentar digerir a situação, mas depressa desisti, decidi apenas que não iria parar, não iria voltar para trás! Deixei-me dormir e acordei com o sol matinal na cara e senti-me genuinamente feliz. Arranquei com o objectivo de encontrar um sítio para comer. Minutos depois entrava numa povoação (que podia muito bem ser Sarnadas de Ródão), vi uma tasca aberta, parei o carro e entrei. O interior era pitoresco, escuro, antigo, paredes revestidas de madeira até metade, as quatro mesas e respectivas cadeiras também de madeira, serradura espalhada pelo chão de mosaicos pretos e brancos. Na mesa do canto, provavelmente o cliente mais habitual, sorvia ruidosamente a sua taça de tinto. Ao balcão, que era também revestido a madeira como as paredes, com o habitual armário em vidro onde se podia seleccionar a iguaria pretendida de entre variados peixes fritos e bifes panados, uma mulher que não consegui adivinhar a idade. Tão pequena que se via pouco mais que a cabeça, com a pele enrugada como se já não tivesse idade, mas com um olhar e um semblante estranhamente jovial, quase infantil. Pedi uma sandes de panado e, para me integrar melhor no ambiente, uma taça de tinto. A energia da velha senhora tornava ainda mais difícil a estimativa da sua idade, e escassos segundos depois tinha já o meu pedido satisfeito. Antes de beber, ergui o copo ao meu companheiro de taberna, ao que respondeu com um quase imperceptível aceno de cabeça, e dei início à minha primeira refeição em várias horas. Tinha já a boca aberta para perguntar onde estava, mas detive-me. Para quê saber? Não interessa onde estamos nem para onde vamos, o que interessa é ir, somente ir. Paguei, e saí com um amigável “continuação de um bom dia” e segui caminho…
Ou até coisas mais românticas tipo:
Ele acreditava piamente que a paixão ia durar, imaginava-os com 80 anos a brincar como brincavam outrora. Muita gente diria que ele estava a ser ingénuo, que a paixão nunca dura para sempre, mas a verdade é que a paixão ainda arde dentro dele, ele ainda sente, quando ela se aproxima, a força que o puxa para ela, como se cada célula do seu corpo lutasse para se aproximar dela. Ele não consegue ficar-lhe indiferente, não consegue passar por ela sem reconhecer a sua presença, sem tocá-la, abraçá-la. Mas ela não, nela a paixão esmoreceu, consumiu-se, desfez-se em cinzas, e no seu lugar ficou um amor, que é sem dúvida legítimo, mas também precocemente envelhecido. Ela ama-o, disso não há dúvida, mas não sente aquela paixão avassaladora que a puxaria para ele como uma atracção incontrolável.
Mas isto estava tudo a ganhar pó virtual no canto do disco, lixo portanto, e eu não conseguia escrever nada.
Liguei o televisor num daqueles canais nostalgistas para me distrair um bocado e estava a dar uma série que eu via quando era mais novo. Neste episódio aparecia um casal de velhos que me pareceu especial, não sei bem o que foi mas é capaz de ter sido o aspecto índio que me cativou. Não sei se é paranóia minha, mas parece-me sempre que os índios velhos sabem uma infinidade de coisas que nós, pessoas comuns não sabemos, parece que têm sempre um brilho de certeza no olhar. Para pelo menos escrever alguma coisa, mesmo que fosse mais lixo para a pilha, decidi transformar aquele casal de velho nos personagens principais de mais um texto. Na falta de um motor de arranque para a história decidi também usar as linhas gerais da história do episódio, que aparentavam resumir-se basicamente ao casal de velhos ficar uma noite na casa de um dos personagens da série e acabar por ficar lá montes de tempo. Claro que havia uma razão oculta para os velhos terem lá ficado aquele tempo todo, eles só se terão ido embora quando o seu trabalho estava feito, mas isto era uma das coisas fantásticas da arte, podemos interpretar mil coisas diferentes e, se calhar, nenhuma delas passou na cabeça do artista. Na esperança de conseguir aprofundar as personalidades do casal de velhos e da sua missão oculta comecei assim:
Estava uma daquelas noites péssimas, a chover torrencialmente e uma ventania de fazer abanar as janelas. Estávamos no quentinho com os gatos a ver um filme quando alguém tocou à campainha. Achámos muito estranho, mas decidimos ir ver quem seria e quando espreitei pelo óculo da porta vejo um casal de velhos com uma aparência que deixava na dúvida se seriam esquimós ou índios sul-americanos. Era tão surreal que parecia que não estava a ver o outro lado da porta, mas sim outra realidade num outro lugar qualquer. Ainda demorei uns segundos a reagir, mas obviamente abri a porta. O homem, que assim como a mulher aparentava ter entre sessenta e setenta anos, sobrepôs a sua voz ao assobiar do vento dizendo que tinham sido apanhados pela tempestade e que não tinham condições de ir para casa. Perguntou se nos importaríamos que passassem a noite na nossa escada. Instintivamente ofereci-lhes dormida na nossa casa, ao que, após a recusa educada de forma a verificar se a oferta era sincera, acederam. Preparámos uma ceia, uma cama no sofá e percebendo que estavam ambos visivelmente cansados deixámo-los para que pudessem pôr-se à vontade.
- Não achas estranho? Esta rua não é propriamente um ponto de passagem. De onde é que eles vinham e para onde é que eles iam para acabarem por vir bater logo à nossa porta? Disse ela
- Pois tens razão aí… mas achas que eles nos querem fazer algum tipo de mal? Eu, por muito que o meu instinto de sobrevivência me tente convencer do contrário, não consigo acreditar que aquele casal de velhotes nos tenha aparecido à porta com a intenção premeditada de nos fazer mal.
- Sim, também não acredito nisso, mas acho tudo isto muito estranho.
A conversa antes de dormir teria que ficar por aqui porque estava outra vez bloqueado, temi ter acabado de escrever mais um monte de letras inúteis, mas tentei não ser pessimista. Fui fumar um cigarro para desanuviar decidido a insistir na história, só teria que haver um motivo oculto e, de preferência, com alguma profundidade que tivesse levado os velhos lá a casa e estava a história feita, não seria certamente um livro, mas um post havia de sair!
O cigarro deu frutos, consegui arranjar um objectivo para os velhos, certamente diferente de qualquer possível objectivo do casal de velhos da série que me serviu de inspiração. Sendo este o principal requisito, dei-me por satisfeito. Para abrir as possibilidades de interpretação decidi também não tornar completamente explícito este objectivo do casal de velhos, seria o objectivo para quem escreve, quem lesse teria que poder inferir o objectivo que entendesse. Resumidamente, o objectivo dos velhos deveria dizer qualquer coisa a quem lesse a história, mas não necessariamente o mesmo que a mim. Prossegui…
Na manhã seguinte, quando nos levantámos os velhos já estavam de pé. A cama estava desfeita, os cobertores e lençóis dobrados em cima do sofá, e havia panquecas para o pequeno-almoço! Ainda meio atordoados, tanto por termos acordado há pouco tempo como pela cena pouco usual com que nos deparámos, sentámo-nos à mesa, em resposta do qual nos apareceu à frente uma caneca de café com leite e um prato de panquecas com compota. Durante o pequeno-almoço ocorreu a conversa normal. Como é que estão, como é que dormiram, etc. e depois de “quebrar o gelo” tentei saber mais alguma coisa sobre eles, perguntei onde moravam e como iriam para casa, ao que o velho respondeu evasivamente que moravam para Sintra, mas que tinha havido uma derrocada de terras junto à sua casa e que ainda estava a ser limpa, pelo que não podiam voltar já para lá. Nitidamente era mentira. Além do mais, como é que ele tinha sabido daquilo? Senti alguma indignação, principalmente pelo facto de eles estarem nitidamente a fazer-se convidados na nossa casa por tempo indeterminado sem sequer o pedirem, mas instintivamente mantive a cordialidade, apercebendo-me depois que tinha sido porque o casal de velhos transmitia uma calma imensa. Parecia que onde eles estavam reinava uma paz impenetrável que contagiava tudo o que os rodeava. Os gatos, que não são de dar confiança, só queriam estar perto deles e nós, numa situação em que seria normal ter uma atitude mais ríspida, parecíamos não conseguir evitar ter com eles uma tolerância fora do comum. Os velhos não eram de todo pessoas faladoras e nenhum deles disse nada que não fosse absolutamente necessário, ou seja, apenas falaram em resposta às nossas perguntas e a conversa acabou por esmorecer. Uma troca de olhares foi suficiente para sairmos até ao quintal para fumar um cigarro e trocar impressões.
- O que é que achas disto? Achas que devemos tomar uma atitude? Perguntei.
- Na realidade não sei. Eu até acho que sim, não é nada normal termos duas pessoas que não conhecemos a morar connosco, mas a verdade é que, ao contrário do que seria de esperar, não me sinto minimamente constrangida perto deles, é como se já os conhecesse há montes de tempo. Até mesmo nos momentos de silêncio, que poderiam facilmente ser constrangedores, sinto-me perfeitamente à vontade, nem sequer sinto aquela necessidade de dizer alguma coisa só para quebrar o silêncio. Parece-me até um silêncio estranhamente agradável.
- Sim, eu também sinto isso, não sinto que eles sejam estranhos, nem sinto que estejam a afectar o nosso conforto.
- Vamos então deixar a coisa andar e ver o que acontece.
Decidido isto, voltámos para dentro. Encontramos toda a loiça do pequeno-almoço lavada e arrumada e os velhos em silêncio a montar um puzzle.
- Gostam de puzzles? Perguntei
- Sim, descontrai-nos. Respondeu o velho
- Mas… onde é que traziam o puzzle? Perguntei baralhado.
- Trazíamo-lo connosco, naquele saco.
Olhei para o chão onde vi um saco de plástico que nunca tinha visto antes, dentro do qual estavam mais quatro puzzles. Mencionei que não tinha reparado no saco no dia anterior e de facto, era capaz de jurar que eles não traziam saco nenhum. Como já era esperado, a conversa esmoreceu, os velhos continuaram a montar o puzzle, sem se incomodarem minimamente com o facto de nós termos ficado lá em silêncio a observá-los.
Intrigava-me os velhos não falarem um com o outro, certamente já estariam juntos há muito tempo e a necessidade de palavras tinha-se reduzido drasticamente. Certamente compreendiam qualquer gesto, expressão ou olhar do outro e, ao contrário do que aparentava, a comunicação existia, tinha a certeza disso.
Passaram alguns dias, os velhos ajudavam em tudo, cozinhavam, limpavam, e nas horas vagas entregavam-se aos puzzles. A situação começou a tornar-se demasiado estranha, não aparentavam pretender ir-se embora e nós, apesar de nos sentirmos bastante confortáveis com eles, começámos a sentir que teríamos que tomar uma atitude. Nessa noite, já depois de os velhos estarem deitados, discutimos a questão.
- Eu gosto deles, não tenho duvidas que gosto, mas começo a achar que eles já estão mesmo a abusar.
- Reparaste que na noite em que eles apareceram eles não estavam molhados? Só depois é que me apercebi, mas estava a chover a potes, eles não tinham guarda-chuva e não estavam minimamente molhados. É a coisa que mais me intriga…
- Não me tinha apercebido, mas há várias coisas neles que são no mínimo estranhas. Eles nunca falam um com o outro e quando tentamos fazer conversa respondem sempre as coisas mais simples, mas a verdade é que acertam na mosca. Sempre que tentei pedir opiniões sobre alguma coisa eles têm sempre uma resposta pronta e é sempre uma visão simples e perfeitamente lúcida sobre a questão. É curioso que, apesar de eles quase não falarem, acho que já aprendi imenso com eles.
- Eu também sinto isso, acho que com eles aprendi muito sobre mim próprio, acho até que eles vieram com uma missão, com um objectivo muito bem definido, nem sei se eles serão mesmo pessoas como nós.
- Mas qual será o objectivo? Eles não parecem ser propriamente interventivos, nem parecem estar preocupados em cumprir nenhum objectivo.
- Eu acho que nos podemos ver neles, ver-nos no futuro, ou pelo menos um futuro possível. Um futuro que me parece óptimo. Acho que se conseguirmos crescer interiormente e amadurecer juntos conseguimos chegar ao nível daqueles velhos. Eles não só se conhecem a si próprios como conhecem o outro perfeitamente. Parece-me que é uma boa fórmula para o sucesso a dois. Precisamos de nos conhecer a nós próprios, não só para saber o que nos move, o que nos faz agir como agimos, mas também para podermos conscientemente melhorar e evoluir. Mas este caminho é árduo e pode afastar-nos de quem amamos. Temos que conseguir também fazê-lo um em relação ao outro, tu tens que saber o que me move, porque é que eu reajo de determinada forma, e eu a mesma coisa em relação a ti. Só assim conseguimos evoluir como casal. Acho que devemos tentar saber o que eles sabem quando chegarmos à sua idade. Conseguirmos compreender-nos e aceitarmo-nos pacificamente. Ou seja, é possível que o objectivo dependa apenas de nós e não deles.
No dia seguinte a cama estava arrumada, os cobertores e os lençóis dobrados em cima do sofá, mas não havia panquecas, não havia ninguém. Não precisámos de palavras, prosseguimos com a nossa vida, mas o aperto no peito ainda durou algum tempo.
Reli alguns dos meus rabiscos, onde se encontram ideias parvas para personagens como “O Grácio Espada tinha um fetiche por marcas de BCG…” ou “Mas o Nicolau conseguiu adaptar o seu metabolismo ao novo sistema, e enquanto por todo o tempo em que se levantava até passar o torniquete do trabalho era um poço de energia, assim que o passava, até o seu ritmo cardíaco abrandava subitamente. Ia calmamente tomar o seu pequeno-almoço, calmamente beber o seu café e fumar o seu cigarro, nada de novo.”. Encontram-se também ideias para esse novo género literário designado por post, que nunca vingaram, como por exemplo uma carta a deus que seria algo como:
Olá Deus,
Então tudo bem? Por aqui vai-se andando, tudo mais ou menos na mesma. Não devemos ter evoluído muito desde a última vez que alguém te viu.
Um amigo meu acha que já deves estar entretido num planeta longínquo qualquer e que já nem te lembras de nós, mas eu garanti-lhe que estavas só de férias. Agora não me deixes ficar mal visto! Não é que nós não nos orientemos, até há quem se oriente bastante bem, mas estamos a ficar muito materialistas, até aqueles que nos querem fazer acreditar que andam a espalhar a tua mensagem!
Mas a verdade é que antigamente fartavas-te de aparecer, aconselhavas mandamentos, aplicavas uns cataclismas quando era preciso… agora nada!
Já pensaste que agora até é muito mais fácil passar uma mensagem? Eu sei que deve ter sido muito frustrante estares a tentar orientar-nos e ver que as coisas nunca saíam como tu querias, mas que tal tentares de novo? Além do mais, os mandamentos já precisavam de uma revisão, tipo: não desenvolverás software malicioso, etc. E que tal criares um website? Que tal a ideia? Podia ter dicas para sermos melhores, podia ter um countdown para o fim do mundo, podia ter até uma parte para verificarmos se estamos a tender para o céu ou para o inferno, era capaz de mudar a opinião da muita gente que anda por aí a pensar que basta comer a rodela de pão todos os domingos…
Ou qualquer historieta sobre separação que começaria assim:
As rosas estavam já murchas na mesa posta para dois, a penumbra envolvia a sala, tinha sido tarde demais, ela tinha-se ido embora e ali estava eu sentado no canto com o olhar fixo na silhueta da cadeira vazia. Na minha mente vi todas as fotografias que nunca tirámos, as fotografias dos momentos que não quisemos recordar mais tarde…
Havia até no emaranhado de frases textos já começados que achei que poderiam até ser mais desenvolvidos, quem sabe até dar um livro, e que numa esperança vã de um dia voltar a pegar neles foram ficando… Ficando… Coisas como:
Estava lixado com a vida! Levantei-me, peguei nas minhas coisas e saí sem uma palavra. Meti-me no carro e arranquei sem saber para onde, mas isso não era importante, o importante era ir; nada mais havia senão a estrada, sempre pronta a levar-me onde eu quisesse. Era já noite cerrada quando me apercebei que estava numa estrada deserta e sem iluminação, a única paisagem eram luzes longínquas de pequenas povoações. Abri a janela e gritei a plenos pulmões: “Estou livre!!!”, acendi o cigarro e senti que de facto era verdade, não era mais uma daquelas mentiras que contamos a nós próprios e nos obrigamos a acreditar para tornar a nossa existência mais confortável, não, era verdade, mesmo verdade, e tive a certeza que nunca mais iria voltar.
Encostei o carro, reclinei o banco e recostei-me a tentar digerir a situação, mas depressa desisti, decidi apenas que não iria parar, não iria voltar para trás! Deixei-me dormir e acordei com o sol matinal na cara e senti-me genuinamente feliz. Arranquei com o objectivo de encontrar um sítio para comer. Minutos depois entrava numa povoação (que podia muito bem ser Sarnadas de Ródão), vi uma tasca aberta, parei o carro e entrei. O interior era pitoresco, escuro, antigo, paredes revestidas de madeira até metade, as quatro mesas e respectivas cadeiras também de madeira, serradura espalhada pelo chão de mosaicos pretos e brancos. Na mesa do canto, provavelmente o cliente mais habitual, sorvia ruidosamente a sua taça de tinto. Ao balcão, que era também revestido a madeira como as paredes, com o habitual armário em vidro onde se podia seleccionar a iguaria pretendida de entre variados peixes fritos e bifes panados, uma mulher que não consegui adivinhar a idade. Tão pequena que se via pouco mais que a cabeça, com a pele enrugada como se já não tivesse idade, mas com um olhar e um semblante estranhamente jovial, quase infantil. Pedi uma sandes de panado e, para me integrar melhor no ambiente, uma taça de tinto. A energia da velha senhora tornava ainda mais difícil a estimativa da sua idade, e escassos segundos depois tinha já o meu pedido satisfeito. Antes de beber, ergui o copo ao meu companheiro de taberna, ao que respondeu com um quase imperceptível aceno de cabeça, e dei início à minha primeira refeição em várias horas. Tinha já a boca aberta para perguntar onde estava, mas detive-me. Para quê saber? Não interessa onde estamos nem para onde vamos, o que interessa é ir, somente ir. Paguei, e saí com um amigável “continuação de um bom dia” e segui caminho…
Ou até coisas mais românticas tipo:
Ele acreditava piamente que a paixão ia durar, imaginava-os com 80 anos a brincar como brincavam outrora. Muita gente diria que ele estava a ser ingénuo, que a paixão nunca dura para sempre, mas a verdade é que a paixão ainda arde dentro dele, ele ainda sente, quando ela se aproxima, a força que o puxa para ela, como se cada célula do seu corpo lutasse para se aproximar dela. Ele não consegue ficar-lhe indiferente, não consegue passar por ela sem reconhecer a sua presença, sem tocá-la, abraçá-la. Mas ela não, nela a paixão esmoreceu, consumiu-se, desfez-se em cinzas, e no seu lugar ficou um amor, que é sem dúvida legítimo, mas também precocemente envelhecido. Ela ama-o, disso não há dúvida, mas não sente aquela paixão avassaladora que a puxaria para ele como uma atracção incontrolável.
Mas isto estava tudo a ganhar pó virtual no canto do disco, lixo portanto, e eu não conseguia escrever nada.
Liguei o televisor num daqueles canais nostalgistas para me distrair um bocado e estava a dar uma série que eu via quando era mais novo. Neste episódio aparecia um casal de velhos que me pareceu especial, não sei bem o que foi mas é capaz de ter sido o aspecto índio que me cativou. Não sei se é paranóia minha, mas parece-me sempre que os índios velhos sabem uma infinidade de coisas que nós, pessoas comuns não sabemos, parece que têm sempre um brilho de certeza no olhar. Para pelo menos escrever alguma coisa, mesmo que fosse mais lixo para a pilha, decidi transformar aquele casal de velho nos personagens principais de mais um texto. Na falta de um motor de arranque para a história decidi também usar as linhas gerais da história do episódio, que aparentavam resumir-se basicamente ao casal de velhos ficar uma noite na casa de um dos personagens da série e acabar por ficar lá montes de tempo. Claro que havia uma razão oculta para os velhos terem lá ficado aquele tempo todo, eles só se terão ido embora quando o seu trabalho estava feito, mas isto era uma das coisas fantásticas da arte, podemos interpretar mil coisas diferentes e, se calhar, nenhuma delas passou na cabeça do artista. Na esperança de conseguir aprofundar as personalidades do casal de velhos e da sua missão oculta comecei assim:
Estava uma daquelas noites péssimas, a chover torrencialmente e uma ventania de fazer abanar as janelas. Estávamos no quentinho com os gatos a ver um filme quando alguém tocou à campainha. Achámos muito estranho, mas decidimos ir ver quem seria e quando espreitei pelo óculo da porta vejo um casal de velhos com uma aparência que deixava na dúvida se seriam esquimós ou índios sul-americanos. Era tão surreal que parecia que não estava a ver o outro lado da porta, mas sim outra realidade num outro lugar qualquer. Ainda demorei uns segundos a reagir, mas obviamente abri a porta. O homem, que assim como a mulher aparentava ter entre sessenta e setenta anos, sobrepôs a sua voz ao assobiar do vento dizendo que tinham sido apanhados pela tempestade e que não tinham condições de ir para casa. Perguntou se nos importaríamos que passassem a noite na nossa escada. Instintivamente ofereci-lhes dormida na nossa casa, ao que, após a recusa educada de forma a verificar se a oferta era sincera, acederam. Preparámos uma ceia, uma cama no sofá e percebendo que estavam ambos visivelmente cansados deixámo-los para que pudessem pôr-se à vontade.
- Não achas estranho? Esta rua não é propriamente um ponto de passagem. De onde é que eles vinham e para onde é que eles iam para acabarem por vir bater logo à nossa porta? Disse ela
- Pois tens razão aí… mas achas que eles nos querem fazer algum tipo de mal? Eu, por muito que o meu instinto de sobrevivência me tente convencer do contrário, não consigo acreditar que aquele casal de velhotes nos tenha aparecido à porta com a intenção premeditada de nos fazer mal.
