Noite após noite esperei pela aparição. Não conseguia dormir mais que dez ou quinze minutos sem acordar sobressaltado, com a sensação de que não estava sozinho, mas nunca passava de uma malévola partida da minha imaginação.
A espera foi-se tornando cada vez mais atroz. Deixei de conseguir ficar deitado e passava as noites frenético, a andar de um lado para o outro no quarto. Vamos a isso! Estou disposto a fazer o que quiseres! Gritei uma noite à escuridão, rendido, no apogeu do meu desespero. Senti um longo arrepio ao ouvir a voz. Não sinto em ti uma verdadeira vontade de te tornares algo mais do que és, algo superior, disse a voz, não me serves assim. Mas eu quero, quero mesmo, sinto que é o meu propósito, supliquei, estou aqui à tua mercê. Não, retorquiu a voz, enganei-me, não és tu quem eu procurava. Não, não! Gritei, mas só o vazio do meu quarto lá estava.
Fiquei desolado, destroçado. Tinha sido tudo em vão. Perguntei-me se não seria mesmo este o objectivo da entidade, destruir-me. Pensei que devia ter dado mais atenção às palavras da crioula, mas já não tinha qualquer controle sobre mim. Morri por dentro. Arrastava-me de um lado para o outro e deixei completamente de conseguir dormir.
Passado muito tempo, numa das noites que passava sentado na cama a olhar para o infinito, senti o odor acre que tinha deixado de acompanhar a entidade. Arregalei os olhos e com um violento golpe de rins fiquei de joelhos na cama. A um palmo da minha cara estava o rosto do espectro. Sim, ouvi numa voz sibilante, agora estás pronto, chegou o momento de sermos um, disse a entidade com um faiscar nos olhos. Não compreendi o que quereria dizer com aquilo, mas estava já num ponto em que não tinha qualquer poder sobre mim. Era já algo de sub-humano, uma mera casca vazia, um simples corpo antropomórfico que por dentro não abrigava nada, não existia já em mim qualquer sentimento, qualquer vontade. Limitei-me a fixar os brilhantes olhos da entidade e acenar com a cabeça em consentimento. O corpo disforme da aparição começou a expandir-se à minha volta, como um abraço fatal. Abri os braços e entreguei-me, mas, quando esperava que tudo acabasse, eis que algo embate em mim e me projecta alguns metros para trás. Atónito, olhei para a entidade e consegui apenas ver um par de olhos tristes a desaparecer no que seria o seu corpo. Numa questão de segundos, com um grito indescritível que nunca poderia ser deste mundo a entidade retorceu-se e desapareceu numa ténue nuvem de fumo negro. Sentado no chão compreendi. O velho cão tinha-me salvado. Não sabia de quê, mas naquele momento acreditei que se tinha sacrificado para me proteger de um destino inimaginavelmente cruel.
Nunca mais tive qualquer experiência ou contacto com outras realidades, mas nunca mais fui o mesmo. Nunca mais consegui recuperar qualquer tipo de emoção, nem preencher o vazio que me tornei.
Este é o meu testemunho, o que deixo para a posteridade. A única marca que ficará de mim neste plano de existência. Nunca saberei o que realmente teria acontecido se o velho cão não tivesse intervindo. Custa-me acreditar nisso, mas não sei se teria tido um destino ainda mais miserável. Não sei nada. É tarde demais para mim, mas para dar algum propósito a este meu legado, deixo uma lição que não é minha: Nunca percas o controlo do teu fado.
1 comentário:
Suponho que seja o final do conto
E graças ao cão ele foi salvo
Um bem haja ao cão
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