Durante as noites seguintes acordei várias vezes e olhava esperançado para os pés da cama, apenas para não encontrar nada. Ficava depois algum tempo acordado a questionar-me porque razão tinha passado a desejar que acontecesse aquilo que até há pouco tempo atrás só queria que acabasse. Porque seria que, apesar do temor, queria agora que a entidade aparecesse. Começava a achar que não era apenas uma questão de curiosidade, que algo em mim acreditava que aquele ser tinha algo de extrema importância para me transmitir, uma informação de carácter vital que eu tinha mesmo que obter. Dava por mim a acordar de noite e instintivamente perguntar à escuridão se lá estaria alguém e cheguei mesmo a temer pelo meu equilíbrio psíquico, se é que ele existia. Durante muito tempo, tanto o meu olhar como as minhas palavras esbarraram no vazio.
Mas uma noite, ao abrir os olhos, deparei-me com aquele rosto mesmo em frente ao meu, como se a entidade estivesse ajoelhada junto à minha cama a observar o meu sopor. Sem controlo, dei um salto e fiquei sentado no fundo da cama olhando, atónito, a figura, na qual pensei ter conseguido distinguir uma expressão de desilusão. No segundo seguinte já me enchia de vergonha por verificar que ainda não conseguia controlar o meu medo. Espera! Gritei ainda, mas a entidade já se desvanecia, deixando aquele brilho no sítio onde estavam os seus olhos, que me provocava longos arrepios na coluna vertebral. A desmoralização atingiu-me como um raio, com tal violência que pareceu disparado pela própria Fulgora. Estava revoltado comigo próprio, tinha tido a minha oportunidade e perdi-a por causa do meu medo inconsciente. Agora, voltava ao ponto de não saber se teria outra, agravado pelo ressentimento.
Deixei de conseguir dormir. Passava as noites a pensar no que a entidade quereria de mim, se a voltaria a ver. Por vezes parecia-me ver um vulto a atravessar a escuridão, mas quando olhava melhor, não estava lá nada. Falava com a penumbra na esperança que a minha voz conseguisse atravessar a barreira da minha realidade. Sentia-me enegrecer por dentro, que uma parte de mim definhava de dia para dia e que acabaria inevitavelmente por morrer.
Passado algum tempo, quando já não tentava nada e me limitava a passar as noites imóvel na cama, deitado de costas a olhar fixamente para um ponto no tecto, na esperança que a fadiga me fizesse perder a consciência, vejo o rosto, estranho mas já familiar, materializar-se perante os meus olhos. O medo voltou, a pulsação acelerou, mas consegui controlar-me o suficiente para falar. Não te vás embora, consegui dizer com a voz trémula e quase a falhar-me. A face sorriu, um sorriso entre o infantil e o cruel. A mancha negra e disforme que completava a entidade apareceu também e tornou-se quase palpável. Desceu suavemente até ficar como que de pé ao fundo da cama, limitando-se a olhar para mim mantendo aquele sorriso que me fazia temer que destruísse tudo o que tinha conseguido para afastar o terror.
O que queres de mim? Perguntei depois de alguns momentos a ganhar coragem. O sorriso do espectro tornou-se paternalista. Foste escolhido, ouvi, mas a sua boca manteve o sorriso e não se mexeu. Escolhido para quê? Questionei, algo na dúvida se a voz que ouvia seria mesmo a entidade a falar comigo ou se, pelo contrário, seria apenas a minha imaginação. Tudo a seu tempo, ouvi, enquanto o sorriso da figura se abria grotescamente provocando-me verdadeiro pavor. Mantém-te sereno, que tudo se revelará, ouvi ainda antes da aparição se começar a esfumar. Como é que posso manter-me sereno? O que queres de mim? E porque é que me aterrorizas assim??? Diz-me! Perguntei à atmosfera, já que era óbvio que a entidade já não estava lá.
Ainda com a pulsação extremamente acelerada, perguntei-me porque quereria saber o que a entidade queria de mim. Porque seria que apesar do horror que me provocava, eu alinhava na história. O medo é uma ferramenta de auto-preservação, disse a mim próprio, devia talvez dar-lhe mais crédito, talvez seja o meu subconsciente a tentar avisar-me. Foi então que algo me distraiu.
Ao fundo, no canto do quarto, vi dois círculos de luz ténue. A minha pele arrepiou-se e senti um formigueiro na parte de trás da cabeça. Perscrutei a escuridão e percebi que era um par de olhos que reflectiam a quase inexistente luz que um diminuto quarto minguante proporcionava. Não sei se por, apesar de tudo, ainda manter alguma crença nas explicações normais ou se por mera negação, o meu primeiro pensamento foi que um gato vadio me teria entrado pela janela, mas algo atingiu o meu cérebro e me fez divisar que havia algo de familiar naqueles olhos. Após alguns segundos identifiquei-os sem qualquer dúvida. Eram os olhos do cão que tinha visto no caminho de regresso da casa da crioula! O mesmo olhar desolado que tinha visto nesse dia. Tentei em vão encontrar uma explicação para a presença do cão no meu quarto e o pavor que eu pensava estar já controlado voltou. Mais uma vez, o pânico me fez cobrir completamente com o cobertor, mas desta vez sei que não fechei os olhos até vislumbrar a luz solar. Quando percorri o quarto já iluminado pelo dia, não vi nada de anormal.
2 comentários:
Sinc.
Na hora, no mote...
Na mouche...
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