- Sim, também não acredito nisso, mas acho tudo isto muito estranho.
A conversa antes de dormir teria que ficar por aqui porque estava outra vez bloqueado, temi ter acabado de escrever mais um monte de letras inúteis, mas tentei não ser pessimista. Fui fumar um cigarro para desanuviar decidido a insistir na história, só teria que haver um motivo oculto e, de preferência, com alguma profundidade que tivesse levado os velhos lá a casa e estava a história feita, não seria certamente um livro, mas um post havia de sair!
O cigarro deu frutos, consegui arranjar um objectivo para os velhos, certamente diferente de qualquer possível objectivo do casal de velhos da série que me serviu de inspiração. Sendo este o principal requisito, dei-me por satisfeito. Para abrir as possibilidades de interpretação decidi também não tornar completamente explícito este objectivo do casal de velhos, seria o objectivo para quem escreve, quem lesse teria que poder inferir o objectivo que entendesse. Resumidamente, o objectivo dos velhos deveria dizer qualquer coisa a quem lesse a história, mas não necessariamente o mesmo que a mim. Prossegui…
Na manhã seguinte, quando nos levantámos os velhos já estavam de pé. A cama estava desfeita, os cobertores e lençóis dobrados em cima do sofá, e havia panquecas para o pequeno-almoço! Ainda meio atordoados, tanto por termos acordado há pouco tempo como pela cena pouco usual com que nos deparámos, sentámo-nos à mesa, em resposta do qual nos apareceu à frente uma caneca de café com leite e um prato de panquecas com compota. Durante o pequeno-almoço ocorreu a conversa normal. Como é que estão, como é que dormiram, etc. e depois de “quebrar o gelo” tentei saber mais alguma coisa sobre eles, perguntei onde moravam e como iriam para casa, ao que o velho respondeu evasivamente que moravam para Sintra, mas que tinha havido uma derrocada de terras junto à sua casa e que ainda estava a ser limpa, pelo que não podiam voltar já para lá. Nitidamente era mentira. Além do mais, como é que ele tinha sabido daquilo? Senti alguma indignação, principalmente pelo facto de eles estarem nitidamente a fazer-se convidados na nossa casa por tempo indeterminado sem sequer o pedirem, mas instintivamente mantive a cordialidade, apercebendo-me depois que tinha sido porque o casal de velhos transmitia uma calma imensa. Parecia que onde eles estavam reinava uma paz impenetrável que contagiava tudo o que os rodeava. Os gatos, que não são de dar confiança, só queriam estar perto deles e nós, numa situação em que seria normal ter uma atitude mais ríspida, parecíamos não conseguir evitar ter com eles uma tolerância fora do comum. Os velhos não eram de todo pessoas faladoras e nenhum deles disse nada que não fosse absolutamente necessário, ou seja, apenas falaram em resposta às nossas perguntas e a conversa acabou por esmorecer. Uma troca de olhares foi suficiente para sairmos até ao quintal para fumar um cigarro e trocar impressões.
- O que é que achas disto? Achas que devemos tomar uma atitude? Perguntei.
- Na realidade não sei. Eu até acho que sim, não é nada normal termos duas pessoas que não conhecemos a morar connosco, mas a verdade é que, ao contrário do que seria de esperar, não me sinto minimamente constrangida perto deles, é como se já os conhecesse há montes de tempo. Até mesmo nos momentos de silêncio, que poderiam facilmente ser constrangedores, sinto-me perfeitamente à vontade, nem sequer sinto aquela necessidade de dizer alguma coisa só para quebrar o silêncio. Parece-me até um silêncio estranhamente agradável.
- Sim, eu também sinto isso, não sinto que eles sejam estranhos, nem sinto que estejam a afectar o nosso conforto.
- Vamos então deixar a coisa andar e ver o que acontece.
Decidido isto, voltámos para dentro. Encontramos toda a loiça do pequeno-almoço lavada e arrumada e os velhos em silêncio a montar um puzzle.
- Gostam de puzzles? Perguntei
- Sim, descontrai-nos. Respondeu o velho
- Mas… onde é que traziam o puzzle? Perguntei baralhado.
- Trazíamo-lo connosco, naquele saco.
Olhei para o chão onde vi um saco de plástico que nunca tinha visto antes, dentro do qual estavam mais quatro puzzles. Mencionei que não tinha reparado no saco no dia anterior e de facto, era capaz de jurar que eles não traziam saco nenhum. Como já era esperado, a conversa esmoreceu, os velhos continuaram a montar o puzzle, sem se incomodarem minimamente com o facto de nós termos ficado lá em silêncio a observá-los.
Intrigava-me os velhos não falarem um com o outro, certamente já estariam juntos há muito tempo e a necessidade de palavras tinha-se reduzido drasticamente. Certamente compreendiam qualquer gesto, expressão ou olhar do outro e, ao contrário do que aparentava, a comunicação existia, tinha a certeza disso.
Passaram alguns dias, os velhos ajudavam em tudo, cozinhavam, limpavam, e nas horas vagas entregavam-se aos puzzles. A situação começou a tornar-se demasiado estranha, não aparentavam pretender ir-se embora e nós, apesar de nos sentirmos bastante confortáveis com eles, começámos a sentir que teríamos que tomar uma atitude. Nessa noite, já depois de os velhos estarem deitados, discutimos a questão.
- Eu gosto deles, não tenho duvidas que gosto, mas começo a achar que eles já estão mesmo a abusar.
- Reparaste que na noite em que eles apareceram eles não estavam molhados? Só depois é que me apercebi, mas estava a chover a potes, eles não tinham guarda-chuva e não estavam minimamente molhados. É a coisa que mais me intriga…
- Não me tinha apercebido, mas há várias coisas neles que são no mínimo estranhas. Eles nunca falam um com o outro e quando tentamos fazer conversa respondem sempre as coisas mais simples, mas a verdade é que acertam na mosca. Sempre que tentei pedir opiniões sobre alguma coisa eles têm sempre uma resposta pronta e é sempre uma visão simples e perfeitamente lúcida sobre a questão. É curioso que, apesar de eles quase não falarem, acho que já aprendi imenso com eles.
- Eu também sinto isso, acho que com eles aprendi muito sobre mim próprio, acho até que eles vieram com uma missão, com um objectivo muito bem definido, nem sei se eles serão mesmo pessoas como nós.
- Mas qual será o objectivo? Eles não parecem ser propriamente interventivos, nem parecem estar preocupados em cumprir nenhum objectivo.
- Eu acho que nos podemos ver neles, ver-nos no futuro, ou pelo menos um futuro possível. Um futuro que me parece óptimo. Acho que se conseguirmos crescer interiormente e amadurecer juntos conseguimos chegar ao nível daqueles velhos. Eles não só se conhecem a si próprios como conhecem o outro perfeitamente. Parece-me que é uma boa fórmula para o sucesso a dois. Precisamos de nos conhecer a nós próprios, não só para saber o que nos move, o que nos faz agir como agimos, mas também para podermos conscientemente melhorar e evoluir. Mas este caminho é árduo e pode afastar-nos de quem amamos. Temos que conseguir também fazê-lo um em relação ao outro, tu tens que saber o que me move, porque é que eu reajo de determinada forma, e eu a mesma coisa em relação a ti. Só assim conseguimos evoluir como casal. Acho que devemos tentar saber o que eles sabem quando chegarmos à sua idade. Conseguirmos compreender-nos e aceitarmo-nos pacificamente. Ou seja, é possível que o objectivo dependa apenas de nós e não deles.
No dia seguinte a cama estava arrumada, os cobertores e os lençóis dobrados em cima do sofá, mas não havia panquecas, não havia ninguém. Não precisámos de palavras, prosseguimos com a nossa vida, mas o aperto no peito ainda durou algum tempo.
sexta-feira, 25 de novembro de 2005
A esmola
- És maluco??? Eu vi bem? Deste dois euros à velha???
- Dei. Qual é o problema?
- O problema é que anda por aí muita gente a pedir esmola que tem mais dinheiro que tu. E além do mais dois euros são quatrocentos paus!
- É só dinheiro. Achas que vou notar alguma coisa no meu orçamento? Se não os tivesse dado à velha eles iam desaparecer na mesma e para mim ia ser igual. E posso estar enganado, mas não me pareceu que aquela velha tivesse mais dinheiro que eu…
- Ouve, aquelas cenas do marido ter morrido e ter quatro filhos é tudo tangas, é sempre a mesma história, só muda a velha.
- Eu sei, é muito provável que seja tudo tanga, mas eu não percebo como é que tu, que deves gastar uma média de cinco euros por semana em gorjetas nos restaurantes, ficas tão escandalizado por eu dar dois euros à velha que, até pode ser mentira, mas parece precisar muito mais do que os empregados dos restaurantes. Aliás, tu e a grande maioria das pessoas! Dão gorjetas nos restaurantes, aos taxistas e a toda a gente a que é politicamente correcto dar, mas são incapazes de dar uns trocos a um pobre que esteja a pedir. Isso é que é de ficar escandalizado, dão quando fica bem e não quando quem recebe precisa mesmo!
- Não deixas de ter alguma razão aí... pá, mas tu nestas coisas da vida és um bocado tanso…
- …
- Dei. Qual é o problema?
- O problema é que anda por aí muita gente a pedir esmola que tem mais dinheiro que tu. E além do mais dois euros são quatrocentos paus!
- É só dinheiro. Achas que vou notar alguma coisa no meu orçamento? Se não os tivesse dado à velha eles iam desaparecer na mesma e para mim ia ser igual. E posso estar enganado, mas não me pareceu que aquela velha tivesse mais dinheiro que eu…
- Ouve, aquelas cenas do marido ter morrido e ter quatro filhos é tudo tangas, é sempre a mesma história, só muda a velha.
- Eu sei, é muito provável que seja tudo tanga, mas eu não percebo como é que tu, que deves gastar uma média de cinco euros por semana em gorjetas nos restaurantes, ficas tão escandalizado por eu dar dois euros à velha que, até pode ser mentira, mas parece precisar muito mais do que os empregados dos restaurantes. Aliás, tu e a grande maioria das pessoas! Dão gorjetas nos restaurantes, aos taxistas e a toda a gente a que é politicamente correcto dar, mas são incapazes de dar uns trocos a um pobre que esteja a pedir. Isso é que é de ficar escandalizado, dão quando fica bem e não quando quem recebe precisa mesmo!
- Não deixas de ter alguma razão aí... pá, mas tu nestas coisas da vida és um bocado tanso…
- …
quinta-feira, 24 de novembro de 2005
É pedir muito?
Queria não ter que estar onde não quero estar. Queria não ter que fazer aquilo que não quero fazer. Queria não ter que ir onde não quero ir. É pedir muito?
sexta-feira, 18 de novembro de 2005
Personagens #1 - O Balila
Há pessoas que passam pela nossa vida sem nela ter um papel importante mas que deixam marcas e recordações, às vezes até alguma saudade ou algo mais perto da nostalgia. Com este pensamento decidi iniciar esta rubrica, à qual minimalisticamente decidi chamar 'Personagens deste romance comico-trágico que foi a minha vida até agora', ou, carinhosamente, 'Personagens'.
De referir que, de maneira nenhuma o critério de escolha dos personagens está relacionado com a importância que têm para mim. Não quero que nenhum dos personagens, deste romance comico-trágico que foi a minha vida até agora, quê lêm isto (vá-se lá saber porquê...) se sinta de alguma forma desconsiderado por não ser mencionado.
Dito isto...
O Balila
Não é que o Balila tenha influenciado a minha vida ou nela seja um personagem preponderante, a particularidade é que o Balila foi, até agora (e ainda bem), a única pessoa entre as que eu considero amigas, que morreu, e morreu mesmo bastante jovem.
Devíamos ter uns 10 ou 12 anos e o Balila e mais outros amigos nossos andavam pendurados nos comboios. A estação da Amadora estava no processo de se tornar o que é hoje e havia uma plataforma provisória feita de madeira. Quando o comboio chegou à estação o Balila ficou com o pé entalado entre a escada do comboio e a plataforma e, provavelmente aliando a sua corpulência à adrenalina do momento de stress conseguiu partir a coluna ao tentar soltar-se, segundo ouvi em primeira mão, e não foi socorrido a tempo.
Era o mago do gamanço no continente, uma coisa profissional, até recebia encomendas de skates que era exímio a roubar com um à-vontade quase invejável.
Aqui fica um registo do Balila, podia não ser a mente mais brilhante do mundo, mas era provavelmente uma das mais bem dispostas. Espero que ainda haja muita gente a lembrar-se dele.
Nota: O irmão do Balila é o Bitra. Não sei onde é que eles arranjaram estas alcunhas…
De referir que, de maneira nenhuma o critério de escolha dos personagens está relacionado com a importância que têm para mim. Não quero que nenhum dos personagens, deste romance comico-trágico que foi a minha vida até agora, quê lêm isto (vá-se lá saber porquê...) se sinta de alguma forma desconsiderado por não ser mencionado.
Dito isto...
O Balila
Não é que o Balila tenha influenciado a minha vida ou nela seja um personagem preponderante, a particularidade é que o Balila foi, até agora (e ainda bem), a única pessoa entre as que eu considero amigas, que morreu, e morreu mesmo bastante jovem.
Devíamos ter uns 10 ou 12 anos e o Balila e mais outros amigos nossos andavam pendurados nos comboios. A estação da Amadora estava no processo de se tornar o que é hoje e havia uma plataforma provisória feita de madeira. Quando o comboio chegou à estação o Balila ficou com o pé entalado entre a escada do comboio e a plataforma e, provavelmente aliando a sua corpulência à adrenalina do momento de stress conseguiu partir a coluna ao tentar soltar-se, segundo ouvi em primeira mão, e não foi socorrido a tempo.
Era o mago do gamanço no continente, uma coisa profissional, até recebia encomendas de skates que era exímio a roubar com um à-vontade quase invejável.
Aqui fica um registo do Balila, podia não ser a mente mais brilhante do mundo, mas era provavelmente uma das mais bem dispostas. Espero que ainda haja muita gente a lembrar-se dele.
Nota: O irmão do Balila é o Bitra. Não sei onde é que eles arranjaram estas alcunhas…
terça-feira, 15 de novembro de 2005
Maaaaaaau!
Observei um fenómeno deveras interessante, há cerca de um ano atrás havia um ou outro gajo aqui no trabalho que, ao satisfazer as necessidades fisiológicas de carácter líquido, mijar portanto, curiosamente retirava antes uma folha de papel das mãos para, depois de descarregado o conteúdo da bexiga, limpar a última pinguinha. Achava curioso, mas eis que agora verifico que 1/4 a 1/3 das pessoas executa este interessante ritual. Nunca tinha visto isto em lado nenhum, nem sequer nos outros pisos, mas a verdade é que é bastante comum alguém entrar nesta casa de banho e retirar logo uma folhinha de papel. Estimo que daqui a mais um ou dois anos metade dos homens daqui a usará!
O que é que eu penso disto? Se querem mesmo saber (e mesmo que não queiram) o que eu penso é que se a última pinga, que é mínima se o instrumento for habilmente sacudido, sempre caiu na cueca, porque é que havemos de abolir essa característica tão representativa do ser humano masculino? Além do mais a cueca vai para lavar ao fim do dia, não é? Será que eles andam a tentar poupar na lavagem das cuecas e o ritual é para ela se aguentar apresentável toda a semana? Ainda por cima, indirectamente tentam acabar com o milenar sacudir do pene, que ainda é das muito poucas coisas que nos conseguem ligar aos nossos antepassados mais remotos. Qual folhinha de papel qual quê? Maaaaaau! Tenho que chamar o Fernando, é?
O que é que eu penso disto? Se querem mesmo saber (e mesmo que não queiram) o que eu penso é que se a última pinga, que é mínima se o instrumento for habilmente sacudido, sempre caiu na cueca, porque é que havemos de abolir essa característica tão representativa do ser humano masculino? Além do mais a cueca vai para lavar ao fim do dia, não é? Será que eles andam a tentar poupar na lavagem das cuecas e o ritual é para ela se aguentar apresentável toda a semana? Ainda por cima, indirectamente tentam acabar com o milenar sacudir do pene, que ainda é das muito poucas coisas que nos conseguem ligar aos nossos antepassados mais remotos. Qual folhinha de papel qual quê? Maaaaaau! Tenho que chamar o Fernando, é?
segunda-feira, 7 de novembro de 2005
O rio
Já que toda a gente escreve uma história para crianças quando tem um filho, eu, como não quero paracer esquisito, segui a onda e saíu 'O rio'. É para ti, piteco.
Havia um rio que era maravilhoso, as suas águas eram límpidas e era a casa de muitas famílias de animais. Peixes, aves, répteis, batráquios, muitas aranhas de todos os tamanhos e feitios e inúmeros insectos, entre os quais, libelinhas, alfaiates, borboletas e larvas de todas as cores. A paisagem era bela e verdejante e bastava sentarmo-nos um pouco numa pedra a ouvir o gorgolejar do rio para sermos invadidos por uma calma imensa. Era mesmo um sítio muito bonito e todos os animais que lá viviam eram muito felizes.
Certa noite, andavam os peixinhos a brincar antes de irem dormir, quando ouvem um som muito estranho, uma espécie de ronco que nunca nenhum deles tinha ouvido antes. Avançando na direcção de onde vinha o som, viram um enorme monstro que se aproximava. Nunca tinham visto nada assim, não tinha barbatanas nem pernas, andava sobre umas coisas redondas e pretas que rodavam, tinha dois olhos tão brilhantes que iluminavam tudo à sua frente e rosnava de forma assustadora. Parecia ter saído de dentro de um pesadelo, pensaram os peixinhos. Cheios de medo nadaram o mais depressa que conseguiam para ir chamar os pais. Os pais, que também tinham ouvido o barulho, foram logo ver o que se passava, assim que os pequenos disseram que lá estava um monstro enorme e feio, mas, quando se aproximaram do local onde os peixinhos tinham visto o monstro não conseguiram avançar mais. A água tinha um cheiro horrível, sabia muito mal e todos tiveram que se afastar porque estavam a ficar muito mal dispostos. Voltaram para as suas casas no meio da vegetação, combinando encontrarem-se logo de manhã para discutirem o assunto. De manhã bem cedo, todos os peixes acordaram e, em cardume, foram ver como estava o rio. Foi uma visão desoladora, nem sequer se conseguiam ir ao sítio onde o monstro tinha aparecido, o cheiro tinha-se espalhado e havia já uma boa parte do rio onde era muito desagradável estar, e podiam ver que todas as ervas naquela zona estavam amarelas e doentes. Era terrível, porque é que aquele monstro faria uma coisa destas? E se ele voltasse? Se só uma vez tinha sido o que se via, se ele voltasse podia destruir tudo, os peixes e todos os outros animais teriam que deixar as suas casas e as plantas e as árvores estariam condenadas! Tinham que fazer alguma coisa! Mas o quê?
Estavam todos a discutir o que poderiam fazer quando alguém falou num velho e lendário peixe-gato que se dizia que vivia sozinho numa gruta rio acima, ele talvez os pudesse ajudar, mas a verdade é que sabiam dele por histórias que os seus avós tinham ouvido e ninguém tinha a certeza que esse velho peixe existia mesmo. A maioria achou que era uma ideia parva e que, mesmo que ele tivesse existido, a história era tão antiga que certamente o velho peixe-gato já não estaria vivo.
Decidiram espalhar a notícia e tentar reunir os animais para que pudessem ajudar, mas era uma tarefa muito difícil. Falar com as aves era muito complicado porque elas não se calavam, estavam sempre em acesas conversas uns com os outros e nem sequer ligavam aos peixes, os insectos, nem valia a pena tentar, era impossível falar com um insecto, ficavam a olhar com um ar de quem não percebeu nada e nunca respondiam. As coisas não estavam a correr nada bem, mas sempre iam passando a mensagem aos outros peixes que se foram juntando. A corrente ia tornando a água melhor, mas a coisa malcheirosa que o monstro deitou iria seguir rio abaixo e iria estragar outros sítios.
Dadas as dificuldades houve um grupo que achou que, visto que ninguém sabia como combater o monstro, faria uma tentativa para encontrar o velho peixe. Decidiram então que iriam numa expedição rio acima para encontrar o velho peixe-gato enquanto os outros continuariam a pensar numa solução para evitar que o monstro voltasse. Seguiram contra a corrente do rio, à procura de grutas e a perguntar aos peixes que passavam se alguma vez tinham visto tal peixe-gato, mas ninguém alguma vez o tinha visto. Ao fim do dia, já estavam todos exaustos, num sítio estranho e ainda não tinham encontrado nada. Procuraram um sítio onde pudessem passar a noite em segurança e alguém encontrou um espaço entre duas grandes pedras onde poderiam ficar. Ao entrarem aperceberam-se que não era apenas um pequeno espaço, era como uma gruta que seguia até perder de vista na escuridão. Decidiram dormir ali e continuar a exploração pela manhã. Para dormirem mais descansados ficaria sempre um acordado. Escolheram a ordem pela qual o fariam e assim, cada um ficaria acordado uma hora, ao fim da qual acordaria o seguinte e iria dormir e assim foi até o sol nascer.
