sexta-feira, 27 de março de 2009

O Jogo

E é assim que termina a minha história, disse o velho enquanto unia as pontas dos dedos de uma mão às dos da outra, fitando silenciosamente o rapaz à espera de um comentário. O rapaz recostou-se na cadeira, acariciando o queixo enquanto olhava pensativo para a estatueta representando Tangaroa, que repousava numa pequena mesa encostada à parede por trás do velho. Depois de uma inspiração mais profunda que ofereceu às suas narinas o agradável odor do papel envelhecido, encontrou o olhar do seu velho amigo e quebrou o silêncio que se tinha instalado. Nem sei o que dizer, é de facto uma história impressionante, inspiradora até. Como sei que tem bagagem para que eu possa ser perfeitamente sincero e directo consigo, continuou, vou sê-lo: tenho reservas sobre a veracidade de certas partes. Não que ache que me está a mentir, mas estou inclinado para acreditar que o passar dos anos já tenha distorcido um pouco os acontecimentos na sua memória. Sou levado a crer que a história está, digamos, fantasiada. Consigo compreender que tenhas essa opinião, respondeu o velho sem alterar a sua postura nem o seu semblante calmo e seguro de si, é de facto difícil de acreditar, mas garanto-te que estás enganado, tudo aconteceu exactamente como te contei. Mesmo a parte da sereia? Perguntou o rapaz com ar desconfiado. Sim, mesmo essa parte, retorquiu o velho, mas até pensava que houvesse outras partes mais inacreditáveis para ti. Há outras igualmente inacreditáveis, respondeu prontamente o rapaz, mas essa em particular pareceu-me demasiado mitológica para ser mesmo verdade. Muita gente viveu episódios como esse, continuou o velho, mas a grande maioria não se recorda. O canto delas inebria e impede-nos de guardar memórias sobre o que acontece enquanto estamos sob o seu efeito, e por isso é que ninguém acredita que existem. Eu, apesar do feitiço, consegui vê-la como ela realmente era e lembrar-me depois. E porque é que consigo foi diferente? Perguntou o rapaz, levantando uma sobrancelha. A isso não posso responder-te porque não faço a menor ideia, retorquiu o velho, projectando o queixo para a frente, dou-me apenas por satisfeito por poder recordar o momento. Outra parte que me deixa pouco crédulo é a do navio fantasma, continuou o rapaz, parece tão saído daquelas lendas marítimas. Antes de responder, o velho, como que procurando orientação, ou talvez apenas reunindo vagar, passou os olhos pela tela na parede à sua direita, que representava Calypso, serenamente repousando sobre as águas. Como é que achas que surgiram as lendas? Perguntou. Eu aceito que as lendas possam ter algum fundamento real, mas não consigo acreditar que sejam completamente verídicas. Apesar de poderem ser baseadas em acontecimentos autênticos, acabaram por transformar-se em alegorias, retorquiu rapidamente o rapaz, é por isso que lhes chamam lendas. Eu sei o que vi, respondeu rispidamente o velho, vi e senti. Quando avistámos o barco à deriva, sem ninguém, pensámos que era o nosso dia de sorte, mas depressa percebemos que assim não era. Como te contei, eu e muitos de nós começámos a receber pancadas vindas de trás e nunca víamos ninguém quando nos virávamos, e houve mesmo alguns que viram estranhas aparições. E como te disse também, quando, ao percebermos que algo de muito errado se passava e que não seria boa ideia tentar salvar o barco, decidimos voltar, faltavam dois dos nossos companheiros e nunca mais os vimos. Dois bons marinheiros desapareceram sem deixar rasto, e não me parece que tenham tido um destino agradável. Nem sequer pudemos entregar os seus corpos ao mar! Achas que eu ia inventar isto?? Apesar da aparente calma, uma ponta de ira brilhou nos olhos do velho. Não sei se mais algum de nós ainda está vivo, mas não fui o único a testemunhar isto. Todos vimos o barco, e todos o deixámos misteriosamente de ver ao afastarmo-nos apenas algumas dezenas de metros. Depois de ambos perderem alguns momentos perscrutando o intrincado motivo floral que percorria os limites do tecto, o velho baixou a cabeça e, arqueando as sobrancelhas, continuou. Também não acreditas no monstro, não é? Perguntou, mostrando já algum agastamento. Pois… Respondeu, hesitante, o rapaz. Olha, disparou o velho já visivelmente irritado, eu tenho estofo para que sejas sincero comigo, mesmo quando não acreditas em mim, mas pelo menos devias encarar a minha história com a mente aberta, e pelo que vejo, a tua mente é uma caixinha minúscula. É como se tivesses umas palas nos olhos que só te deixam olhar em frente. Espero que a idade te consiga trazer alguma abertura, concluiu o velho recostando-se na cadeira enquanto desviava o olhar do rapaz e o passeava pelas centenas de livros que se alinhavam nas estantes à sua esquerda. Não o queria ofender, desculpou-se o rapaz. E não ofendeste, respondeu prontamente o velho em tom de enfado, apenas me exauriste a paciência, portanto cala-te e joga!

6 comentários:

grassa disse...

Quando for grande quero ser teu neto.

Rodovalho Zargalheiro disse...

Será que ainda cresces mais?...

anjoazul disse...

fiquei mais curiosa acerca da história que o velho teria contado a rapaz.

Rodovalho Zargalheiro disse...

Eu também. Deve ter sido emocionante...

Nawita disse...

Conheci um homem assim, um grande contador de histórias.
Tinha a capacidade de tornar uma banal ida ao supermercado em algo tão extraordinário e excitante como a primeira viagem à Lua.

Felizmente foi hereditário e as filhas e netos agradecem, nada como uma forte dose de imaginação e um grão de loucura para alegrar o dia ;)

Rodovalho Zargalheiro disse...

Uma forte dose de loucura e um grão de imaginação também resultam, pelo menos para mim...