De manhã, aproveitando o facto de a o sol estar no ponto certo para a sua luz entrar pela gruta e iluminar bastante bem o caminho seguiram, um pouco amedrontados, gruta adentro. Foram seguindo enquanto a luz ia esmorecendo e o medo que sentiam nem sequer os deixou apreciar a beleza do local, a gruta ia alargando e todas as rochas à sua volta eram verdadeiras obras de arte esculpidas pela água e em cada buraquinho ou fenda havia criaturas que nunca antes tinham visto. Ao chegarem ao ponto em que já quase não viam, o medo foi aumentando e rapidamente perceberam o seu erro, o Sol ia deixar de iluminar a gruta, tudo ia ficar escuro, decidiram então voltar para trás, mas o Sol foi seguindo o seu caminho no céu em direcção ao poente e em pouco tempo a gruta ficou à sombra e os peixes no meio de total escuridão. Juntaram-se todos uns aos outros, muito agarrados e cheios de medo sem saber o que fazer, quando sentiram que a água se estava a movimentar, sentiam correntes como se algo grande tivesse passado perto. Claro que nesta altura estavam já todos aterrorizados e, abraçados uns aos outros, tremiam de pavor. Nisto, ouvem uma voz grave e cavernosa. “Agarrem-se à minha cauda”, disse a voz e segundos depois sentiram uma enorme cauda de peixe a roçar neles. Era uma cauda gigantesca, maior que todos eles e, sem outra alternativa, os peixes agarraram-se a ela e começaram a ser suavemente puxados em direcção à saída da gruta. Ao se aproximarem da saída, assim que começaram a ter luz, puderam vislumbrar o tamanho do peixe que os estava a puxar, Não era só o maior peixe que já tinham visto, era muito, mas muito maior do que qualquer outro peixe que já tinham visto. Os peixes perto dele pareciam ratinhos e nunca se tinham sentido tão pequeninos. Tinha um corpo cinzento-escuro com aspecto sedoso, uma boca enorme e uns bigodes que quase lhe chegavam à cauda, podia ver-se que era muito velho.
- O que é que andam aqui a fazer?
Perguntou o velho peixe-gato.
- Viemos à sua procura!
Responderam em uníssono.
- À minha procura? Como é que vocês me conhecem?
- Por histórias que ouvimos dos nossos avós. O nosso rio está em perigo e precisamos de ajuda!
Respondeu um dos peixes.
- Lamento, mas eu não vos posso ajudar.
Disse o velho peixe-gato, para desilusão dos peixes.
- Mas há um monstro que estragou a água, e ele pode voltar. Não podemos deixá-lo destruir o nosso rio sem pelo menos tentar fazer alguma coisa. Ajude-nos por favor.
Choramingaram os peixes.
- Eu não disse que não vos queria ajudar. O que eu disse foi que não vos podia ajudar. Decidi afastar-me e vim viver para esta gruta, mas passei aqui muito tempo dentro e agora sou demasiado grande para caber na saída. Estou aqui preso e nunca mais vou conseguir sair.
Explicou o velho peixe-gato. Os peixes ficaram sem palavras, não conseguiam acreditar que, depois de terem feito o mais difícil que foi encontrar o velho peixe-gato, embora tenha sido ele a encontrá-los, o seu plano iria ser um fracasso por causa de uma questão de tamanho, mas de facto todos verificaram que seria impossível para um peixe tão grande passar pela abertura que conduzia à liberdade do rio.
Ficaram todos calados por momentos, a pensar numa solução até que um dos peixes teve uma ideia, se houvesse pescadores ali perto, podiam prender os seus anzóis numa das pedras da entrada da gruta e eles puxavam-na, mas tinham que ser vários. Todos ficaram encantados com a ideia incluindo o velho peixe-gato e os peixes saíram à procura de pescadores. Tiveram sorte e conseguiram apanhar os anzóis de três pescadores e, depois de salvarem as minhocas, levaram calmamente os anzóis até à pedra e prenderam-nos. Dando um puxão na linha, os pescadores pensaram que tinham apanhado um dos grandes e começaram a puxar, ao mesmo tempo que o velho peixe-gato empurrava a pedra do lado de dentro. Lentamente a pedra começou a mover-se e, numa ânsia de liberdade, o velho peixe-gato reuniu todas as suas forças e, com um empurrão forte a pedra cedeu e caiu para o fundo do rio levando os anzóis consigo. O velho peixe-gato saiu e, eufórico, nadou e saltou de alegria, enquanto os peixes, radiantes com o seu feito, observavam o espectáculo único que é um velho e gigantesco peixe-gato a pular como se fosse jovem outra vez. Quando a euforia começou a passar voltou para junto dos peixes, abraçou-os todos de uma vez entre as suas enormes barbatanas e agradeceu do fundo do coração por o terem salvo da prisão em que vivia.
A alegria esmoreceu quando se lembraram do que os levou ali e pediram ao velho peixe-gato que, usando a sua enorme experiência dado ter já vivido muito mais que qualquer um dos outros peixes do rio, os aconselhasse sobre o que fazer para evitar que o monstro voltasse. O velho peixe-gato pensou um pouco e disse que a única solução que poderia resultar tinha que envolver todos os animais.
- Juntos somos mais fortes, disse, temos que alertar todos os animais para a situação e pedir o apoio de todos.
- Nós tentámos, mas aves não nos ligam nenhuma, e os insectos não percebem nada.
- Os insectos não falam, só entendem linguagem gestual. E em relação às aves, pode ser que eu consiga atrair a atenção delas.
Respondeu o velho peixe-gato.
- Linguagem gestual?
Repetiram os peixes com um ar de dúvida.
- Sim, linguagem gestual é falar sem usar a voz, comunicar com gestos, com o corpo.
Esclareceu o velho peixe-gato.
- Ah, então por isso que eles nunca nos respondem! Concluíram os peixes. Mas nós não sabemos essa linguagem, como é que vamos fazer?
- Em tempos fui muito amigo de uma aranha, pode ser que vos consiga ajudar.
Respondeu o velho peixe-gato, para alegria de todos os peixes. Aproximou-se então de alguns insectos e começou a efectuar uma espécie de dança, os peixes não estavam a perceber nada, mas a verdade é que mais insectos se foram juntando e no fim da estranha representação todos os insectos se espalharam para passar a mensagem a outros. Os peixes estavam perplexos mas muito agradecidos por poderem contar com uma ajuda tão preciosa.
Seguiram então rio abaixo e, à medida que passavam todas as aves se calavam e ficavam espantadas a olhar, nunca ninguém tinha visto um peixe tão grande neste rio, era uma imagem extraordinária, e, aproveitando o momento da sua atenção, com a sua voz poderosa, o velho peixe-gato conseguiu falar com alguns patos que estavam perto, pedindo para todos se juntarem rio abaixo.
Nada podia ter preparado os peixes para o que viram quando chegaram à sua zona do rio, a notícia tinha viajado mais depressa que eles e, embora a água estivesse muito má, certamente o monstro tinha voltado na noite anterior, o rio fervilhava de actividade, patos, gansos, garças, pardais e até algumas gaivotas tinham vindo do mar para ajudar, uma infinidade de insectos de todas as formas e feitios, rãs, sapos, salamandras, cobras de água e muitos, muitos outros animais tinham vindo ajudar, só lhes faltava era um plano, e seria bom que se despachassem pois dentro de pouco tempo seria noite e o monstro poderia voltar novamente.
Neste momento um monte de ideias começou a surgir, umas mais absurdas que outras, mas todas pareciam bastante disparatadas. Nisto o velho peixe-gato mantinha-se calado e, quando as vozes se começaram a calar, apercebendo-se que assim não conseguiam nada, todos se viraram para o velho peixe-gato, que parecia nem estar a ouvir nada.
- Tens alguma ideia?
Alguém perguntou.
- Sim. Respondeu. A minha ideia é organizarmo-nos e juntar várias das vossas ideias. Para conseguirmos alguma coisa temos que saber trabalhar bem em conjunto. Mesmo todos juntos certamente não temos força para afugentar o monstro, portanto vamos ter que usar a inteligência. Na minha opinião devemos montar armadilhas, alguém disse que as aves podiam usar pedras para bombardear o monstro, eu acho muito boa ideia, mas para ter o melhor efeito têm que ser todos ao mesmo tempo. Uma ideia muito boa que alguém também teve foi lançar limos para os olhos do monstro, os peixes podem fazer isso, e durante o ataque, os insectos em enxame, desviam a atenção do monstro para que ele não consiga reagir, vocês… Disse dirigindo-se aos pardais e restantes aves pequenas. Serão os nossos olhos, quando ele aparecer voam para ver o que se passa, mantendo-se fora do seu alcance, caso haja alguma coisa inesperada voltam logo a avisar-nos. Se todos fizermos a nossa parte, isto pode resultar, mas estejam preparados para fugir caso seja necessário! Peço agora aos batráquios que se espalhem pelo caminho e coaxem se o virem ou ouvirem a aproximar-se.
Todos os animais se prepararam para cumprir os seus papéis, as aves juntaram um monte das pedras mais pesadas que conseguiam carregar, houve até algumas que se juntaram para conseguirem levantar um pequeno tronco caído, os peixes reuniram uma grande quantidade de limos enquanto os insectos, incluindo algumas espécies que normalmente nem se davam muito bem, combinaram o plano de ataque e se espalharam junto ao fim do caminho. A noite caiu e os animais estavam todos preparados em silêncio para a vinda do monstro, ao contrário do que era normal, não se ouvia nada além do barulho da água.
Estavam já alguns quase a adormecer quando se ouvem coaxos e muito pouco tempo depois o ronco que tanto os tinha assustado nas noites anteriores. Prontamente os pardais levantam voo e mergulham na penumbra mas alguns minutos depois voltaram muito aflitos a dizer que o monstro já tinha apanhado dois humanos, tinham conseguido vê-los lá dentro!
“Temos que os ajudar!” alguém disse e todos imediatamente concordaram, mas isto era inesperado, o que podiam fazer? Não tinham tempo para pensar num novo plano. O velho peixe-gato tentou acalmar toda a gente e propôs que mantivessem o plano, mas com uma alteração, em vez de bombardearem o monstro, as aves largariam as pedras no caminho na tentativa de o bloquear, e só depois de ele estar encurralado é que o bombardeariam e com a ajuda dos insectos talvez o conseguissem enfraquecer o suficiente para os humanos conseguirem sair. Sem tempo para mais discussões todos se prepararam para o momento. Quando o monstro chega, com o seu ronco assustador e os seus olhos brilhantes, estavam já as aves a levar as pedras para taparem o caminho e os peixes prontos para lançarem os limos, todos ficam boquiabertos quando duas portas se abrem no monstro e os humanos saem, aparentemente ilesos. E, para maior espanto de todos os animais os humanos puxaram uma mangueira do monstro e começaram a despejar aquela coisa malcheirosa que estragava a água. Os animais não podiam acreditar no que viam, os humanos faziam parte da natureza, sempre tinham visto as coisas assim, e estavam dispostos a ajudá-los como se fossem quaisquer outros animais, porque é que eles estavam a fazer tanto mal à natureza? Não fazia qualquer sentido! Mas não podiam deixá-los continuar com isto e com um incentivo do velho peixe-gato, todas as aves se lançaram sobre os dois humanos, prontamente imitadas pelos insectos. Os humanos, apanhados completamente desprevenidos, ainda levaram algumas bicadas e ferroadas antes de conseguirem meter-se de novo dentro do monstro que, como era agora óbvio, não passava de uma horrenda máquina construída pelos humanos para lhes estragar o lindo rio onde moravam.
“As pedras!” gritou o velho peixe-gato, e logo as aves foram buscar as pedras que tinham largado no caminho para as largar sobre a máquina. Tencionavam pregar tamanho susto aos humanos que nunca mais pensariam em destruir a natureza assim. Assim que a chuva de pedras começou, os humanos, sem saberem muito bem o que estava a acontecer fugiram a toda a pressa, enquanto todos os animais rejubilavam. Os peixes saltavam na água, todos os insectos saltitavam eufóricos, todas as aves esvoaçavam dando gritos de alegria, Parecia que todos estavam contentes, mas o velho peixe-gato não se ria, estava até com uma expressão de grande tristeza.
- Porque é que não estás alegre? Afugentámos os humanos, pregámos-lhes um tal susto que não devem aparecer aqui tão cedo…
Perguntou um dos peixes.
- Estou triste porque me apercebi do que os humanos são capazes, porque me apercebi que nenhum sítio estará a salvo deles, mas nunca se esqueçam…
Disse enquanto se afastava rio abaixo.
- Assim como nem todos os peixes são iguais, nem todos os humanos são iguais, e haverá muitos que ainda se preocupam com a natureza. Protejam-se, defendam-se, mas não percam a fé em nenhum dos animais, nem mesmo nos humanos.
E partiu, ajudado pela corrente para onde o rio era mais largo e fundo, ainda ouviu ao longe os agradecimentos dos peixes e das aves e sorriu.
Havia um rio que era maravilhoso, as suas águas eram límpidas e era a casa de muitas famílias de animais. Peixes, aves, répteis, batráquios, muitas aranhas de todos os tamanhos e feitios e inúmeros insectos, entre os quais, libelinhas, alfaiates, borboletas e larvas de todas as cores. A paisagem era bela e verdejante e bastava sentarmo-nos um pouco numa pedra a ouvir o gorgolejar do rio para sermos invadidos por uma calma imensa. Era mesmo um sítio muito bonito e todos os animais que lá viviam eram muito felizes.
Certa noite, andavam os peixinhos a brincar antes de irem dormir, quando ouvem um som muito estranho, uma espécie de ronco que nunca nenhum deles tinha ouvido antes. Avançando na direcção de onde vinha o som, viram um enorme monstro que se aproximava. Nunca tinham visto nada assim, não tinha barbatanas nem pernas, andava sobre umas coisas redondas e pretas que rodavam, tinha dois olhos tão brilhantes que iluminavam tudo à sua frente e rosnava de forma assustadora. Parecia ter saído de dentro de um pesadelo, pensaram os peixinhos. Cheios de medo nadaram o mais depressa que conseguiam para ir chamar os pais. Os pais, que também tinham ouvido o barulho, foram logo ver o que se passava, assim que os pequenos disseram que lá estava um monstro enorme e feio, mas, quando se aproximaram do local onde os peixinhos tinham visto o monstro não conseguiram avançar mais. A água tinha um cheiro horrível, sabia muito mal e todos tiveram que se afastar porque estavam a ficar muito mal dispostos. Voltaram para as suas casas no meio da vegetação, combinando encontrarem-se logo de manhã para discutirem o assunto. De manhã bem cedo, todos os peixes acordaram e, em cardume, foram ver como estava o rio. Foi uma visão desoladora, nem sequer se conseguiam ir ao sítio onde o monstro tinha aparecido, o cheiro tinha-se espalhado e havia já uma boa parte do rio onde era muito desagradável estar, e podiam ver que todas as ervas naquela zona estavam amarelas e doentes. Era terrível, porque é que aquele monstro faria uma coisa destas? E se ele voltasse? Se só uma vez tinha sido o que se via, se ele voltasse podia destruir tudo, os peixes e todos os outros animais teriam que deixar as suas casas e as plantas e as árvores estariam condenadas! Tinham que fazer alguma coisa! Mas o quê?
Estavam todos a discutir o que poderiam fazer quando alguém falou num velho e lendário peixe-gato que se dizia que vivia sozinho numa gruta rio acima, ele talvez os pudesse ajudar, mas a verdade é que sabiam dele por histórias que os seus avós tinham ouvido e ninguém tinha a certeza que esse velho peixe existia mesmo. A maioria achou que era uma ideia parva e que, mesmo que ele tivesse existido, a história era tão antiga que certamente o velho peixe-gato já não estaria vivo.
Decidiram espalhar a notícia e tentar reunir os animais para que pudessem ajudar, mas era uma tarefa muito difícil. Falar com as aves era muito complicado porque elas não se calavam, estavam sempre em acesas conversas uns com os outros e nem sequer ligavam aos peixes, os insectos, nem valia a pena tentar, era impossível falar com um insecto, ficavam a olhar com um ar de quem não percebeu nada e nunca respondiam. As coisas não estavam a correr nada bem, mas sempre iam passando a mensagem aos outros peixes que se foram juntando. A corrente ia tornando a água melhor, mas a coisa malcheirosa que o monstro deitou iria seguir rio abaixo e iria estragar outros sítios.
Dadas as dificuldades houve um grupo que achou que, visto que ninguém sabia como combater o monstro, faria uma tentativa para encontrar o velho peixe. Decidiram então que iriam numa expedição rio acima para encontrar o velho peixe-gato enquanto os outros continuariam a pensar numa solução para evitar que o monstro voltasse. Seguiram contra a corrente do rio, à procura de grutas e a perguntar aos peixes que passavam se alguma vez tinham visto tal peixe-gato, mas ninguém alguma vez o tinha visto. Ao fim do dia, já estavam todos exaustos, num sítio estranho e ainda não tinham encontrado nada. Procuraram um sítio onde pudessem passar a noite em segurança e alguém encontrou um espaço entre duas grandes pedras onde poderiam ficar. Ao entrarem aperceberam-se que não era apenas um pequeno espaço, era como uma gruta que seguia até perder de vista na escuridão. Decidiram dormir ali e continuar a exploração pela manhã. Para dormirem mais descansados ficaria sempre um acordado. Escolheram a ordem pela qual o fariam e assim, cada um ficaria acordado uma hora, ao fim da qual acordaria o seguinte e iria dormir e assim foi até o sol nascer.
De manhã, aproveitando o facto de a o sol estar no ponto certo para a sua luz entrar pela gruta e iluminar bastante bem o caminho seguiram, um pouco amedrontados, gruta adentro. Foram seguindo enquanto a luz ia esmorecendo e o medo que sentiam nem sequer os deixou apreciar a beleza do local, a gruta ia alargando e todas as rochas à sua volta eram verdadeiras obras de arte esculpidas pela água e em cada buraquinho ou fenda havia criaturas que nunca antes tinham visto. Ao chegarem ao ponto em que já quase não viam, o medo foi aumentando e rapidamente perceberam o seu erro, o Sol ia deixar de iluminar a gruta, tudo ia ficar escuro, decidiram então voltar para trás, mas o Sol foi seguindo o seu caminho no céu em direcção ao poente e em pouco tempo a gruta ficou à sombra e os peixes no meio de total escuridão. Juntaram-se todos uns aos outros, muito agarrados e cheios de medo sem saber o que fazer, quando sentiram que a água se estava a movimentar, sentiam correntes como se algo grande tivesse passado perto. Claro que nesta altura estavam já todos aterrorizados e, abraçados uns aos outros, tremiam de pavor. Nisto, ouvem uma voz grave e cavernosa. “Agarrem-se à minha cauda”, disse a voz e segundos depois sentiram uma enorme cauda de peixe a roçar neles. Era uma cauda gigantesca, maior que todos eles e, sem outra alternativa, os peixes agarraram-se a ela e começaram a ser suavemente puxados em direcção à saída da gruta. Ao se aproximarem da saída, assim que começaram a ter luz, puderam vislumbrar o tamanho do peixe que os estava a puxar, Não era só o maior peixe que já tinham visto, era muito, mas muito maior do que qualquer outro peixe que já tinham visto. Os peixes perto dele pareciam ratinhos e nunca se tinham sentido tão pequeninos. Tinha um corpo cinzento-escuro com aspecto sedoso, uma boca enorme e uns bigodes que quase lhe chegavam à cauda, podia ver-se que era muito velho.
- O que é que andam aqui a fazer?
Perguntou o velho peixe-gato.
- Viemos à sua procura!
Responderam em uníssono.
- À minha procura? Como é que vocês me conhecem?
- Por histórias que ouvimos dos nossos avós. O nosso rio está em perigo e precisamos de ajuda!
Respondeu um dos peixes.
- Lamento, mas eu não vos posso ajudar.
Disse o velho peixe-gato, para desilusão dos peixes.
- Mas há um monstro que estragou a água, e ele pode voltar. Não podemos deixá-lo destruir o nosso rio sem pelo menos tentar fazer alguma coisa. Ajude-nos por favor.
Choramingaram os peixes.
- Eu não disse que não vos queria ajudar. O que eu disse foi que não vos podia ajudar. Decidi afastar-me e vim viver para esta gruta, mas passei aqui muito tempo dentro e agora sou demasiado grande para caber na saída. Estou aqui preso e nunca mais vou conseguir sair.
Explicou o velho peixe-gato. Os peixes ficaram sem palavras, não conseguiam acreditar que, depois de terem feito o mais difícil que foi encontrar o velho peixe-gato, embora tenha sido ele a encontrá-los, o seu plano iria ser um fracasso por causa de uma questão de tamanho, mas de facto todos verificaram que seria impossível para um peixe tão grande passar pela abertura que conduzia à liberdade do rio.
Ficaram todos calados por momentos, a pensar numa solução até que um dos peixes teve uma ideia, se houvesse pescadores ali perto, podiam prender os seus anzóis numa das pedras da entrada da gruta e eles puxavam-na, mas tinham que ser vários. Todos ficaram encantados com a ideia incluindo o velho peixe-gato e os peixes saíram à procura de pescadores. Tiveram sorte e conseguiram apanhar os anzóis de três pescadores e, depois de salvarem as minhocas, levaram calmamente os anzóis até à pedra e prenderam-nos. Dando um puxão na linha, os pescadores pensaram que tinham apanhado um dos grandes e começaram a puxar, ao mesmo tempo que o velho peixe-gato empurrava a pedra do lado de dentro. Lentamente a pedra começou a mover-se e, numa ânsia de liberdade, o velho peixe-gato reuniu todas as suas forças e, com um empurrão forte a pedra cedeu e caiu para o fundo do rio levando os anzóis consigo. O velho peixe-gato saiu e, eufórico, nadou e saltou de alegria, enquanto os peixes, radiantes com o seu feito, observavam o espectáculo único que é um velho e gigantesco peixe-gato a pular como se fosse jovem outra vez. Quando a euforia começou a passar voltou para junto dos peixes, abraçou-os todos de uma vez entre as suas enormes barbatanas e agradeceu do fundo do coração por o terem salvo da prisão em que vivia.
A alegria esmoreceu quando se lembraram do que os levou ali e pediram ao velho peixe-gato que, usando a sua enorme experiência dado ter já vivido muito mais que qualquer um dos outros peixes do rio, os aconselhasse sobre o que fazer para evitar que o monstro voltasse. O velho peixe-gato pensou um pouco e disse que a única solução que poderia resultar tinha que envolver todos os animais.
- Juntos somos mais fortes, disse, temos que alertar todos os animais para a situação e pedir o apoio de todos.
- Nós tentámos, mas aves não nos ligam nenhuma, e os insectos não percebem nada.
- Os insectos não falam, só entendem linguagem gestual. E em relação às aves, pode ser que eu consiga atrair a atenção delas.
Respondeu o velho peixe-gato.
- Linguagem gestual?
Repetiram os peixes com um ar de dúvida.
- Sim, linguagem gestual é falar sem usar a voz, comunicar com gestos, com o corpo.
Esclareceu o velho peixe-gato.
- Ah, então por isso que eles nunca nos respondem! Concluíram os peixes. Mas nós não sabemos essa linguagem, como é que vamos fazer?
- Em tempos fui muito amigo de uma aranha, pode ser que vos consiga ajudar.
Respondeu o velho peixe-gato, para alegria de todos os peixes. Aproximou-se então de alguns insectos e começou a efectuar uma espécie de dança, os peixes não estavam a perceber nada, mas a verdade é que mais insectos se foram juntando e no fim da estranha representação todos os insectos se espalharam para passar a mensagem a outros. Os peixes estavam perplexos mas muito agradecidos por poderem contar com uma ajuda tão preciosa.
Seguiram então rio abaixo e, à medida que passavam todas as aves se calavam e ficavam espantadas a olhar, nunca ninguém tinha visto um peixe tão grande neste rio, era uma imagem extraordinária, e, aproveitando o momento da sua atenção, com a sua voz poderosa, o velho peixe-gato conseguiu falar com alguns patos que estavam perto, pedindo para todos se juntarem rio abaixo.
Nada podia ter preparado os peixes para o que viram quando chegaram à sua zona do rio, a notícia tinha viajado mais depressa que eles e, embora a água estivesse muito má, certamente o monstro tinha voltado na noite anterior, o rio fervilhava de actividade, patos, gansos, garças, pardais e até algumas gaivotas tinham vindo do mar para ajudar, uma infinidade de insectos de todas as formas e feitios, rãs, sapos, salamandras, cobras de água e muitos, muitos outros animais tinham vindo ajudar, só lhes faltava era um plano, e seria bom que se despachassem pois dentro de pouco tempo seria noite e o monstro poderia voltar novamente.
Neste momento um monte de ideias começou a surgir, umas mais absurdas que outras, mas todas pareciam bastante disparatadas. Nisto o velho peixe-gato mantinha-se calado e, quando as vozes se começaram a calar, apercebendo-se que assim não conseguiam nada, todos se viraram para o velho peixe-gato, que parecia nem estar a ouvir nada.
- Tens alguma ideia?
Alguém perguntou.
- Sim. Respondeu. A minha ideia é organizarmo-nos e juntar várias das vossas ideias. Para conseguirmos alguma coisa temos que saber trabalhar bem em conjunto. Mesmo todos juntos certamente não temos força para afugentar o monstro, portanto vamos ter que usar a inteligência. Na minha opinião devemos montar armadilhas, alguém disse que as aves podiam usar pedras para bombardear o monstro, eu acho muito boa ideia, mas para ter o melhor efeito têm que ser todos ao mesmo tempo. Uma ideia muito boa que alguém também teve foi lançar limos para os olhos do monstro, os peixes podem fazer isso, e durante o ataque, os insectos em enxame, desviam a atenção do monstro para que ele não consiga reagir, vocês… Disse dirigindo-se aos pardais e restantes aves pequenas. Serão os nossos olhos, quando ele aparecer voam para ver o que se passa, mantendo-se fora do seu alcance, caso haja alguma coisa inesperada voltam logo a avisar-nos. Se todos fizermos a nossa parte, isto pode resultar, mas estejam preparados para fugir caso seja necessário! Peço agora aos batráquios que se espalhem pelo caminho e coaxem se o virem ou ouvirem a aproximar-se.
Todos os animais se prepararam para cumprir os seus papéis, as aves juntaram um monte das pedras mais pesadas que conseguiam carregar, houve até algumas que se juntaram para conseguirem levantar um pequeno tronco caído, os peixes reuniram uma grande quantidade de limos enquanto os insectos, incluindo algumas espécies que normalmente nem se davam muito bem, combinaram o plano de ataque e se espalharam junto ao fim do caminho. A noite caiu e os animais estavam todos preparados em silêncio para a vinda do monstro, ao contrário do que era normal, não se ouvia nada além do barulho da água.
Estavam já alguns quase a adormecer quando se ouvem coaxos e muito pouco tempo depois o ronco que tanto os tinha assustado nas noites anteriores. Prontamente os pardais levantam voo e mergulham na penumbra mas alguns minutos depois voltaram muito aflitos a dizer que o monstro já tinha apanhado dois humanos, tinham conseguido vê-los lá dentro!
“Temos que os ajudar!” alguém disse e todos imediatamente concordaram, mas isto era inesperado, o que podiam fazer? Não tinham tempo para pensar num novo plano. O velho peixe-gato tentou acalmar toda a gente e propôs que mantivessem o plano, mas com uma alteração, em vez de bombardearem o monstro, as aves largariam as pedras no caminho na tentativa de o bloquear, e só depois de ele estar encurralado é que o bombardeariam e com a ajuda dos insectos talvez o conseguissem enfraquecer o suficiente para os humanos conseguirem sair. Sem tempo para mais discussões todos se prepararam para o momento. Quando o monstro chega, com o seu ronco assustador e os seus olhos brilhantes, estavam já as aves a levar as pedras para taparem o caminho e os peixes prontos para lançarem os limos, todos ficam boquiabertos quando duas portas se abrem no monstro e os humanos saem, aparentemente ilesos. E, para maior espanto de todos os animais os humanos puxaram uma mangueira do monstro e começaram a despejar aquela coisa malcheirosa que estragava a água. Os animais não podiam acreditar no que viam, os humanos faziam parte da natureza, sempre tinham visto as coisas assim, e estavam dispostos a ajudá-los como se fossem quaisquer outros animais, porque é que eles estavam a fazer tanto mal à natureza? Não fazia qualquer sentido! Mas não podiam deixá-los continuar com isto e com um incentivo do velho peixe-gato, todas as aves se lançaram sobre os dois humanos, prontamente imitadas pelos insectos. Os humanos, apanhados completamente desprevenidos, ainda levaram algumas bicadas e ferroadas antes de conseguirem meter-se de novo dentro do monstro que, como era agora óbvio, não passava de uma horrenda máquina construída pelos humanos para lhes estragar o lindo rio onde moravam.
“As pedras!” gritou o velho peixe-gato, e logo as aves foram buscar as pedras que tinham largado no caminho para as largar sobre a máquina. Tencionavam pregar tamanho susto aos humanos que nunca mais pensariam em destruir a natureza assim. Assim que a chuva de pedras começou, os humanos, sem saberem muito bem o que estava a acontecer fugiram a toda a pressa, enquanto todos os animais rejubilavam. Os peixes saltavam na água, todos os insectos saltitavam eufóricos, todas as aves esvoaçavam dando gritos de alegria, Parecia que todos estavam contentes, mas o velho peixe-gato não se ria, estava até com uma expressão de grande tristeza.
- Porque é que não estás alegre? Afugentámos os humanos, pregámos-lhes um tal susto que não devem aparecer aqui tão cedo…
Perguntou um dos peixes.
- Estou triste porque me apercebi do que os humanos são capazes, porque me apercebi que nenhum sítio estará a salvo deles, mas nunca se esqueçam…
Disse enquanto se afastava rio abaixo.
- Assim como nem todos os peixes são iguais, nem todos os humanos são iguais, e haverá muitos que ainda se preocupam com a natureza. Protejam-se, defendam-se, mas não percam a fé em nenhum dos animais, nem mesmo nos humanos.
E partiu, ajudado pela corrente para onde o rio era mais largo e fundo, ainda ouviu ao longe os agradecimentos dos peixes e das aves e sorriu.
quarta-feira, 26 de outubro de 2005
Censura
Queria só notar o facto de que, com bastante certeza, este nosso fantástico blog está bloqueado para a China continental!
Pois é, a China bloqueia o acesso a sites que contenham qualquer referência ao Falun Gong, inclusivamente a respectiva página da wikipedia (estive a ver agora mesmo a história da wikipedia e parece que desde o passado dia 20 todo o site está bloqueado!).
E agora, mesmo que mude o livro, já há um post com "Falun Gong" (duas vezes!) portanto lamentavelmente não conseguiremos chegar aos nossos irmãos chineses.
Talvez um dia...
Pois é, a China bloqueia o acesso a sites que contenham qualquer referência ao Falun Gong, inclusivamente a respectiva página da wikipedia (estive a ver agora mesmo a história da wikipedia e parece que desde o passado dia 20 todo o site está bloqueado!).
E agora, mesmo que mude o livro, já há um post com "Falun Gong" (duas vezes!) portanto lamentavelmente não conseguiremos chegar aos nossos irmãos chineses.
Talvez um dia...
segunda-feira, 24 de outubro de 2005
Já que isto anda fraquito...
E na linha do último post do Prof. Baltazar, vou deixar aqui um texto muito bom que recebi por mail, de autor desconhecido e que tem por título: "Modernidades linguísticas depois do 25 de Abril", embora eu lhe tivesse chamado «Tenho uma família monoparental». Em todo o caso gostaria de sensibilizar os intervenientes de tão nobre tertúlia para privilegiarem sempre o texto original e inédito.
Cá vai:
Tem muito humor, observa bem a actualidade cultural portuguesa e não ofende ninguém. Desde que os americanos se lembraram de começar a chamar "afro-americanos" aos pretos, com vista a acabar com as raças por via gramatical - isto tem sido um fartote pegado! As criadas dos anos 70 passaram a "empregadas" e preparam-se agora para receber menção de "auxiliares de apoio doméstico". De igual modo, extinguiram-se nas escolas os "contínuos"; passaram todos a "auxiliares da acção educativa". Os vendedores de medicamentos, inchados de prosápia, tratam-se de "delegados da propaganda médica". E pelo mesmo processo transmudaram-se os caixeiros-viajantes em "técnicos de vendas".
Os drogados transformaram-se em "toxicodependentes" (como se os consumos de cerveja e de cocaína se equivalessem!); o aborto eufemizou-se em "interrupção voluntária da gravidez"; os gangues étnicos são "grupos de jovens"; os operários fizeram-se de repente "colaboradores"; e as fábricas, essas, vistas de dentro são "unidades produtivas" e vistas da estranja são "centros de decisão nacionais". O analfabetismo desapareceu da crosta portuguesa, cedendo o passo à "iliteracia" galopante.
Desapareceram outrossim dos comboios as classes 1.ª e 2.ª, para não ferir a susceptibilidade social das massas hierarquizadas, mas por imperscrutáveis necessidades de tesouraria continuam a cobrar-se preços distintos nas classes "Conforto" e "Turística".
A Ágata, rainha do pimba, cantava chorosa: «Sou mãe solteira...»; agora, se quiser acompanhar os novos tempos, deve alterar a letra da pungente melodia: «Tenho uma família monoparental...» - eis o novo verso da cançoneta, se quiser fazer jus à modernidade impante. Aquietadas pela televisão, já se não vêem por aí aos pinotes crianças irrequietas e terroristas; diz-se modernamente que têm um "comportamento disfuncional hiperactivo". Do mesmo modo, e para felicidade dos "encarregados de educação", os brilhantes programas escolares extinguiram os alunos cábulas; tais estudantes serão, quando muito, "crianças de desenvolvimento instável". Ainda há cegos, infelizmente, como nota na sua crónica o Eurico. Mas como a palavra fosse considerada desagradável e até aviltante, quem não vê é considerado "invisual". (O termo é gramaticalmente impróprio, como impróprio seria chamar inauditivos aos surdos - mas o "politicamente correcto" marimba-se para as regras gramaticais...) Para compor o ramalhete e se darem ares, as gentes cultas da praça desbocam-se em "implementações", "posturas pró-activas", "políticas fracturantes" e outros barbarismos da linguagem.
E assim linguajamos o Português, vagueando perdidos entre a «correcção política» e o novo-riquismo linguístico.
À margem da revolução semântica ficaram as putas. As desgraçadas são ainda agora quem melhor cultiva a língua. Da porta do quarto para dentro, não há "politicamente correcto" que lhes dobre o modo de expressão ou lhes imponha a terminologia nova. Os amantes do idioma pátrio, se o quiserem ouvir pleno de vernaculidade, que se dirijam ao bordel mais próximo. Aí sim,um pénis de 25 centímetros é um "car**** enorme" e nunca um sobredimensionado"; assim como dos impotentes, coitados, dizem elas castiçamente que "não levantam o pau", e não que sofrem de "disfunção eréctil".
Cá vai:
Tem muito humor, observa bem a actualidade cultural portuguesa e não ofende ninguém. Desde que os americanos se lembraram de começar a chamar "afro-americanos" aos pretos, com vista a acabar com as raças por via gramatical - isto tem sido um fartote pegado! As criadas dos anos 70 passaram a "empregadas" e preparam-se agora para receber menção de "auxiliares de apoio doméstico". De igual modo, extinguiram-se nas escolas os "contínuos"; passaram todos a "auxiliares da acção educativa". Os vendedores de medicamentos, inchados de prosápia, tratam-se de "delegados da propaganda médica". E pelo mesmo processo transmudaram-se os caixeiros-viajantes em "técnicos de vendas".
Os drogados transformaram-se em "toxicodependentes" (como se os consumos de cerveja e de cocaína se equivalessem!); o aborto eufemizou-se em "interrupção voluntária da gravidez"; os gangues étnicos são "grupos de jovens"; os operários fizeram-se de repente "colaboradores"; e as fábricas, essas, vistas de dentro são "unidades produtivas" e vistas da estranja são "centros de decisão nacionais". O analfabetismo desapareceu da crosta portuguesa, cedendo o passo à "iliteracia" galopante.
Desapareceram outrossim dos comboios as classes 1.ª e 2.ª, para não ferir a susceptibilidade social das massas hierarquizadas, mas por imperscrutáveis necessidades de tesouraria continuam a cobrar-se preços distintos nas classes "Conforto" e "Turística".
A Ágata, rainha do pimba, cantava chorosa: «Sou mãe solteira...»; agora, se quiser acompanhar os novos tempos, deve alterar a letra da pungente melodia: «Tenho uma família monoparental...» - eis o novo verso da cançoneta, se quiser fazer jus à modernidade impante. Aquietadas pela televisão, já se não vêem por aí aos pinotes crianças irrequietas e terroristas; diz-se modernamente que têm um "comportamento disfuncional hiperactivo". Do mesmo modo, e para felicidade dos "encarregados de educação", os brilhantes programas escolares extinguiram os alunos cábulas; tais estudantes serão, quando muito, "crianças de desenvolvimento instável". Ainda há cegos, infelizmente, como nota na sua crónica o Eurico. Mas como a palavra fosse considerada desagradável e até aviltante, quem não vê é considerado "invisual". (O termo é gramaticalmente impróprio, como impróprio seria chamar inauditivos aos surdos - mas o "politicamente correcto" marimba-se para as regras gramaticais...) Para compor o ramalhete e se darem ares, as gentes cultas da praça desbocam-se em "implementações", "posturas pró-activas", "políticas fracturantes" e outros barbarismos da linguagem.
E assim linguajamos o Português, vagueando perdidos entre a «correcção política» e o novo-riquismo linguístico.
À margem da revolução semântica ficaram as putas. As desgraçadas são ainda agora quem melhor cultiva a língua. Da porta do quarto para dentro, não há "politicamente correcto" que lhes dobre o modo de expressão ou lhes imponha a terminologia nova. Os amantes do idioma pátrio, se o quiserem ouvir pleno de vernaculidade, que se dirijam ao bordel mais próximo. Aí sim,um pénis de 25 centímetros é um "car**** enorme" e nunca um sobredimensionado"; assim como dos impotentes, coitados, dizem elas castiçamente que "não levantam o pau", e não que sofrem de "disfunção eréctil".
quinta-feira, 20 de outubro de 2005
A redacção que se segue foi escrita por um candidato numa selecção de Pessoal na Volkswagen. A pessoa foi aceite e seu texto esta a fazer furorna Internet, pela sua criatividade e sensibilidade.
Já fiz cócegas à minha irmã só para que deixasse de chorar, já me queimei a brincar com uma vela, já fiz um balão com a pastilha que se me colou na cara toda, já falei com o espelho, já fingi ser bruxo.Já quis ser astronauta, violinista, mago, caçador e trapezista; já me escondi atrás da cortina e deixei esquecidos os pés de fora; já estive sobo chuveiro até fazer chichi.Já roubei um beijo, confundi os sentimentos, tomei um caminho errado e ainda sigo a caminhar pelo desconhecido.Já raspei o fundo da panela onde se cozinhou o creme, já me cortei ao barbear-me muito apressado e chorei ao escutar determinada música no autocarro.Já tentei esquecer algumas pessoas e descobri que são as mais difíceis de esquecer.Já subi às escondidas até ao terraço para agarrar estrelas, já subi a uma árvore para roubar fruta, já caí de uma escada.Já fiz juramentos eternos, escrevi no muro da escola e chorei sozinho na casa de banho por algo que me aconteceu; já fugi de minha casa para sempree voltei no instante seguinte.Já corri para não deixar alguém a chorar, já fiquei só no meio de mil pessoas sentindo a falta de uma única.Já vi o pôr-do-sol mudar do rosado ao alaranjado, já mergulhei para a piscina e não quis sair mais, já bebi whisky até sentir os lábios dormentes, já olhei a cidade de cima e nem mesmo assim encontrei o meu lugar.Já senti medo da escuridão, já tremi de nervos, já quase morri de amor e renasci novamente para ver o sorriso de alguém especial, já acordei a meioda noite e senti medo de me levantar.Já apostei a correr descalço pela rua, gritei de felicidade, roubei rosas num enorme jardim, já me apaixonei e pensei que era para sempre, mas eraum "para sempre" pela metade.Já me deitei na relva até de madrugada e vi o sol substituir a lua; já chorei por ver amigos partir e depois descobri que chegaram outros novos eque a vida é um ir e vir permanente.Foram tantas as coisas que fiz, tantos os momentos fotografados pela lente da emoção e guardados nesse baú chamado coração...
Agora, um questionário pergunta-me, grita-me desde o papel: " - Qual é a sua experiência?"
Essa pergunta fez eco no meu cérebro. "Experiência.... "Experiência... "Será que cultivar sorrisos é experiência?
Agora... agradar-me-ia perguntar a quem redigiu o questionário:" - Experiência?! Quem a tem, se a cada momento tudo se renova???"
Já fiz cócegas à minha irmã só para que deixasse de chorar, já me queimei a brincar com uma vela, já fiz um balão com a pastilha que se me colou na cara toda, já falei com o espelho, já fingi ser bruxo.Já quis ser astronauta, violinista, mago, caçador e trapezista; já me escondi atrás da cortina e deixei esquecidos os pés de fora; já estive sobo chuveiro até fazer chichi.Já roubei um beijo, confundi os sentimentos, tomei um caminho errado e ainda sigo a caminhar pelo desconhecido.Já raspei o fundo da panela onde se cozinhou o creme, já me cortei ao barbear-me muito apressado e chorei ao escutar determinada música no autocarro.Já tentei esquecer algumas pessoas e descobri que são as mais difíceis de esquecer.Já subi às escondidas até ao terraço para agarrar estrelas, já subi a uma árvore para roubar fruta, já caí de uma escada.Já fiz juramentos eternos, escrevi no muro da escola e chorei sozinho na casa de banho por algo que me aconteceu; já fugi de minha casa para sempree voltei no instante seguinte.Já corri para não deixar alguém a chorar, já fiquei só no meio de mil pessoas sentindo a falta de uma única.Já vi o pôr-do-sol mudar do rosado ao alaranjado, já mergulhei para a piscina e não quis sair mais, já bebi whisky até sentir os lábios dormentes, já olhei a cidade de cima e nem mesmo assim encontrei o meu lugar.Já senti medo da escuridão, já tremi de nervos, já quase morri de amor e renasci novamente para ver o sorriso de alguém especial, já acordei a meioda noite e senti medo de me levantar.Já apostei a correr descalço pela rua, gritei de felicidade, roubei rosas num enorme jardim, já me apaixonei e pensei que era para sempre, mas eraum "para sempre" pela metade.Já me deitei na relva até de madrugada e vi o sol substituir a lua; já chorei por ver amigos partir e depois descobri que chegaram outros novos eque a vida é um ir e vir permanente.Foram tantas as coisas que fiz, tantos os momentos fotografados pela lente da emoção e guardados nesse baú chamado coração...
Agora, um questionário pergunta-me, grita-me desde o papel: " - Qual é a sua experiência?"
Essa pergunta fez eco no meu cérebro. "Experiência.... "Experiência... "Será que cultivar sorrisos é experiência?
Agora... agradar-me-ia perguntar a quem redigiu o questionário:" - Experiência?! Quem a tem, se a cada momento tudo se renova???"
quinta-feira, 6 de outubro de 2005
Três hurras para as estações!
Tenho sempre uma grande resistência em largar a t-shirt. Hoje já estavam uns pouco confortáveis 14 graus quando saí de casa, já está um bocado de frio quando saio do trabalho, mas algo cá dentro me obriga a resistir e só quando já se pode considerar sofrimento é que acabo por me render e levar um casaquito. Eu sei que há por aí resistentes maiores, tipo aquele ganda maluco (não vou mencionar nomes, mas ele sabe quem é) que usa calções em pleno Inverno. Não é uma tentativa de estender o Verão, é apenas inércia. Porque eu gosto realmente de todas as estações, gosto da mudança e embora muita gente ache uma imbecilidade, já tenho saudades do frio e da chuva. Adoro as cores do Outono, de estar no carro a ver a chuva a cair, ou estar em casa, quentinho e confortável, a ouvir o vento e a chuva a bater nas janelas, gosto do Inverno, de estar no quentinho, de os gatos se enfiarem dentro da cama, de acender uma lareira, de sentir o frio que nos mostra que estamos vivos. Da Primavera e do Verão nem vale a pena falar, gosto delas por todas as razões que toda a gente gosta, mas do que eu gosto mesmo é que haja estações!
terça-feira, 4 de outubro de 2005
Ser céptico
Eu, quando era mais jovem, pensava que era um céptico. Vejo agora que assim não era, eu tinha era uma mente muito limitada e assumia uma postura de, se não for cientificamente provado é porque não existe. Mas terá, por exemplo, o décimo planeta do nosso sistema solar começado a existir apenas quando o descobrimos? Não, eu não era céptico, agora é que sou, porque ser céptico não é negar mas sim questionar, é não aceitar dogmas como verdades absolutas e procurar fundamentar aquilo em que acreditamos, mas, não conseguir provar a existência de alguma coisa não prova a sua não existência. Acreditar piamente que algo não existe só porque não se consegue explicar é mais uma atitude dogmática que céptica. Qual é a diferença entre acreditar piamente numa coisa sem ter fundamentos e não acreditar numa coisa por não ter fundamentos? Negar à partida algo que não se compreende é uma atitude tão dogmática como aceitar incondicionalmente algo que não compreendemos. Agora sim, sou um céptico, não aceito verdades incondicionais, mas também não descarto possibilidades. Não digo “Deus existe!”, não digo “Deus não existe!”, digo apenas “Existirá deus?”.
sexta-feira, 30 de setembro de 2005
Zhen-Shan-Ren
É curioso andar toda a gente à procura da fórmula da felicidade quando esta foi já descoberta há tantos séculos e é tão desconcertantemente simples. É curioso como é possível procurar tanto tempo uma coisa que está bem diante dos nossos olhos. Zhen-Shan-Ren disse o iluminado, e hoje, passados mais de dois milénios de evolução estamos cada vez mais longe… ou talvez não. Disse ainda que, mesmo não parecendo, esta é a natureza do Homem. Se é ou não, não sei; mas se não é devia ser! Zhen significa algo como Verdade ou Honestidade, Shan será algo como Compaixão ou Benevolência e Ren algo como Tolerância ou Auto-controlo. Para quê complicar? Está aqui tudo! Três palavras apenas são suficientes para escrever a fórmula que permitiria que toda a humanidade vivesse em harmonia. Honestidade, benevolência e tolerância, parece tão fácil que até se torna cómico, mas não se enganem, basta tentarem não falhar nos três pontos durante um dia para se compreender a dificuldade, dificuldade esta provocada pelos nossos instintos mais básicos, mas achavam que podia ser fácil? Claro que não podia ser fácil! Mas é possível! É um desafio e acima de tudo é algo que se treina, que se interioriza, enquanto numa fase inicial temos que reagir à posteriori tentando anular e combater os sentimentos que nos afastam do caminho, depois de algum tempo esses sentimentos começam já a não emergir e sentimos que realmente passámos mais uma etapa no caminho a percorrer para nos tornarmos pessoas melhores, e quem sabe a primeira etapa para a iluminação, porque o nirvana está ao alcance de todos!
Zhen-Shan-Ren people!
Zhen-Shan-Ren people!
segunda-feira, 26 de setembro de 2005
Vómitos
Estas autárquicas dão-me vómitos! Cerca de 70 candidatos arguidos em processos crime??? Eu sei que eles já lá estavam, só que dantes não se sabia, mas é preciso não ter nenhuma vergonha na cara para, agora que se sabe, fingir que não aconteceu nada e recandidatar-se. E em vários dos casos ganhar!
Dá-me vómitos ouvir o povo dizer coisas do tipo “Se roubou foi por Felgueiras!” Mas esta gente anda doida??? Então mas afinal roubar é bom desde que se partilhe? Vómitos, vómitos!
Eu bem tento ver a coisa pelo lado positivo, pelo menos agora alguns corruptos começam a pagar pelos seus crimes, mas duvido que não fiquem convencidos que compensou, muito mais depois de verificarem que não deixam de ser eleitos por serem ladrões.
Eu sei que eles ainda não foram a julgamento e que podem até ser inocentes, mas pelo menos para aqueles casos mais mediáticos tenho sérias duvidas que isso aconteça. Senhor Valentim, tenha vergonha; Senhor Isaltino tire essa carinha de inocente e Dona Fátima, custa-me a compreender como uma pessoa que não tem o mínimo respeito pelas leis instituídas (que até podem nem ser as melhores, mas quem não consegue fugir para o Brasil tem que as cumprir) consegue ter legitimidade para se candidatar a uma câmara, e mais, ganhar! Vómitos, vómitos!!!
Dá-me vómitos ouvir o povo dizer coisas do tipo “Se roubou foi por Felgueiras!” Mas esta gente anda doida??? Então mas afinal roubar é bom desde que se partilhe? Vómitos, vómitos!
Eu bem tento ver a coisa pelo lado positivo, pelo menos agora alguns corruptos começam a pagar pelos seus crimes, mas duvido que não fiquem convencidos que compensou, muito mais depois de verificarem que não deixam de ser eleitos por serem ladrões.
Eu sei que eles ainda não foram a julgamento e que podem até ser inocentes, mas pelo menos para aqueles casos mais mediáticos tenho sérias duvidas que isso aconteça. Senhor Valentim, tenha vergonha; Senhor Isaltino tire essa carinha de inocente e Dona Fátima, custa-me a compreender como uma pessoa que não tem o mínimo respeito pelas leis instituídas (que até podem nem ser as melhores, mas quem não consegue fugir para o Brasil tem que as cumprir) consegue ter legitimidade para se candidatar a uma câmara, e mais, ganhar! Vómitos, vómitos!!!
terça-feira, 20 de setembro de 2005
Gosto.
Já todos nos encontrámos naquela incómoda situação, á beira de uma constipação, em que nos falta o paladar e tudo nos sabe ao mesmo, certo?
É comum referir-mo-nos a esse estado de sem sabor como, "... não tenho gosto.", ou "... não tenho gosto nenhum." Mas será que não se tem mesmo gosto, ou não se tem paladar? Já estou a imaginar como seria se realmente não tivessemos mesmo nenhum gosto, quando nos constipassemos. Já estou a imaginar, em pleno inverno, o pessoal com altas constipações a chegar ao trabalho, sim trabalho, pois hoje são poucos os que se podem gabar de têr emprego, com calças verde alface, casaco castanho, camisa azul choque, e sapatinho vermelho. Ha ha!! Que grande fartote que seria. "- Oh, Silva! Não se esqueça que amanhã temos reunião com o director.", E o bom do Silva constipava-se logo nesse dia, aparecendo no escritório com um fatinho lilás, camisinha verde e sapatinho amarelo biqueira larga. Ha ha!! Já imaginaram o que era o bom do Brad Pitt aparecer na entrega dos Oscares, com a sua nova namorada, uma hipie estravagante com meias ás riscas azuis e amarelas, sainha verde, camisinha castanha e cabelo violeta,( há quem vista assim. Será que estão sempre constipados? ), enquanto ele se apresentava de blazer amarelo, camisa violeta, a condizer com o cabelo da dita, lacinho vermelho, e sapatinho azul céu? Ha ha!! Esperemos que a falta de gosto se resuma apenas ao facto de não termos paladar. Ha ha!!
Agradecimentos á minha Princesa por ter sido ela a dár-me o mote desta tertúlia.
Beijos
É comum referir-mo-nos a esse estado de sem sabor como, "... não tenho gosto.", ou "... não tenho gosto nenhum." Mas será que não se tem mesmo gosto, ou não se tem paladar? Já estou a imaginar como seria se realmente não tivessemos mesmo nenhum gosto, quando nos constipassemos. Já estou a imaginar, em pleno inverno, o pessoal com altas constipações a chegar ao trabalho, sim trabalho, pois hoje são poucos os que se podem gabar de têr emprego, com calças verde alface, casaco castanho, camisa azul choque, e sapatinho vermelho. Ha ha!! Que grande fartote que seria. "- Oh, Silva! Não se esqueça que amanhã temos reunião com o director.", E o bom do Silva constipava-se logo nesse dia, aparecendo no escritório com um fatinho lilás, camisinha verde e sapatinho amarelo biqueira larga. Ha ha!! Já imaginaram o que era o bom do Brad Pitt aparecer na entrega dos Oscares, com a sua nova namorada, uma hipie estravagante com meias ás riscas azuis e amarelas, sainha verde, camisinha castanha e cabelo violeta,( há quem vista assim. Será que estão sempre constipados? ), enquanto ele se apresentava de blazer amarelo, camisa violeta, a condizer com o cabelo da dita, lacinho vermelho, e sapatinho azul céu? Ha ha!! Esperemos que a falta de gosto se resuma apenas ao facto de não termos paladar. Ha ha!!
Agradecimentos á minha Princesa por ter sido ela a dár-me o mote desta tertúlia.
Beijos
sexta-feira, 16 de setembro de 2005
É assim!
É assim, não admito ir na faixa da esquerda a 120 e ter um mânfio atrás de mim a mandar faroladas feito parvo! Então se eu vou à velocidade máxima permitida, o que é que ele quer? Se não pode ir mais depressa que aquilo porque é que me está a chatear?
É que, vendo bem as coisas, eu até lhe estou a fazer um favor, ainda se habilitava a apanhar uma multa de excesso de velocidade, eu evito isso e é assim que ele me agradece... Há gajos que deviam ser proibídos de tirar a carta!
É que, vendo bem as coisas, eu até lhe estou a fazer um favor, ainda se habilitava a apanhar uma multa de excesso de velocidade, eu evito isso e é assim que ele me agradece... Há gajos que deviam ser proibídos de tirar a carta!
quinta-feira, 15 de setembro de 2005
Amigos?
Entristece-me saber que possam pensar assim!
Ecurece-me o ser, a alma é-me arrancada do corpo, pela estranheza dos que me rodeiam. Por saber que aqueles que um dia considerei amigos, nada mais são do que estranhos, que nada sabem de mim.
Muitos há que me chamam de egoista, que só penso em mim, primeiro eu, sempre eu, e penso:
" Egoista eu? Como posso ser egoista se me encontro rodeado de estranhos?" Estranhos de quem nada sei, e que nada sabem de mim.
Entristece-me saber que possam pensar assim!
Ecurece-me o ser, a alma é-me arrancada do corpo, pela estranheza dos que me rodeiam. Por saber que aqueles que um dia considerei amigos, nada mais são do que estranhos, que nada sabem de mim.
Muitos há que me chamam de egoista, que só penso em mim, primeiro eu, sempre eu, e penso:
" Egoista eu? Como posso ser egoista se me encontro rodeado de estranhos?" Estranhos de quem nada sei, e que nada sabem de mim.
Entristece-me saber que possam pensar assim!
segunda-feira, 12 de setembro de 2005
Armando
Já todos tivemos a sensação de estarmos a ser observados, certo?Até aí nada de novo, não é nada de transcendental.
Todos os dias observa-mos e somos observados por centenas de pessoas, sem nos apercebermos.
Mas há alturas em que temos a nítida sensação de, não só de estarmos a ser observados, como também de que não estamos sozinhos.
Armando é uma pessoa normal, como qualquer pessoa normal. Gosta de ler, ir ao cinema, de estar com os amigos. Enfim, faz coisas normais de pessoas normais. No entanto, Armando, tem uma particularidade, que embora não o afastando de ser uma pessoa normal, dá-lhe uma certa individualidade. Armando tem uma predilecção quase mórbida pelo sobrenatural, pelo terror, pelo suspense, com a particularidade de realmente acreditar que não andamos sozinhos neste mundo.
Armando é casado. E embora não exista nenhuma discrepância de conjugação de horários, com a mulher, dias há, em que essas discrepâncias acontecem.
Foi o caso de um dia destes, em que a esposa ficou de fazer um horário que implicaria entrar ao serviço ás 8:30. Como tal teria de se levantar ás 6:30, para cumprir tal exigência.
O horário de Armando, bastante mais flexível, permite-lhe levantar-se apenas ás 8:00, de modo que quando as esposa se levantou Armando continuou deitado na cama, embora já não estivesse completamente adormecido. Armando apercebia-se, muito ao longe, de todos os os passos da mulher.
O estremecer do colchão quando esta se levantou, os passos até à porta do quarto, o abrir da e fechar da porta, o caminhar até à cozinha, o acender do esquentador, o abrir o roupeiro do corredor, o caminhar de volta para a casa de banho. Armando, lá muito ao longe, conseguia ver todo percurso realizado pela esposa.
Antes de saírem de casa, Armando e a mulher têm por hábito despedirem-se um do outro com um beijo, quer o outro esteja a dormir ou não, e esse dia não foi excepção. Armando, mais uma vez ouviu a porta do quarto abrir-se, e o aproximar da mulher da cama. Sentiu a pressão no colchão quando esta pousou o joelho sobre o mesmo de modo a poder-se esticar e beijar Armando. Armando, sentiu o aproximar da esposa seguido do calor dos seus lábios no rosto.
Exprimiu um breve sorriso de satisfação, e mais uma vez sentiu-a afastar-se e fechar a porta do quarto. Ouviu as chaves a rodarem na fechadura da porta da rua, e o fechar da mesma.
Armando, moveu-se, virou-se de barriga para cima, esticou os braços, e assim ficou esperando a sua hora de levantar.
Aos poucos Armando começou a sentir aquele entorpecer que sentimos adormecemos, e deixou-se levar pelo mesmo. Afinal ainda faltava uma meia hora para se levantar.
Lá longe ouvia os passos da esposa pela casa na sua azáfama matinal. Ouvia-a na cozinha, o caminhar para a casa de banho, o abrir do roupeiro do corredor. Armando lá muito ao longe apercebia-se de todos os movimentos da esposa. Todos os movimentos da esposa? Como, se esta já tinha saído? Armando fez um esforço e conseguiu sair do torpor em que se encontrava, embora tivesse a estranha sensação de não se puder mover e tão pouco abrir os olhos. Deixou-se estar quieto e aprofundou os sentidos. Continuava a sentir a presença da esposa em casa, mas tal não podia ser, pois esta já tinha saído. Ter-se ia esquecido de algo? Armando fez um esforço enorme para tentar perceber o que se estava a passar, mas sem êxito. Continuava a não se conseguir mover, nem abrir os olhos. Quando tentou chamar pela mulher, nada saiu da sua boca. Nem o mais pequeno som. De repente sentiu que a porta do quarto se abria. Armando ficou um pouco apreensivo, mas estranhamente mantinha-se calmo, embora o seu coração tivesse disparado violentamente. Armando sentiu uma aproximação da cama, sentiu a pressão no colchão, sentiu um aproximar de si, e mesmo antes de sentir o calor do beijo, que não podia ser da sua esposa, Armando, num esforço imenso, conseguiu que um som gutural sai-se da sua boca, simultaneamente que esticava os braços no sentido de evitar o contacto com o que quer ali se encontrasse.
A sensação da presença desapareceu, Armando manteve-se imóvel por alguns segundos até que abriu os olhos. Lentamente virou a cabeça para os dois lados, pois a cama encontrava-se a meio do quarto, mas nada viu de invulgar. A porta estava fechada, e o quarto encontrava-se sob a penumbra habitual da manhã. Lentamente, Armando, levantou-se, abriu as cortinas, levantou os estores, e imediatamente o quarto foi invadido por uma luz imensa. O dia estava limpo, e o sol brilhava com força. Armando deixou-se ficar ali alguns segundos, sentindo o calor do sol no rosto.
Alguns dias mais tarde, Armando, deitado na cama, depois de a esposa ter sido, apercebeu-se que o percurso matinal do seu vizinho, era em tudo idêntico ao da sua esposa. Sorriu.
Satisfeito por ter encontrado uma explicação, Armando, virou-se de barriga para cima, esticou os braços e assim ficou esperando a sua hora de levantar.
Todos os dias observa-mos e somos observados por centenas de pessoas, sem nos apercebermos.
Mas há alturas em que temos a nítida sensação de, não só de estarmos a ser observados, como também de que não estamos sozinhos.
Armando é uma pessoa normal, como qualquer pessoa normal. Gosta de ler, ir ao cinema, de estar com os amigos. Enfim, faz coisas normais de pessoas normais. No entanto, Armando, tem uma particularidade, que embora não o afastando de ser uma pessoa normal, dá-lhe uma certa individualidade. Armando tem uma predilecção quase mórbida pelo sobrenatural, pelo terror, pelo suspense, com a particularidade de realmente acreditar que não andamos sozinhos neste mundo.
Armando é casado. E embora não exista nenhuma discrepância de conjugação de horários, com a mulher, dias há, em que essas discrepâncias acontecem.
Foi o caso de um dia destes, em que a esposa ficou de fazer um horário que implicaria entrar ao serviço ás 8:30. Como tal teria de se levantar ás 6:30, para cumprir tal exigência.
O horário de Armando, bastante mais flexível, permite-lhe levantar-se apenas ás 8:00, de modo que quando as esposa se levantou Armando continuou deitado na cama, embora já não estivesse completamente adormecido. Armando apercebia-se, muito ao longe, de todos os os passos da mulher.
O estremecer do colchão quando esta se levantou, os passos até à porta do quarto, o abrir da e fechar da porta, o caminhar até à cozinha, o acender do esquentador, o abrir o roupeiro do corredor, o caminhar de volta para a casa de banho. Armando, lá muito ao longe, conseguia ver todo percurso realizado pela esposa.
Antes de saírem de casa, Armando e a mulher têm por hábito despedirem-se um do outro com um beijo, quer o outro esteja a dormir ou não, e esse dia não foi excepção. Armando, mais uma vez ouviu a porta do quarto abrir-se, e o aproximar da mulher da cama. Sentiu a pressão no colchão quando esta pousou o joelho sobre o mesmo de modo a poder-se esticar e beijar Armando. Armando, sentiu o aproximar da esposa seguido do calor dos seus lábios no rosto.
Exprimiu um breve sorriso de satisfação, e mais uma vez sentiu-a afastar-se e fechar a porta do quarto. Ouviu as chaves a rodarem na fechadura da porta da rua, e o fechar da mesma.
Armando, moveu-se, virou-se de barriga para cima, esticou os braços, e assim ficou esperando a sua hora de levantar.
Aos poucos Armando começou a sentir aquele entorpecer que sentimos adormecemos, e deixou-se levar pelo mesmo. Afinal ainda faltava uma meia hora para se levantar.
Lá longe ouvia os passos da esposa pela casa na sua azáfama matinal. Ouvia-a na cozinha, o caminhar para a casa de banho, o abrir do roupeiro do corredor. Armando lá muito ao longe apercebia-se de todos os movimentos da esposa. Todos os movimentos da esposa? Como, se esta já tinha saído? Armando fez um esforço e conseguiu sair do torpor em que se encontrava, embora tivesse a estranha sensação de não se puder mover e tão pouco abrir os olhos. Deixou-se estar quieto e aprofundou os sentidos. Continuava a sentir a presença da esposa em casa, mas tal não podia ser, pois esta já tinha saído. Ter-se ia esquecido de algo? Armando fez um esforço enorme para tentar perceber o que se estava a passar, mas sem êxito. Continuava a não se conseguir mover, nem abrir os olhos. Quando tentou chamar pela mulher, nada saiu da sua boca. Nem o mais pequeno som. De repente sentiu que a porta do quarto se abria. Armando ficou um pouco apreensivo, mas estranhamente mantinha-se calmo, embora o seu coração tivesse disparado violentamente. Armando sentiu uma aproximação da cama, sentiu a pressão no colchão, sentiu um aproximar de si, e mesmo antes de sentir o calor do beijo, que não podia ser da sua esposa, Armando, num esforço imenso, conseguiu que um som gutural sai-se da sua boca, simultaneamente que esticava os braços no sentido de evitar o contacto com o que quer ali se encontrasse.
A sensação da presença desapareceu, Armando manteve-se imóvel por alguns segundos até que abriu os olhos. Lentamente virou a cabeça para os dois lados, pois a cama encontrava-se a meio do quarto, mas nada viu de invulgar. A porta estava fechada, e o quarto encontrava-se sob a penumbra habitual da manhã. Lentamente, Armando, levantou-se, abriu as cortinas, levantou os estores, e imediatamente o quarto foi invadido por uma luz imensa. O dia estava limpo, e o sol brilhava com força. Armando deixou-se ficar ali alguns segundos, sentindo o calor do sol no rosto.
Alguns dias mais tarde, Armando, deitado na cama, depois de a esposa ter sido, apercebeu-se que o percurso matinal do seu vizinho, era em tudo idêntico ao da sua esposa. Sorriu.
Satisfeito por ter encontrado uma explicação, Armando, virou-se de barriga para cima, esticou os braços e assim ficou esperando a sua hora de levantar.
terça-feira, 6 de setembro de 2005
A Pessoa
A pessoa sempre tinha sonhado ser actor, não o era, mas também nunca tinha feito nada por isso. Era daqueles sonhos que não existem para ser concretizados, mas sim para serem unicamente sonhados, e a pessoa estava satisfeita com isso, além do mais, era para si impensável submeter-se a castings e essas coisas. No entanto, um dia pensou que seria interessante concretizar um pouco do seu sonho, mas na vida real, ser um actor da vida real!
Entusiasmado com a ideia de ser outro, tinha apenas que criar a sua personagem e encarná-la. Assim que começou a pensar nisto decidiu logo que a personagem não iria partilhar a exagerada timidez da pessoa, seria audaz, não teria qualquer problema em falar alto em sítios cheios de gente. A pessoa divertia-se bastante fingindo-se de burro e achou que seria divertido embrutecer a personagem, teria no entanto que tentar não exagerar de forma a manter a credibilidade. Por outro lado, havia traços da sua personalidade que achou bem incluir também na personagem, como o seu sagaz sentido de humor, que tentaria que não parecesse inteligente e a sua simpatia e boa disposição que tentaria exacerbar ao máximo. Pensou também em criar gostos diferentes para a personagem, mas achou que seria complicado e custoso de suportar pelo que decidiu deixar a questão dos gostos pessoais em aberto e nos momentos chave decidiria se a personagem iria partilhar a opinião da pessoa ou se, pelo contrário, inventaria no momento uma opinião para a personagem. Pensou até que o que já tinha era suficiente para iniciar a representação e que poderia depois ir aprofundando a personagem com o tempo.
Fechou os olhos e treinou a metamorfose, o momento em que deixava de ser a pessoa e se tornava a personagem, e depois de interiorizar o que imaginava ser algo como uma nova máscara, saiu para beber um café e testar o seu projecto. Embora não tivesse alterado nada no seu aspecto físico, tinha conseguido interiorizar a personagem de tal forma que se sentia realmente diferente, tinha até a estranha sensação de que se se visse ao espelho conseguiria ver a personagem e não a pessoa, mas isto era obviamente absurdo. Entrou no café, pediu o respectivo, num volume que não deixou dúvidas que todos os presentes tinham ouvido e, pensando que a personagem não era de estar ali no seu canto calada e quieta, disparou um “Então e o nosso Benfica?” ao empregado e ficou muito satisfeito por verificar que não só tinha conseguido despoletar uma efusiva conversa sobre futebol, como conseguiu participar nela activamente, e, naturalmente, no tom de voz adequado ao tema. Saiu com um ar triunfante, tinha tido a prova que precisava, iria conseguir levar a sua ideia a cabo!
No dia seguinte a pessoa levantou-se, vestiu a sua personagem e, deveras bem disposto, foi trabalhar. Tinha consciência que dificilmente alguém iria estranhar sobremaneira a mudança, pois, embora já lá trabalhasse há vários meses, não se podia dizer que tivesse uma relação pessoal com alguém, nunca tinha passado da conversa de circunstância e nas situações em que a isso era obrigado; não é que fosse anti-social, simplesmente era uma pessoa que tinha reservas em dar-se a conhecer, além de que o repugnava manter conversas fúteis, em particular as que eram relacionadas com as condições climatéricas. Da mesma forma, embora parecesse que não tinha amigos, tinha-os, mas era sempre uma relação longínqua, um telefonema ou um jantar de vez em quando para manter o contacto e voltava à sua vida solitária. Assim, o máximo que poderia acontecer era as pessoas acharem-no mais comunicativo e seguro de si, mas não seria o suficiente para desconfiarem que a pessoa estava apenas a representar um papel.
Entrou no edifício cumprimentando as pessoas da recepção, mesmo não estando ninguém a olhar para ele, coisa que para a pessoa era suficiente para entrar despercebido, foi desejando bom-dia a toda a gente por quem passou e ao chegar ao seu lugar emitiu um vigoroso e afável cumprimento a todas as pessoas da sala. Reparou que houve quem fizesse uma expressão de estranheza, mas com o passar dos dias toda a gente passou a considerar normal o seu comportamento. Uma das coisas que o deixava orgulhoso dos seus dotes de actor era o facto de ter deixado de usar o telefone para falar com pessoas na mesma sala, passando a falar sem problemas com volume suficiente para ser ouvido do outro lado da sala, que não era pequena, coisa que só a personagem poderia fazer, já que a timidez da pessoa a sempre tinha impedido.
Com o tempo a personagem ganhou forma, adensou-se, e com o passar das semanas a pessoa começou a perceber que se sentia curiosamente confortável representando a sua personagem, era compreensível que a autoconfiança e a presença da personagem tivessem melhorado bastante a sua relação com os outros, mas a verdade é que o conforto que sentia ia muito além disso. Sentia-se menos vulnerável pelo facto de não se estar a expor, não estava a dar a conhecer o seu verdadeiro eu e assim não tinha nada a temer, as opiniões e críticas que eventualmente lhe fizessem seriam à personagem e não à pessoa e assim a pessoa estava completamente protegida dos julgamentos, muitas vezes sumários, que o ser humano tem tendência a fazer em relação aos outros. Era como se a pessoa estivesse invulnerável dentro de uma carapaça que era a personagem. Até o facto de ter decidido que a personagem seria pouco inteligente funcionou como uma óptima protecção, bastaram algumas imbecilidades bem colocadas para toda a gente passar a não esperar nem exigir dele nada de complexo e, depois de ter conseguido vencer o desconforto que sentia ao verificar que mais alguém ficou a pensar que a pessoa era um idiota, mesmo apesar de não gostar muito de aturar o paternalismo de alguns, passou a ser infinitamente mais fácil impressionar os outros. Bastava-lhe dizer ou compreender algo que fosse pouco mais que básico para que achassem que estava a fazer um óptimo trabalho!
A pessoa sentia-se realmente abismada em como o facto de estar a representar um néscio ter facilitado tanto a sua vida. Constatou que efectivamente a inteligência é inversamente proporcional à felicidade e teve mesmo momentos em que desejou ser realmente burro. Ponderava se a humanidade teria mesmo ganho alguma coisa com a evolução da inteligência humana, podíamos não ter o conforto da vida moderna, mas cada vez acreditava mais que seríamos todos muito mais felizes. No entanto, dado que não tencionava submeter-se a nenhuma intervenção cirúrgica de forma a diminuir a sua inteligência, que certamente algum cirurgião cerebral experimentalista aceitaria executar, nem tampouco introduzir, pelo nariz, um lápis de cera no crânio; afastava estes pensamentos dizendo para si próprio que já que tínhamos evoluído até aqui, ao ponto de sermos infelizes, não valeria a pena dar passos para trás, só nos restaria continuar a evoluir, tentar evoluir para além da infelicidade.
Os meses passaram e a personagem estava cada vez mais cravada na pessoa, já não requeria qualquer esforço representá-la, e a pessoa continuava confortavelmente acomodada na sua redoma impenetrável, como quem observa o mundo de fora e a cada momento que passava a personagem aproximava-se tanto do mundo como a pessoa se afastava, e para esta tudo estava bem. Mas um dia alguém telefonou, era um amigo, alguém quem considerava realmente um amigo, com quem tinha uma relação sem exigências que conseguia manter sem se sentir obrigado a nada, mas que como tal, tinha períodos de afastamento. Ficou contente com o telefonema e atendeu bem-disposto. Mas a alguns minutos da conversa o amigo achou a pessoa estranha, e embora não falassem há já bastante tempo, a relação entre os dois nunca se tinha alterado, aliás, o facto de, mesmo após longos períodos sem contacto a relação se manter inalterada era uma coisa que estimava muito na sua amizade com a pessoa, era uma coisa que lhe dava segurança, pois sabia que quando algum deles tomasse a iniciativa de dizer qualquer coisa ao outro, que iriam recomeçar de onde tinham parado e o tempo decorrido não os faria sentirem-se menos confortáveis um com o outro. Mas desta vez havia algo errado, a pessoa parecia-lhe realmente diferente, lembrou-se da altura em que andavam muito juntos e que se divertiam desmesuradamente com a pessoa a fazer-se de estúpida para os empregados dos cafés ou restaurantes, e era impressionante a resistência que eles tinham a achar que estavam a ser gozados, em pontos em que o amigo assistia já incrédulo, eles continuavam cheios de paciência, pensando sempre que a pessoa era realmente bastante limitada e, embora talvez se questionassem se não seria uma farsa, a verdade é que a coisa nunca correu mal. Mas a pessoa nunca tinha feito isso com o amigo, o amigo achava até que era um dos poucos felizardos que consegui conhecer realmente a pessoa, mas este telefonema fê-lo duvidar de tudo isto. Perguntou-lhe se estava mesmo tudo bem, se se sentia bem, que o achava diferente. A pessoa tinha já a boca aberta para responder que estava tudo óptimo quando se apercebeu que, sem que tivesse qualquer controle sobre isso e não o tendo decidido fazer, quem falava ao telefone com o seu amigo não era a pessoa, era a sua personagem, já tão intrincada em si que estava a ter sérias dificuldades em impedir que ela emergisse. Conseguiu responder que talvez não estivesse tudo bem, que lhe explicaria tudo mas não podia ser naquele momento, precisava de pensar e ligar-lhe-ia mais tarde. Desligou o telefone e encostou-se a reflectir sobre o que estava a acontecer. Não era preciso ser um génio para perceber, tinha encarnado a personagem de uma forma tão intensa e durante tanto tempo, durante o qual, como não tinha tido contactos pessoais, raramente foi a pessoa. Nunca pensou que tal podia acontecer, mas a verdade é que estava tão confortavelmente habituado a ser a personagem que se tinha esquecido de ser a pessoa! Uma sensação de pânico começou a apoderar-se dele à medida que tomava consciência de que já não tinha a certeza de se conhecer a si próprio. Estava literalmente a tornar-se a personagem e percebeu que já não conseguia ser naturalmente a pessoa outra vez, tinha já até dúvidas sobre se um traço de personalidade pertenceria à pessoa ou à personagem. Enquanto o pânico aumentava teve a certeza que, mesmo com toda a segurança que lhe oferecia, não queria tornar-se a personagem, não queria que a personagem se tornasse uma pessoa, a sua pessoa, queria ser a pessoa que era dantes. Aliás, se a personagem passasse a ser uma pessoa a segurança da carapaça desapareceria. Por uma fracção de segundo pensou que poderia criar uma nova personagem e continuar o ciclo, mas percebeu que se sentia vazio, sentia que tinha deixado de ser uma pessoa dentro da redoma de uma personagem para passar a ser apenas a redoma, uma casca vazia, e que a única maneira de anular o vazio que sentia era voltar a ser a pessoa, a pessoa que era na realidade. Com o pânico já algo controlado consegui pensar claramente e aceitou que dada a confusão de que sofria, seria muito difícil conseguir sozinho ser a pessoa outra vez. Cumprindo o prometido, telefonou ao amigo dizendo que gostava que se encontrassem porque preferia contar-lhe pessoalmente o que se passava e que achava que iria precisar da sua ajuda. O amigo, identificando medo na voz da pessoa propôs que jantassem juntos nesse dia e poderiam falar à vontade. A personagem acedeu e durante o jantar, num esforço para ser a pessoa contou ao amigo tudo desde o princípio. Pediu ao amigo para passar algum tempo com ele e o ajudasse a identificar os momentos e atitudes em que estava a ser a personagem e os em que estava a ser a pessoa, ao que o amigo acedeu.
Foi um trabalho árduo a princípio, mas com o amigo a servir de âncora à realidade, a pessoa começou a conseguir impor-se à personagem, de tal forma que começou de novo a ganhar coragem para, quando saíam, se divertir com o amigo, como outrora, a representar pequenos papeis, no entanto nunca deixou de se questionar se não teria algo da pessoa desaparecido para sempre. A verdade é que a pessoa sonhava em ser actor, era daqueles sonhos que não existem para ser concretizados, mas sim para serem unicamente sonhados.
Entusiasmado com a ideia de ser outro, tinha apenas que criar a sua personagem e encarná-la. Assim que começou a pensar nisto decidiu logo que a personagem não iria partilhar a exagerada timidez da pessoa, seria audaz, não teria qualquer problema em falar alto em sítios cheios de gente. A pessoa divertia-se bastante fingindo-se de burro e achou que seria divertido embrutecer a personagem, teria no entanto que tentar não exagerar de forma a manter a credibilidade. Por outro lado, havia traços da sua personalidade que achou bem incluir também na personagem, como o seu sagaz sentido de humor, que tentaria que não parecesse inteligente e a sua simpatia e boa disposição que tentaria exacerbar ao máximo. Pensou também em criar gostos diferentes para a personagem, mas achou que seria complicado e custoso de suportar pelo que decidiu deixar a questão dos gostos pessoais em aberto e nos momentos chave decidiria se a personagem iria partilhar a opinião da pessoa ou se, pelo contrário, inventaria no momento uma opinião para a personagem. Pensou até que o que já tinha era suficiente para iniciar a representação e que poderia depois ir aprofundando a personagem com o tempo.
Fechou os olhos e treinou a metamorfose, o momento em que deixava de ser a pessoa e se tornava a personagem, e depois de interiorizar o que imaginava ser algo como uma nova máscara, saiu para beber um café e testar o seu projecto. Embora não tivesse alterado nada no seu aspecto físico, tinha conseguido interiorizar a personagem de tal forma que se sentia realmente diferente, tinha até a estranha sensação de que se se visse ao espelho conseguiria ver a personagem e não a pessoa, mas isto era obviamente absurdo. Entrou no café, pediu o respectivo, num volume que não deixou dúvidas que todos os presentes tinham ouvido e, pensando que a personagem não era de estar ali no seu canto calada e quieta, disparou um “Então e o nosso Benfica?” ao empregado e ficou muito satisfeito por verificar que não só tinha conseguido despoletar uma efusiva conversa sobre futebol, como conseguiu participar nela activamente, e, naturalmente, no tom de voz adequado ao tema. Saiu com um ar triunfante, tinha tido a prova que precisava, iria conseguir levar a sua ideia a cabo!
No dia seguinte a pessoa levantou-se, vestiu a sua personagem e, deveras bem disposto, foi trabalhar. Tinha consciência que dificilmente alguém iria estranhar sobremaneira a mudança, pois, embora já lá trabalhasse há vários meses, não se podia dizer que tivesse uma relação pessoal com alguém, nunca tinha passado da conversa de circunstância e nas situações em que a isso era obrigado; não é que fosse anti-social, simplesmente era uma pessoa que tinha reservas em dar-se a conhecer, além de que o repugnava manter conversas fúteis, em particular as que eram relacionadas com as condições climatéricas. Da mesma forma, embora parecesse que não tinha amigos, tinha-os, mas era sempre uma relação longínqua, um telefonema ou um jantar de vez em quando para manter o contacto e voltava à sua vida solitária. Assim, o máximo que poderia acontecer era as pessoas acharem-no mais comunicativo e seguro de si, mas não seria o suficiente para desconfiarem que a pessoa estava apenas a representar um papel.
Entrou no edifício cumprimentando as pessoas da recepção, mesmo não estando ninguém a olhar para ele, coisa que para a pessoa era suficiente para entrar despercebido, foi desejando bom-dia a toda a gente por quem passou e ao chegar ao seu lugar emitiu um vigoroso e afável cumprimento a todas as pessoas da sala. Reparou que houve quem fizesse uma expressão de estranheza, mas com o passar dos dias toda a gente passou a considerar normal o seu comportamento. Uma das coisas que o deixava orgulhoso dos seus dotes de actor era o facto de ter deixado de usar o telefone para falar com pessoas na mesma sala, passando a falar sem problemas com volume suficiente para ser ouvido do outro lado da sala, que não era pequena, coisa que só a personagem poderia fazer, já que a timidez da pessoa a sempre tinha impedido.
Com o tempo a personagem ganhou forma, adensou-se, e com o passar das semanas a pessoa começou a perceber que se sentia curiosamente confortável representando a sua personagem, era compreensível que a autoconfiança e a presença da personagem tivessem melhorado bastante a sua relação com os outros, mas a verdade é que o conforto que sentia ia muito além disso. Sentia-se menos vulnerável pelo facto de não se estar a expor, não estava a dar a conhecer o seu verdadeiro eu e assim não tinha nada a temer, as opiniões e críticas que eventualmente lhe fizessem seriam à personagem e não à pessoa e assim a pessoa estava completamente protegida dos julgamentos, muitas vezes sumários, que o ser humano tem tendência a fazer em relação aos outros. Era como se a pessoa estivesse invulnerável dentro de uma carapaça que era a personagem. Até o facto de ter decidido que a personagem seria pouco inteligente funcionou como uma óptima protecção, bastaram algumas imbecilidades bem colocadas para toda a gente passar a não esperar nem exigir dele nada de complexo e, depois de ter conseguido vencer o desconforto que sentia ao verificar que mais alguém ficou a pensar que a pessoa era um idiota, mesmo apesar de não gostar muito de aturar o paternalismo de alguns, passou a ser infinitamente mais fácil impressionar os outros. Bastava-lhe dizer ou compreender algo que fosse pouco mais que básico para que achassem que estava a fazer um óptimo trabalho!
A pessoa sentia-se realmente abismada em como o facto de estar a representar um néscio ter facilitado tanto a sua vida. Constatou que efectivamente a inteligência é inversamente proporcional à felicidade e teve mesmo momentos em que desejou ser realmente burro. Ponderava se a humanidade teria mesmo ganho alguma coisa com a evolução da inteligência humana, podíamos não ter o conforto da vida moderna, mas cada vez acreditava mais que seríamos todos muito mais felizes. No entanto, dado que não tencionava submeter-se a nenhuma intervenção cirúrgica de forma a diminuir a sua inteligência, que certamente algum cirurgião cerebral experimentalista aceitaria executar, nem tampouco introduzir, pelo nariz, um lápis de cera no crânio; afastava estes pensamentos dizendo para si próprio que já que tínhamos evoluído até aqui, ao ponto de sermos infelizes, não valeria a pena dar passos para trás, só nos restaria continuar a evoluir, tentar evoluir para além da infelicidade.
Os meses passaram e a personagem estava cada vez mais cravada na pessoa, já não requeria qualquer esforço representá-la, e a pessoa continuava confortavelmente acomodada na sua redoma impenetrável, como quem observa o mundo de fora e a cada momento que passava a personagem aproximava-se tanto do mundo como a pessoa se afastava, e para esta tudo estava bem. Mas um dia alguém telefonou, era um amigo, alguém quem considerava realmente um amigo, com quem tinha uma relação sem exigências que conseguia manter sem se sentir obrigado a nada, mas que como tal, tinha períodos de afastamento. Ficou contente com o telefonema e atendeu bem-disposto. Mas a alguns minutos da conversa o amigo achou a pessoa estranha, e embora não falassem há já bastante tempo, a relação entre os dois nunca se tinha alterado, aliás, o facto de, mesmo após longos períodos sem contacto a relação se manter inalterada era uma coisa que estimava muito na sua amizade com a pessoa, era uma coisa que lhe dava segurança, pois sabia que quando algum deles tomasse a iniciativa de dizer qualquer coisa ao outro, que iriam recomeçar de onde tinham parado e o tempo decorrido não os faria sentirem-se menos confortáveis um com o outro. Mas desta vez havia algo errado, a pessoa parecia-lhe realmente diferente, lembrou-se da altura em que andavam muito juntos e que se divertiam desmesuradamente com a pessoa a fazer-se de estúpida para os empregados dos cafés ou restaurantes, e era impressionante a resistência que eles tinham a achar que estavam a ser gozados, em pontos em que o amigo assistia já incrédulo, eles continuavam cheios de paciência, pensando sempre que a pessoa era realmente bastante limitada e, embora talvez se questionassem se não seria uma farsa, a verdade é que a coisa nunca correu mal. Mas a pessoa nunca tinha feito isso com o amigo, o amigo achava até que era um dos poucos felizardos que consegui conhecer realmente a pessoa, mas este telefonema fê-lo duvidar de tudo isto. Perguntou-lhe se estava mesmo tudo bem, se se sentia bem, que o achava diferente. A pessoa tinha já a boca aberta para responder que estava tudo óptimo quando se apercebeu que, sem que tivesse qualquer controle sobre isso e não o tendo decidido fazer, quem falava ao telefone com o seu amigo não era a pessoa, era a sua personagem, já tão intrincada em si que estava a ter sérias dificuldades em impedir que ela emergisse. Conseguiu responder que talvez não estivesse tudo bem, que lhe explicaria tudo mas não podia ser naquele momento, precisava de pensar e ligar-lhe-ia mais tarde. Desligou o telefone e encostou-se a reflectir sobre o que estava a acontecer. Não era preciso ser um génio para perceber, tinha encarnado a personagem de uma forma tão intensa e durante tanto tempo, durante o qual, como não tinha tido contactos pessoais, raramente foi a pessoa. Nunca pensou que tal podia acontecer, mas a verdade é que estava tão confortavelmente habituado a ser a personagem que se tinha esquecido de ser a pessoa! Uma sensação de pânico começou a apoderar-se dele à medida que tomava consciência de que já não tinha a certeza de se conhecer a si próprio. Estava literalmente a tornar-se a personagem e percebeu que já não conseguia ser naturalmente a pessoa outra vez, tinha já até dúvidas sobre se um traço de personalidade pertenceria à pessoa ou à personagem. Enquanto o pânico aumentava teve a certeza que, mesmo com toda a segurança que lhe oferecia, não queria tornar-se a personagem, não queria que a personagem se tornasse uma pessoa, a sua pessoa, queria ser a pessoa que era dantes. Aliás, se a personagem passasse a ser uma pessoa a segurança da carapaça desapareceria. Por uma fracção de segundo pensou que poderia criar uma nova personagem e continuar o ciclo, mas percebeu que se sentia vazio, sentia que tinha deixado de ser uma pessoa dentro da redoma de uma personagem para passar a ser apenas a redoma, uma casca vazia, e que a única maneira de anular o vazio que sentia era voltar a ser a pessoa, a pessoa que era na realidade. Com o pânico já algo controlado consegui pensar claramente e aceitou que dada a confusão de que sofria, seria muito difícil conseguir sozinho ser a pessoa outra vez. Cumprindo o prometido, telefonou ao amigo dizendo que gostava que se encontrassem porque preferia contar-lhe pessoalmente o que se passava e que achava que iria precisar da sua ajuda. O amigo, identificando medo na voz da pessoa propôs que jantassem juntos nesse dia e poderiam falar à vontade. A personagem acedeu e durante o jantar, num esforço para ser a pessoa contou ao amigo tudo desde o princípio. Pediu ao amigo para passar algum tempo com ele e o ajudasse a identificar os momentos e atitudes em que estava a ser a personagem e os em que estava a ser a pessoa, ao que o amigo acedeu.
Foi um trabalho árduo a princípio, mas com o amigo a servir de âncora à realidade, a pessoa começou a conseguir impor-se à personagem, de tal forma que começou de novo a ganhar coragem para, quando saíam, se divertir com o amigo, como outrora, a representar pequenos papeis, no entanto nunca deixou de se questionar se não teria algo da pessoa desaparecido para sempre. A verdade é que a pessoa sonhava em ser actor, era daqueles sonhos que não existem para ser concretizados, mas sim para serem unicamente sonhados.
Ali estava eu deitado, num cenário de alva brancura, rodeado por vultos de branco vestidos, de volta de uma parafernália de aparelhos cheios de luzes e um constante bip, bip, como se de um ritmo cardíaco se tratasse.
Não me lembro de como aqui vim parar. A última recordação que tenho, foi de estar a passear no parque com as crianças, e sentir uma violenta dor no peito, seguida de escuridão. Quando acordei já aqui me encontrava. Suponho que sejam médicos ou enfermeiros, os vultos que me rodeiam. Parece que estou num hospital. Mas porquê?
Até então nunca tinha tido problemas de saúde. Sempre fui saudável, "...uma saúde de ferro." Diziam. E agora estou aqui sem preceber porquê, nem como.
Uma avalanche de imagens invade-me a cabeça. Vejo as crianças, o Miguel, e a Rute. Vejo a Sara, a mãe. São a minha família. A minha única família.
A maca onde me encontro começa-se a mover. A dor no peito intensificou-se e o bip, bip aumentou de ritmo.
Ao sair da sala em que me encontrava vejo que os miúdos, acompanhados da mãe, estão ali. O Miguel, o mais pequeno chora agarrado à mãe, que o tenta acalmar, embora também ela chore. A Rute aproxima-se, com lágrimas nos olhos, e passa-me a mão na cabeça, em quanto continuo o percursso não sei para onde. Em breve só ouço o choro do mais pequeno, que continuava agarrado à mãe a chorar.
Entro numa outra sala em tudo idêntica à primeira, não fossem os projectores de alta voltagem que me cegam a vista. Fecho os olhos. Fico quieto, apenas a ouvir . Ouço o barulho de passos, de metal , objectos a serem movidos de um lado para o outro. Alguém dá instruções, outro alguém as acata. Depois, só silêncio. Apenas o , bip, bip, se mantém a um ritmo acelerado. Ouço vozes. Ouço-as como se estivessem na sala ao lado, e não ali comigo. Sinto que algo me envolve o nariz e a boca. Instintivamente abano a cabeça no intuito de me livrar daquilo, mas imediatamente sinto uma pressão na cabeça que me impede o movimento, ao mesmo tempo que ouço falarem comigo. "Está tudo bem, calma". Sinto um a caricia na cabeça. Fico calmo, embora o coração pareça querer saltar-me do peito, e sinta os pulmões a arder. Mais uma vez ouço vozes. E fico finalmente a saber o que realmente se passou.
Fui atingido por uma bala. Parece que assaltaram o quiosque de revistas do parque, e o assaltante fugiu a pé pelo parque. Dizem que o tentei deter, e o assaltante deu-me um tiro à queima roupa. Parece que o apanharam, mas a mim parece-me mais que quem foi apanhado fui eu. " Não há nada a fazer." Ouço dizer. E mais uma vez sou invadido por uma montanha de imagens das crianças e da Sara, e desejo do fundo do meu ser , que a minha partida seja rápida, e que a Sara e os miúdos prossigam com as suas vidas sem receios. Recordarei para sempre, os momentos que passámos juntos. As férias, os longos passeios de fim de semana, as brincadeiras com as crianças, os serões com a Sara no sofá frente á televisão, as atribuladas manhãs com as crianças, com a Sara sempre a apressar os miúdos para a escola.
Ainda me lembro do dia em que os conheci. Era apenas um cachorro.
Não me lembro de como aqui vim parar. A última recordação que tenho, foi de estar a passear no parque com as crianças, e sentir uma violenta dor no peito, seguida de escuridão. Quando acordei já aqui me encontrava. Suponho que sejam médicos ou enfermeiros, os vultos que me rodeiam. Parece que estou num hospital. Mas porquê?
Até então nunca tinha tido problemas de saúde. Sempre fui saudável, "...uma saúde de ferro." Diziam. E agora estou aqui sem preceber porquê, nem como.
Uma avalanche de imagens invade-me a cabeça. Vejo as crianças, o Miguel, e a Rute. Vejo a Sara, a mãe. São a minha família. A minha única família.
A maca onde me encontro começa-se a mover. A dor no peito intensificou-se e o bip, bip aumentou de ritmo.
Ao sair da sala em que me encontrava vejo que os miúdos, acompanhados da mãe, estão ali. O Miguel, o mais pequeno chora agarrado à mãe, que o tenta acalmar, embora também ela chore. A Rute aproxima-se, com lágrimas nos olhos, e passa-me a mão na cabeça, em quanto continuo o percursso não sei para onde. Em breve só ouço o choro do mais pequeno, que continuava agarrado à mãe a chorar.
Entro numa outra sala em tudo idêntica à primeira, não fossem os projectores de alta voltagem que me cegam a vista. Fecho os olhos. Fico quieto, apenas a ouvir . Ouço o barulho de passos, de metal , objectos a serem movidos de um lado para o outro. Alguém dá instruções, outro alguém as acata. Depois, só silêncio. Apenas o , bip, bip, se mantém a um ritmo acelerado. Ouço vozes. Ouço-as como se estivessem na sala ao lado, e não ali comigo. Sinto que algo me envolve o nariz e a boca. Instintivamente abano a cabeça no intuito de me livrar daquilo, mas imediatamente sinto uma pressão na cabeça que me impede o movimento, ao mesmo tempo que ouço falarem comigo. "Está tudo bem, calma". Sinto um a caricia na cabeça. Fico calmo, embora o coração pareça querer saltar-me do peito, e sinta os pulmões a arder. Mais uma vez ouço vozes. E fico finalmente a saber o que realmente se passou.
Fui atingido por uma bala. Parece que assaltaram o quiosque de revistas do parque, e o assaltante fugiu a pé pelo parque. Dizem que o tentei deter, e o assaltante deu-me um tiro à queima roupa. Parece que o apanharam, mas a mim parece-me mais que quem foi apanhado fui eu. " Não há nada a fazer." Ouço dizer. E mais uma vez sou invadido por uma montanha de imagens das crianças e da Sara, e desejo do fundo do meu ser , que a minha partida seja rápida, e que a Sara e os miúdos prossigam com as suas vidas sem receios. Recordarei para sempre, os momentos que passámos juntos. As férias, os longos passeios de fim de semana, as brincadeiras com as crianças, os serões com a Sara no sofá frente á televisão, as atribuladas manhãs com as crianças, com a Sara sempre a apressar os miúdos para a escola.
Ainda me lembro do dia em que os conheci. Era apenas um cachorro.
quarta-feira, 31 de agosto de 2005
"Você é teimoso!"
Chamaram-me teimoso… Mas afinal o que é ser teimoso? É bom ou é mau ser teimoso? Normalmente as pessoas chamam teimoso de forma depreciativa mas porque as outras não fazem o que elas querem, mas quem está a ser teimoso nessa situação? Quem faz o que quer ou quem quer que os outros façam o que quer? Ser teimoso é bom! Quer dizer que somos firmes nos nossos princípios e nas nossas convicções, quer dizer que pensamos, que não fazemos tudo o que nos mandam só porque nos mandaram! Sou teimoso, sim, mas conscientemente, orgulhosamente até!
sexta-feira, 12 de agosto de 2005
Debaixo do grande cedro
A Gabriela era artista plástica, havia quem a achasse excêntrica, esquisita e até mesmo anormal, mas na realidade havia basicamente uma coisa que a distinguia da maioria das demais pessoas. Esta coisa era o seu imensurável ódio pelo conceito geral de posse material, e pelo dinheiro em particular. Já desde tenra idade tinha decidido nunca mais tocar em dinheiro. De facto, a Gabriela era artista plástica, mas era uma coisa difícil de provar, visto que quando terminava uma obra, apercebia-se que a partir desse momento a obra tinha deixado de ser meramente arte, tinha passado a ser um bem material, ainda por cima passível de ser comprado, vendido, avaliado. Claro que isso era uma coisa que só poderia eventualmente acontecer após a sua morte, mas a ideia afectava-a de tal forma que, apesar de poder ter trabalhado durante meses naquela peça, numa questão de minutos após ser concluída, a peça era completamente destruída! Desta forma, a única possibilidade existente de ver um trabalho da Gabriela era ir a casa da D. Felisberta, onde a Gabriela tinha um dia pintado um mural, conseguiu convencer-se que dado que não tinha mobilidade poderia considerar que a obra não existia materialmente, certamente ninguém iria arrancar uma parede e vendê-la, e foi uma forma de agradecer à vizinha todas as vezes que lhe levava comida. Dadas as suas convicções levava a vida mais simples que se pode imaginar, além de trabalhar nas suas esculturas feitas com materiais que trazia da rua, gastava o resto do seu tempo a ler livros emprestados e a fazer favores e tarefas domésticas às vizinhas como forma de pagar a comida que lhe davam, não que elas o exigissem, era a Gabriela que impunha esta retribuição que nem achava suficiente. Um dia, não sabemos bem se sentiu que já estava a abusar da bondade das vizinhas ou se simplesmente decidiu migrar, desapareceu. Na arrecadação onde vivia ficaram apenas os livros emprestados e os restos irreconhecíveis da sua última obra. É impossível saber ao certo, mas algo me faz acreditar que seguiu para Leste.
O Orlando era um rapaz normal, embora, naturalmente, não seja completamente verdade, pode até dizer-se que a sua vida não teve nada digno de nota até àquela manhã de Março em que se apercebeu do aparecimento de uma pequena verruga na testa. Sem poder adivinhar que aquela verruga era o início de uma mudança radical na sua vida, nem sequer lhe deu importância. Começou, no entanto a ficar alarmado quando na manhã seguinte, não só a verruga do dia anterior estava maior, como uma nova verruga tinha aparecido, desta vez por baixo do lábio inferior. Os meses seguintes foram divididos entre correrias de um médico para outro e o aparecimento ou crescimento das verrugas que cobriam já quase completamente o seu rosto.
Foram tempos terríveis para o Orlando, a ver a sua face desaparecer gradualmente dando lugar ao monstro que o atormentava do outro lado do espelho, mas o que ele não sabia é que pior ainda estava para vir. Depois de tentados todos os tratamentos e verificando que, apesar de tudo, a sua saúde estava óptima e o problema era puramente estético, o Orlando voltou para casa. Foi pior porque o apoio e a força que estava confiante que iria encontrar nos amigos não estava lá. Parecia que tinha mudado de identidade, as pessoas ficavam claramente pouco à vontade perto dele, os sentimentos pouco passavam de pena ou discriminação, nunca mais foi convidado para nada e, desiludido com o ser humano, aos poucos acabou por deixar de falar com os outros e passava os seus dias no café, a ler ou a escrevinhar qualquer coisa.
A gota de água foi quando, no café que frequentava há anos, já nem sabia quantos, no café onde se sentia tão à vontade como se estivesse em casa, onde tratava os empregados pelo nome e eles faziam o mesmo com ele, nesse café onde sentia que se podia refugiar dos olhares constantes, lhe pediram cordialmente para evitar lá ir porque afastava a clientela. Foi como uma estocada certeira no coração, boquiaberto a olhar para o dono do café com um ar incrédulo sentiu que não aguentaria mais, sentiu que o golpe tinha sido fatal, não conseguia compreender porque faziam isto, porque tinha a sua vida mudado tanto. Ele continuava a ser a mesma pessoa! Não compreendia como é que uma alteração física podia destruir completamente a sua vida, como é que as pessoas não conseguiam relacionar-se com ele da mesma forma que antes. Ainda com os olhos fixos no dono do café sentiu que ia irromper em lágrimas, mas reuniu todas as suas forças e saiu porta fora. Foi a última vez que o Orlando foi visto por aquelas bandas. Dizem as histórias passadas de boca em boca sobre o selvagem rapaz-verruga que lá morava, que um dia começou a cheirar o ar e assim, de nariz levantado como quem persegue um aroma, foi andando no sentido do sol poente e nunca mais foi visto, mas a verdade é que ninguém sabe ao certo.
O Octávio era daqueles gajos que parece um íman de mulheres, sempre me impressionou o efeito que ele tinha nelas, era impressionante como mudavam assim que o viam, ficavam indefesas, incapazes de controlar os seus impulsos. Claro que havia as que pareciam imunes, mas a maioria delas ficava totalmente parva. É que, ainda por cima, além da sua a figura de Apolo, o Octávio era a boa-disposição personificada, isto fazia dele uma pessoa muito popular entre ambos os sexos, os amigos conseguiam passar horas a ouvi-lo contar histórias das figuras ridículas que as mulheres faziam para o tentar seduzir e normalmente acabavam cheios de dores na barriga e nas bochechas de tanto rir. Mas a verdade é que elas ficavam completamente fora de si e observar este comportamento era já um passatempo dos amigos do Octávio.
O engraçado é que o Octávio não era para aí virado, não me interpretem mal, ele gostava de mulheres, mas procurava algo diferente, provavelmente procurava uma mulher que não se prostrasse aos seus pés, que não perdesse a compostura, uma mulher que visse além do seu aspecto físico. Acreditando plenamente que a sua alma gémea existia, pensou que sendo o mundo tão grande, não poderia perder tempo, estava convicto que o sítio onde estava já tinha nada para lhe oferecer e, com a roupa que tinha no corpo e algum dinheiro no bolso, partiu. Decidiu apanhar o comboio que saísse primeiro quando chegasse à estação e assim fez. E foi assim que o destino o levou para Norte.
A Gisela era afinadora de pianos, provavelmente uma das melhores, nunca usou nada electrónico e ao fim de pouco mais de um ano abdicou completamente do diapasão e passou a afinar unicamente de ouvido. Nunca houve um cliente descontente e muitos deles acabaram por se tornar bons amigos, inclusivamente, podia dizer-se que eram os seus únicos amigos. No entanto, havia clientes mais desinteressados e que ainda nem tinham reparado que a Gisela era cega. O som era a sua vida, não só a sua profissão e os seus tempos livres, já que quando não estava a trabalhar estava a tocar ou ouvir música, mas era o som que a guiava escuridão adentro. Contudo, com o passar dos anos começou a sensação de necessidade de algo mais, algo maior, mais elevado, o Som! Um som tão sublime que uma nota apenas seria capaz de despoletar as mais latentes e majestosas emoções. Não sabia como poderia designar tal som, pelo que chamava-lhe apenas o Som. Ao princípio, quando idealizou que o Som poderia existir pensava que era só uma ideia maluca, mas agora sentia um vazio interior que acreditava poder ser unicamente preenchido pelo Som, e desta forma a sua existência teria que ser real, caso contrário seria como haver um puzzle com uma peça inexistente e isso não tinha sentido, teria que existir algures a peça que a completava.
Certo dia, tinha a Gisela acabado de afinar o fá da terceira oitava quando o cliente, pressionando insistente e repetidamente a respectiva tecla, garantia que tinha um exímio ouvido e constatava claramente que a afinação não estava perfeita. A Gisela, com a máxima calma, levantou-se, guardou as suas poucas ferramentas de trabalho, que não incluíam mais do que duas cunhas uma chave, na pequena bolsa para o efeito, colocou-a no bolso de trás das calças e saiu sem dizer uma palavra. Sem qualquer hesitação foi para casa, preparou uma mochila com alguma roupa e produtos de primeira necessidade e partiu para Sul.
Não sei onde era, mas certamente não havia civilização num raio de muitos quilómetros. Embora bela, a paisagem seria bastante banal não fosse a enorme árvore que se destacava de tudo o resto. Era um cedro, um grande cedro que, embora não fosse muito alto, tinha uma envergadura imponente. Duas pessoas de mãos dadas não conseguiam abraçá-lo e o diâmetro da circunferência formada pelas pontas dos seus ramos atingia vários metros, o seu peso fazia com que as pontas mais longínquas quase tocassem o chão, o que tornava quem estivesse debaixo da sua copa praticamente invisível e bastante abrigado das intempéries. A cerca de um quilómetro do cedro havia um riacho, do outro lado do qual estava uma mata povoada principalmente por pinheiros baixos.
Nesta paisagem, à primeira vista deserta, aparecem quatro pessoas. Quatro pessoas desconhecidas entre si, vindas de quatro direcções distintas, todas dirigindo-se na direcção do grande cedro. Quatro pessoas que, ainda sem o saberem estavam prestes a terminar a sua jornada. A maioria começa, com alguma estranheza, a algumas dezenas de metros a aperceber-se dos outros, mas a Gisela, avançando devagar mas confiante, já sabia há algum tempo que mais três pessoas caminhavam nas redondezas. Tinha até a noção, pelo que conseguia inferir através da variação da amplitude do som dos seus passos, que todos se dirigiam para um ponto comum, onde se encontrariam. Ao chegar à orla da copa do grande cedro foram abrandando, cumprimentando-se entre si com alguma desconfiança, excepto a Gisela, que emitiu um sonoro “Muito boa tarde a todos” e tacteando a ponta dos ramos gatinhou por baixo deles para se sentar encostada ao velho tronco desfrutando a sombra. Não sei se terá sido pela improbabilidade daquelas quatro pessoas desconhecidas se encontrarem naquela sítio recôndito, ou se terão eles sentido algo de inexplicável, mas a verdade é que nenhum deles conseguia fazer-se acreditar que estavam juntos por acaso. E no caso de estarem a conseguir, estava ali aquela rapariga com uma bengala de cego, sentada com um ar confiante, como se soubesse alguma coisa que os outros não sabiam. Não, nada daquilo podia ser obra do acaso!
Acabaram por se sentar todos debaixo da copa do grande cedro, e, embora o Octávio ainda estivesse nitidamente a tentar controlar o choque que a aparência do Orlando tinha provocado em si, a Gabriela olhava-o com uma expressão de fascínio e, passando as mãos pelo seu rosto, coisa que desde que a doença tinha começado ninguém ainda tinha feito sem usar luvas de borracha, exclamou calmamente:
- És tão diferente! Como é que te chamas?
O Orlando, ainda afectado pelo choque, há já bastante tempo que não sentia alguém tratá-lo com tanta naturalidade, respondeu trémulo.
– Orlando. E tu?
– Gabriela. E vocês?
Perguntou virando-se para os outros, que responderam com os seus nomes.
– Não sei se alguém acredita que nos encontrámos aqui por pura coincidência.
Continuou.
– Mas eu acho que viemos todos à procura de algo, e por alguma razão a nossa busca trouxe-nos aqui.
Terminou passando as costas da mão na face do Orlando, que sem tirar os olhos da Gabriela retorquiu:
– Eu só procurava alguém que me tratasse como uma pessoa, alguém que não deixasse a minha aparência fazer esquecer o facto de que por dentro sou um ser humano como os outros. E quer-me parecer que posso ter encontrado.
Terminou distendendo a boca no esgar que era o seu sorriso.
– Como é que conseguiste vir aqui ter sozinha? Perguntou o Octávio à Gisela.
– E de que é que vens à procura?
– Quando de é cego de nascença aprende-se a ver com os outros sentidos e, quando tudo falha a minha bengala não me deixa esbarrar nas coisas. Respondeu.
– E se vos disser do que venho à procura, vão achar que sou maluca.
– Só dizes se quiseres, naturalmente ninguém te vai obrigar, mas parece-me a melhor situação para partilhares a tua maluqueira, com o dia que estamos a ter hoje acho que está toda a gente com a mente aberta.
Respondeu a Gabriela em tom bem-disposto.
– Se querem mesmo saber, vim à procura de um som.
Continuou Gisela, e como se pudesse ver as expressões de interrogação nas faces dos seus companheiros, passou a tentar explicar.
– As pessoas que vêm têm o vício de pôr toda a confiança na visão. Ver é tudo, se não há algo que não conseguem ver, têm tendência para duvidar da sua existência. A audição também nos permite conhecer as coisas, sentir o mundo, e até mesmo construir imagens mentais dele. Não pensem na minha cegueira como um impedimento, mas como uma diferença, uma diferença que, como a tua Orlando, não nos torna menos humanos. E no meu caso, embora possa parecer incapacitante, a verdade é que me faz ter capacidades que vocês não têm, permite-me também ver as coisas e até algumas que vocês não vêm. Por exemplo…
Continuou adivinhando a pergunta que se materializava nas mentes dos outros.
– Há um riacho a cerca de um quilómetro nesta direcção, mais adiante há árvores, há um ninho com uma cria no topo desta árvore, e tu Octávio, tens 55 cêntimos no bolso! E sei isto tudo apenas pelo som. Toda a minha vida gira à volta do som e eu procuro um som em particular, um som que nunca ouvi antes mas que tenho a certeza que vou reconhecer!
Confirmando a precisão da informação sobre as moedas no seu bolso, o Octávio quebrou os segundos de silêncio que aconteceram depois da Gisela se calar.
– Espero sinceramente que o encontres!
E a Gisela sentiu a sinceridade nas suas palavras.
– E tu? Retorquiu.
– O que procuras tu?
– Eu só procuro o amor verdadeiro. Respondeu.
– Procuro, no fundo, algo não muito diferente do que o Orlando procura, procuro uma mulher que me ame pelo que sou e não pelo que eu aparento. De uma mulher que consiga dar mais importância à minha personalidade que ao meu físico. Olhando para a Gisela enquanto terminava a frase, pensou se não teria também já encontrado a pessoa que procurava, mas não partilhou este pensamento com os demais.
– Mas tu és todo bom, e tal, é?
Perguntou desinteressada a Gabriela perante o olhar incrédulo do Octávio.
– Bom… as mulheres têm uma forte tendência para achar que sim. Tu não achas?
– Para ser sincera não fazes bem o meu estilo. Sem querer ofender, acho-te demasiado banal
– Tudo bem! Respondeu o Octávio com um sorriso.
– Já é um começo!
Mas a verdade é que sentiu uma ponta de mágoa que foi afastada com sucesso pela carícia da Gisela, que passou a mão pela sua nuca parecendo que, como sempre, tinha a habilidade de sentir as emoções das pessoas mesmo sem conseguir ver as suas expressões faciais.
– Só faltas tu.
Disse o Octávio à Gabriela, tentando disfarçar o despeito que ainda perdurava.
– Eu lamento desapontá-los, mas a verdade é que eu, apesar de saber que vim à procura de algo, não sei o que é esse algo, só sei que sinto a sua falta na minha vida.
– Bom, o que é que fazemos agora? Perguntou o Orlando. – Já está a ficar de noite e a única coisa que eu tenho para comermos são estas maçãs que roubei num pomar lá atrás.
– Acho que vamos ter que passar a noite aqui, eu tenho aqui um pacote de bolachas e uma garrafa de água, dá para nos remediarmos até amanhã. Depois logo vemos o que fazemos. Respondeu a Gisela, colocando os seus mantimentos junto das cerca de dez maçãs. Todos concordaram e, após fazerem desaparecer os parcos mantimentos em amena conversa, vencidos pela exaustão da caminhada que todos tinham dado até ali, deixaram-se adormecer por lá, abrigados pela copa do grande cedro e ninguém se sentiu desabrigado ou desprotegido, aliás, sentiam-se mais em casa do que alguma vez já tinham sentido.
Na manhã seguinte, aos primeiros raios de sol, foram acordados pelos pássaros que num bando cada vez maior percorriam o céu matinal, formando figuras no ar como se de uma obra de arte viva se tratassem. A Gisela foi a primeira a sair de debaixo da copa do grande cedro e sentar-se a sentir o sol na cara movendo a cabeça no sentido do chilrear uníssono do bando que já somava milhares de indivíduos. Até onde ia a impressionante capacidade auditiva da Gisela, é impossível saber ao certo, mas podemos acreditar que ela conseguia, através do chilrear individual da cada pássaro formar uma imagem mental das formas que o bando ia tomando. Minutos depois estavam os quatro sentados lado a lado, de olhos fechados, sem ninguém dizer uma palavra, a sentir na face o calor do dia que começava. Passou certamente mais de meia hora até que o Octávio, provavelmente impelido pelo seu estômago, disse que precisavam de arranjar comida. Dado o insuficiente jantar do dia anterior, todos concordaram sem reservas e decidiram separar-se em dois grupos, um dos quais iria no sentido de onde o Orlando veio, onde era certo poderem pelo menos subtrair alguma fruta dos pomares espalhados, enquanto o outro iria no sentido do riacho para verificar se a água parecia potável, e tentar também explorar a mata em busca de alimento, onde certamente encontrariam, pelo menos, amoras e pinhões.
Não haveria naturalmente nenhum problema na definição dos grupos e a Gabriela tomou a iniciativa dizendo que ia com o Orlando aos pomares, e assim se separaram, cada casal com o seu destino.
Ao chegar ao riacho, a Gisela ajoelhou-se e debruçou-se cheirando a água. – Parece-me boa. Disse. – A mim também! Respondeu o Octávio já com os pés dentro de água. – E fresquinha! Ambos beberam e, depois de atravessarem o riacho, cuja água apenas lhes chegava à cintura na zona mais profunda, tomaram um débil pequeno-almoço de amoras da silva que pendia do outro lado. Avançaram pela mata e regressaram pouco mais de uma hora depois com a camisola do Octávio cheia com um sortido de amoras, medronhos, cerejas silvestres e pinhões. Ao regressarem ao riacho sentaram-se junto à água para descansar antes de voltarem ao grande cedro que, na situação em que estavam era o mesmo que voltar para casa. Sentaram-se ao lado um do outro, na margem do riacho à sombra de uma árvore que crescia quase na horizontal, invadidos pela tranquilidade do lugar. Depois de olhar para a Gisela durante algum tempo numa tentativa de discernir os seus sentimentos, colocou o braço à volta dos seus ombros, ao que ela respondeu aproximando-se dele e deitando a sua cabeça no seu peito. Foi aí que a sua vida mudou para sempre! Era o Som! Tinha a certeza que era! O batimento compassado do coração do Octávio percorria todo o seu corpo deixando uma sensação de plenitude. Não podia estar enganada, tinha encontrado o Som, a sua busca tinha terminado e sentia-se completa, feliz, mais feliz que nunca. Era aquele som que a preenchia, a peça que faltava no puzzle que era a sua vida. E ficaram ali, não sabem quanto tempo, sem dizer uma palavra, prolongando o momento em que se completaram.
Quando chegaram ao primeiro pomar, a Gabriela e o Orlando iam já de mão dada, o que para o Orlando era ainda uma sensação muito estranha.
Casualmente, quase como se estivesse a falar sozinho, disse:
– Acho que posso considerar que tive sorte. Viemos os quatro à procura de alguma coisa e parece que até agora fui o único a encontrá-la.
A Gabriela, virando-se de frente para ele e olhando bem fundo nos seus olhos e com tal intensidade que ambos deixaram escorrer uma lágrima, respondeu:
– Eu também já encontrei! E uniram-se num abraço que, por qualquer um deles, podia ter durado para sempre.
Não se sabe bem o que aconteceu depois, mas eu gosto de acreditar que eles ainda lá estão, a viver debaixo do grande cedro, e esse, esse está lá de certeza, e tem escrita no seu tronco e nos seus ramos a história de quatro pessoas que, fazendo dele a sua casa, encontraram o propósito das suas vidas. E consigo até imaginá-lo, daqui a muitos séculos, no centro de uma cidade cujos habitantes são fruto do mais puro amor.
O Orlando era um rapaz normal, embora, naturalmente, não seja completamente verdade, pode até dizer-se que a sua vida não teve nada digno de nota até àquela manhã de Março em que se apercebeu do aparecimento de uma pequena verruga na testa. Sem poder adivinhar que aquela verruga era o início de uma mudança radical na sua vida, nem sequer lhe deu importância. Começou, no entanto a ficar alarmado quando na manhã seguinte, não só a verruga do dia anterior estava maior, como uma nova verruga tinha aparecido, desta vez por baixo do lábio inferior. Os meses seguintes foram divididos entre correrias de um médico para outro e o aparecimento ou crescimento das verrugas que cobriam já quase completamente o seu rosto.
Foram tempos terríveis para o Orlando, a ver a sua face desaparecer gradualmente dando lugar ao monstro que o atormentava do outro lado do espelho, mas o que ele não sabia é que pior ainda estava para vir. Depois de tentados todos os tratamentos e verificando que, apesar de tudo, a sua saúde estava óptima e o problema era puramente estético, o Orlando voltou para casa. Foi pior porque o apoio e a força que estava confiante que iria encontrar nos amigos não estava lá. Parecia que tinha mudado de identidade, as pessoas ficavam claramente pouco à vontade perto dele, os sentimentos pouco passavam de pena ou discriminação, nunca mais foi convidado para nada e, desiludido com o ser humano, aos poucos acabou por deixar de falar com os outros e passava os seus dias no café, a ler ou a escrevinhar qualquer coisa.
A gota de água foi quando, no café que frequentava há anos, já nem sabia quantos, no café onde se sentia tão à vontade como se estivesse em casa, onde tratava os empregados pelo nome e eles faziam o mesmo com ele, nesse café onde sentia que se podia refugiar dos olhares constantes, lhe pediram cordialmente para evitar lá ir porque afastava a clientela. Foi como uma estocada certeira no coração, boquiaberto a olhar para o dono do café com um ar incrédulo sentiu que não aguentaria mais, sentiu que o golpe tinha sido fatal, não conseguia compreender porque faziam isto, porque tinha a sua vida mudado tanto. Ele continuava a ser a mesma pessoa! Não compreendia como é que uma alteração física podia destruir completamente a sua vida, como é que as pessoas não conseguiam relacionar-se com ele da mesma forma que antes. Ainda com os olhos fixos no dono do café sentiu que ia irromper em lágrimas, mas reuniu todas as suas forças e saiu porta fora. Foi a última vez que o Orlando foi visto por aquelas bandas. Dizem as histórias passadas de boca em boca sobre o selvagem rapaz-verruga que lá morava, que um dia começou a cheirar o ar e assim, de nariz levantado como quem persegue um aroma, foi andando no sentido do sol poente e nunca mais foi visto, mas a verdade é que ninguém sabe ao certo.
O Octávio era daqueles gajos que parece um íman de mulheres, sempre me impressionou o efeito que ele tinha nelas, era impressionante como mudavam assim que o viam, ficavam indefesas, incapazes de controlar os seus impulsos. Claro que havia as que pareciam imunes, mas a maioria delas ficava totalmente parva. É que, ainda por cima, além da sua a figura de Apolo, o Octávio era a boa-disposição personificada, isto fazia dele uma pessoa muito popular entre ambos os sexos, os amigos conseguiam passar horas a ouvi-lo contar histórias das figuras ridículas que as mulheres faziam para o tentar seduzir e normalmente acabavam cheios de dores na barriga e nas bochechas de tanto rir. Mas a verdade é que elas ficavam completamente fora de si e observar este comportamento era já um passatempo dos amigos do Octávio.
O engraçado é que o Octávio não era para aí virado, não me interpretem mal, ele gostava de mulheres, mas procurava algo diferente, provavelmente procurava uma mulher que não se prostrasse aos seus pés, que não perdesse a compostura, uma mulher que visse além do seu aspecto físico. Acreditando plenamente que a sua alma gémea existia, pensou que sendo o mundo tão grande, não poderia perder tempo, estava convicto que o sítio onde estava já tinha nada para lhe oferecer e, com a roupa que tinha no corpo e algum dinheiro no bolso, partiu. Decidiu apanhar o comboio que saísse primeiro quando chegasse à estação e assim fez. E foi assim que o destino o levou para Norte.
A Gisela era afinadora de pianos, provavelmente uma das melhores, nunca usou nada electrónico e ao fim de pouco mais de um ano abdicou completamente do diapasão e passou a afinar unicamente de ouvido. Nunca houve um cliente descontente e muitos deles acabaram por se tornar bons amigos, inclusivamente, podia dizer-se que eram os seus únicos amigos. No entanto, havia clientes mais desinteressados e que ainda nem tinham reparado que a Gisela era cega. O som era a sua vida, não só a sua profissão e os seus tempos livres, já que quando não estava a trabalhar estava a tocar ou ouvir música, mas era o som que a guiava escuridão adentro. Contudo, com o passar dos anos começou a sensação de necessidade de algo mais, algo maior, mais elevado, o Som! Um som tão sublime que uma nota apenas seria capaz de despoletar as mais latentes e majestosas emoções. Não sabia como poderia designar tal som, pelo que chamava-lhe apenas o Som. Ao princípio, quando idealizou que o Som poderia existir pensava que era só uma ideia maluca, mas agora sentia um vazio interior que acreditava poder ser unicamente preenchido pelo Som, e desta forma a sua existência teria que ser real, caso contrário seria como haver um puzzle com uma peça inexistente e isso não tinha sentido, teria que existir algures a peça que a completava.
Certo dia, tinha a Gisela acabado de afinar o fá da terceira oitava quando o cliente, pressionando insistente e repetidamente a respectiva tecla, garantia que tinha um exímio ouvido e constatava claramente que a afinação não estava perfeita. A Gisela, com a máxima calma, levantou-se, guardou as suas poucas ferramentas de trabalho, que não incluíam mais do que duas cunhas uma chave, na pequena bolsa para o efeito, colocou-a no bolso de trás das calças e saiu sem dizer uma palavra. Sem qualquer hesitação foi para casa, preparou uma mochila com alguma roupa e produtos de primeira necessidade e partiu para Sul.
Não sei onde era, mas certamente não havia civilização num raio de muitos quilómetros. Embora bela, a paisagem seria bastante banal não fosse a enorme árvore que se destacava de tudo o resto. Era um cedro, um grande cedro que, embora não fosse muito alto, tinha uma envergadura imponente. Duas pessoas de mãos dadas não conseguiam abraçá-lo e o diâmetro da circunferência formada pelas pontas dos seus ramos atingia vários metros, o seu peso fazia com que as pontas mais longínquas quase tocassem o chão, o que tornava quem estivesse debaixo da sua copa praticamente invisível e bastante abrigado das intempéries. A cerca de um quilómetro do cedro havia um riacho, do outro lado do qual estava uma mata povoada principalmente por pinheiros baixos.
Nesta paisagem, à primeira vista deserta, aparecem quatro pessoas. Quatro pessoas desconhecidas entre si, vindas de quatro direcções distintas, todas dirigindo-se na direcção do grande cedro. Quatro pessoas que, ainda sem o saberem estavam prestes a terminar a sua jornada. A maioria começa, com alguma estranheza, a algumas dezenas de metros a aperceber-se dos outros, mas a Gisela, avançando devagar mas confiante, já sabia há algum tempo que mais três pessoas caminhavam nas redondezas. Tinha até a noção, pelo que conseguia inferir através da variação da amplitude do som dos seus passos, que todos se dirigiam para um ponto comum, onde se encontrariam. Ao chegar à orla da copa do grande cedro foram abrandando, cumprimentando-se entre si com alguma desconfiança, excepto a Gisela, que emitiu um sonoro “Muito boa tarde a todos” e tacteando a ponta dos ramos gatinhou por baixo deles para se sentar encostada ao velho tronco desfrutando a sombra. Não sei se terá sido pela improbabilidade daquelas quatro pessoas desconhecidas se encontrarem naquela sítio recôndito, ou se terão eles sentido algo de inexplicável, mas a verdade é que nenhum deles conseguia fazer-se acreditar que estavam juntos por acaso. E no caso de estarem a conseguir, estava ali aquela rapariga com uma bengala de cego, sentada com um ar confiante, como se soubesse alguma coisa que os outros não sabiam. Não, nada daquilo podia ser obra do acaso!
Acabaram por se sentar todos debaixo da copa do grande cedro, e, embora o Octávio ainda estivesse nitidamente a tentar controlar o choque que a aparência do Orlando tinha provocado em si, a Gabriela olhava-o com uma expressão de fascínio e, passando as mãos pelo seu rosto, coisa que desde que a doença tinha começado ninguém ainda tinha feito sem usar luvas de borracha, exclamou calmamente:
- És tão diferente! Como é que te chamas?
O Orlando, ainda afectado pelo choque, há já bastante tempo que não sentia alguém tratá-lo com tanta naturalidade, respondeu trémulo.
– Orlando. E tu?
– Gabriela. E vocês?
Perguntou virando-se para os outros, que responderam com os seus nomes.
– Não sei se alguém acredita que nos encontrámos aqui por pura coincidência.
Continuou.
– Mas eu acho que viemos todos à procura de algo, e por alguma razão a nossa busca trouxe-nos aqui.
Terminou passando as costas da mão na face do Orlando, que sem tirar os olhos da Gabriela retorquiu:
– Eu só procurava alguém que me tratasse como uma pessoa, alguém que não deixasse a minha aparência fazer esquecer o facto de que por dentro sou um ser humano como os outros. E quer-me parecer que posso ter encontrado.
Terminou distendendo a boca no esgar que era o seu sorriso.
– Como é que conseguiste vir aqui ter sozinha? Perguntou o Octávio à Gisela.
– E de que é que vens à procura?
– Quando de é cego de nascença aprende-se a ver com os outros sentidos e, quando tudo falha a minha bengala não me deixa esbarrar nas coisas. Respondeu.
– E se vos disser do que venho à procura, vão achar que sou maluca.
– Só dizes se quiseres, naturalmente ninguém te vai obrigar, mas parece-me a melhor situação para partilhares a tua maluqueira, com o dia que estamos a ter hoje acho que está toda a gente com a mente aberta.
Respondeu a Gabriela em tom bem-disposto.
– Se querem mesmo saber, vim à procura de um som.
Continuou Gisela, e como se pudesse ver as expressões de interrogação nas faces dos seus companheiros, passou a tentar explicar.
– As pessoas que vêm têm o vício de pôr toda a confiança na visão. Ver é tudo, se não há algo que não conseguem ver, têm tendência para duvidar da sua existência. A audição também nos permite conhecer as coisas, sentir o mundo, e até mesmo construir imagens mentais dele. Não pensem na minha cegueira como um impedimento, mas como uma diferença, uma diferença que, como a tua Orlando, não nos torna menos humanos. E no meu caso, embora possa parecer incapacitante, a verdade é que me faz ter capacidades que vocês não têm, permite-me também ver as coisas e até algumas que vocês não vêm. Por exemplo…
Continuou adivinhando a pergunta que se materializava nas mentes dos outros.
– Há um riacho a cerca de um quilómetro nesta direcção, mais adiante há árvores, há um ninho com uma cria no topo desta árvore, e tu Octávio, tens 55 cêntimos no bolso! E sei isto tudo apenas pelo som. Toda a minha vida gira à volta do som e eu procuro um som em particular, um som que nunca ouvi antes mas que tenho a certeza que vou reconhecer!
Confirmando a precisão da informação sobre as moedas no seu bolso, o Octávio quebrou os segundos de silêncio que aconteceram depois da Gisela se calar.
– Espero sinceramente que o encontres!
E a Gisela sentiu a sinceridade nas suas palavras.
– E tu? Retorquiu.
– O que procuras tu?
– Eu só procuro o amor verdadeiro. Respondeu.
– Procuro, no fundo, algo não muito diferente do que o Orlando procura, procuro uma mulher que me ame pelo que sou e não pelo que eu aparento. De uma mulher que consiga dar mais importância à minha personalidade que ao meu físico. Olhando para a Gisela enquanto terminava a frase, pensou se não teria também já encontrado a pessoa que procurava, mas não partilhou este pensamento com os demais.
– Mas tu és todo bom, e tal, é?
Perguntou desinteressada a Gabriela perante o olhar incrédulo do Octávio.
– Bom… as mulheres têm uma forte tendência para achar que sim. Tu não achas?
– Para ser sincera não fazes bem o meu estilo. Sem querer ofender, acho-te demasiado banal
– Tudo bem! Respondeu o Octávio com um sorriso.
– Já é um começo!
Mas a verdade é que sentiu uma ponta de mágoa que foi afastada com sucesso pela carícia da Gisela, que passou a mão pela sua nuca parecendo que, como sempre, tinha a habilidade de sentir as emoções das pessoas mesmo sem conseguir ver as suas expressões faciais.
– Só faltas tu.
Disse o Octávio à Gabriela, tentando disfarçar o despeito que ainda perdurava.
– Eu lamento desapontá-los, mas a verdade é que eu, apesar de saber que vim à procura de algo, não sei o que é esse algo, só sei que sinto a sua falta na minha vida.
– Bom, o que é que fazemos agora? Perguntou o Orlando. – Já está a ficar de noite e a única coisa que eu tenho para comermos são estas maçãs que roubei num pomar lá atrás.
– Acho que vamos ter que passar a noite aqui, eu tenho aqui um pacote de bolachas e uma garrafa de água, dá para nos remediarmos até amanhã. Depois logo vemos o que fazemos. Respondeu a Gisela, colocando os seus mantimentos junto das cerca de dez maçãs. Todos concordaram e, após fazerem desaparecer os parcos mantimentos em amena conversa, vencidos pela exaustão da caminhada que todos tinham dado até ali, deixaram-se adormecer por lá, abrigados pela copa do grande cedro e ninguém se sentiu desabrigado ou desprotegido, aliás, sentiam-se mais em casa do que alguma vez já tinham sentido.
Na manhã seguinte, aos primeiros raios de sol, foram acordados pelos pássaros que num bando cada vez maior percorriam o céu matinal, formando figuras no ar como se de uma obra de arte viva se tratassem. A Gisela foi a primeira a sair de debaixo da copa do grande cedro e sentar-se a sentir o sol na cara movendo a cabeça no sentido do chilrear uníssono do bando que já somava milhares de indivíduos. Até onde ia a impressionante capacidade auditiva da Gisela, é impossível saber ao certo, mas podemos acreditar que ela conseguia, através do chilrear individual da cada pássaro formar uma imagem mental das formas que o bando ia tomando. Minutos depois estavam os quatro sentados lado a lado, de olhos fechados, sem ninguém dizer uma palavra, a sentir na face o calor do dia que começava. Passou certamente mais de meia hora até que o Octávio, provavelmente impelido pelo seu estômago, disse que precisavam de arranjar comida. Dado o insuficiente jantar do dia anterior, todos concordaram sem reservas e decidiram separar-se em dois grupos, um dos quais iria no sentido de onde o Orlando veio, onde era certo poderem pelo menos subtrair alguma fruta dos pomares espalhados, enquanto o outro iria no sentido do riacho para verificar se a água parecia potável, e tentar também explorar a mata em busca de alimento, onde certamente encontrariam, pelo menos, amoras e pinhões.
Não haveria naturalmente nenhum problema na definição dos grupos e a Gabriela tomou a iniciativa dizendo que ia com o Orlando aos pomares, e assim se separaram, cada casal com o seu destino.
Ao chegar ao riacho, a Gisela ajoelhou-se e debruçou-se cheirando a água. – Parece-me boa. Disse. – A mim também! Respondeu o Octávio já com os pés dentro de água. – E fresquinha! Ambos beberam e, depois de atravessarem o riacho, cuja água apenas lhes chegava à cintura na zona mais profunda, tomaram um débil pequeno-almoço de amoras da silva que pendia do outro lado. Avançaram pela mata e regressaram pouco mais de uma hora depois com a camisola do Octávio cheia com um sortido de amoras, medronhos, cerejas silvestres e pinhões. Ao regressarem ao riacho sentaram-se junto à água para descansar antes de voltarem ao grande cedro que, na situação em que estavam era o mesmo que voltar para casa. Sentaram-se ao lado um do outro, na margem do riacho à sombra de uma árvore que crescia quase na horizontal, invadidos pela tranquilidade do lugar. Depois de olhar para a Gisela durante algum tempo numa tentativa de discernir os seus sentimentos, colocou o braço à volta dos seus ombros, ao que ela respondeu aproximando-se dele e deitando a sua cabeça no seu peito. Foi aí que a sua vida mudou para sempre! Era o Som! Tinha a certeza que era! O batimento compassado do coração do Octávio percorria todo o seu corpo deixando uma sensação de plenitude. Não podia estar enganada, tinha encontrado o Som, a sua busca tinha terminado e sentia-se completa, feliz, mais feliz que nunca. Era aquele som que a preenchia, a peça que faltava no puzzle que era a sua vida. E ficaram ali, não sabem quanto tempo, sem dizer uma palavra, prolongando o momento em que se completaram.
Quando chegaram ao primeiro pomar, a Gabriela e o Orlando iam já de mão dada, o que para o Orlando era ainda uma sensação muito estranha.
Casualmente, quase como se estivesse a falar sozinho, disse:
– Acho que posso considerar que tive sorte. Viemos os quatro à procura de alguma coisa e parece que até agora fui o único a encontrá-la.
A Gabriela, virando-se de frente para ele e olhando bem fundo nos seus olhos e com tal intensidade que ambos deixaram escorrer uma lágrima, respondeu:
– Eu também já encontrei! E uniram-se num abraço que, por qualquer um deles, podia ter durado para sempre.
Não se sabe bem o que aconteceu depois, mas eu gosto de acreditar que eles ainda lá estão, a viver debaixo do grande cedro, e esse, esse está lá de certeza, e tem escrita no seu tronco e nos seus ramos a história de quatro pessoas que, fazendo dele a sua casa, encontraram o propósito das suas vidas. E consigo até imaginá-lo, daqui a muitos séculos, no centro de uma cidade cujos habitantes são fruto do mais puro amor.
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