sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Ensaio sobre uma merda qualquer

Ah, que maravilha! Este sol maravilhoso, este mar azul infinito. Plenitude… Isto é que é vida!

O homem que estava deitado na espreguiçadeira ergueu-se repentinamente. Foi como se o seu cérebro de repente tivesse começado a funcionar.

Mas… Onde é que eu estou? O que é que se passa?

Parecendo ter saído da selva por trás, uma jovem e bela rapariga, vestindo apenas uma saia de longas folhas, apareceu com um coco verde, do qual saía um par de vistosas palhinhas. A sua pele tinha um bronzeado carregado e o seu cabelo era longo e negro. A rapariga aproximou-se com um passo leve, ajoelhou-se junto da espreguiçadeira e, baixando a cabeça, estendeu ambos os braços. Incrédulo, o homem pegou no que lhe era entregue e a rapariga ergueu-se.

Sabes quem eu sou? Como ou quando cheguei aqui?

A rapariga limitou-se a dizer uma frase numa língua estranha e, com uma suave vénia e um sorriso, afastou-se, desaparecendo pela vegetação. Estupefacto, o homem não teve qualquer reacção. Limitou-se a desviar lentamente o seu olhar espantado do lugar por onde a rapariga tinha desaparecido até ao objecto nas suas mãos.

Bom, vamos lá ver… Sei quem sou, chamo-me Lapricínio Ramalho, sou técnico de canalização, tenho uma mulher, três filhos, dois rapazes e uma menina linda, moro num T3 em Xabregas… Bom… Parece que, tirando o facto que não saber o que estou aqui a fazer nem como cá cheguei, não estou amnésico. A não ser… Que eu não seja o Lapricínio Ramalho… Se calhar sou rico e não canalizador, e isto de estar a relaxar numa praia paradisíaca a beber de um coco com umas palhinhas todas paneleiras é normalíssimo… Não! Isso é absurdo! Eu sei que sou o Lapricínio Ramalho. Tenho é que descobrir como vim aqui parar.

Lentamente, quase desconfiado, o homem levantou-se. Com passos cuidadosos, como se se tentasse certificar que a fina areia que os seus pés nús pisavam era, de facto, real, acercou-se do mar. Olhou para o seu reflexo na água, levemente distorcido pela suave ondulação.

Sou eu. Fico mais descansado, pelo menos reconheço o meu rosto, caso contrário é que as coisas ficariam mesmo demasiado estranhas, mas já estava preparado para tudo. Deve ser impressão minha, mas pareço um bocado mais novo do que eu me lembrava de mim, mas pronto, sou eu. Será que isto confirma que sou o Lapricínio Ramalho? Se calhar não… Não é que eu não goste de ser o Lapricínio Ramalho, técnico de canalização, casado por amor e pai de três filhos, até gosto muito, mas… Epa, conseguia habituar-me a este clima…

Imerso nos seus pensamentos, o homem percorria a linha da costa, desfrutando nos pés a leve sensação refrescante que a água tépida proporcionava.

Acorda e controla-te, Lapricínio! Tens que descobrir alguém, civilização, um telefone para poderes ligar à tua mulher, alguma pista que te consiga fazer perceber alguma coisa. Organiza o raciocínio. O que quero saber? Onde estou? Quando cheguei? Porquê? Onde está a minha família? O que sei… Hum… Nada… Não é muito animador, mas pronto, não posso desmoralizar. E quem é que conseguia desmoralizar com uma paisagem destas?… Concentra-te, Lapricínio. Concentra-te!

Ao chegar ao fim da praia, o homem viu uma série de degraus toscos, ladeados por um corrimão artesanal feito com canas.

Civilização! Ou algo próximo disso. Menos mal. Mas não me parece que haja por aqui um telefone. Mas porque é que eu viria aqui sem a minha família?

O homem subiu os degraus e, no topo, atravessou um grupo de palmeiras jovens. Deu por si numa clareira onde, além de uma cabana de madeira, uma cadeira, uma pequena mesa com um guarda-sol feito de canas finas, estava uma rústica mesa de massagens e, ao lado, uma exótica mulher.

Deslumbrante. Simplesmente deslumbrante…

A mulher esticou o braço, dirigindo a mão aberta para a mesa de massagens e, como que telecomandado, o homem deitou-se de barriga para baixo. Após aplicar uma porção de óleo nas costas do homem, a mulher pousou o recipiente feito de casca de coco e, em silêncio, iniciou a massagem.

Porra, Lapricínio! Não podes ser assim. Ficaste tão embasbacado que se ela te tivesse dito para ladrar, tu tinhas ladrado. Controla-te, homem! Ela até te pode querer fazer mal, e tu, o que fazes? Ofereces-lhe as costas e tempo de sobra para escolher bem o sítio onde espetar a faca. Se bem que não parece nada que ela me queira fazer mal. Está a saber-me tão bem que nem me importo com a faca. Continua assim e podes espetá-la, que morro satisfeito. Claro! És tão otário, Lapricínio. Como é que não pensaste nisso antes? Só pode ser um sonho! Que fixe, é um sonho. Deixa-me é aproveitar, que já não deve faltar muito para a merda do despertador tocar. Desta vez vai ser ainda mais torturante que o normal, ter que sair da cama, mas macacos me mordam os tomates se vou deixar que isso estrague este sonho espectacular. Sim… Isso… Aí…

Como que movida por um sexto sentido, a mulher terminou a massagem no momento em que o homem parecia prestes a adormecer. A paragem despertou-o. Levantou a cabeça devagar, desentorpecendo o pescoço e olhou para a mulher. Esta sorriu e inclinou a cabeça ligeiramente para a frente. Com uma expressão de deleite, o homem manteve o olhar na mulher enquanto esta se afastava.

Que silhueta… Que sonho maravilhoso. É, de certeza, o melhor sonho que já tive. Excepto talvez aquele em que conseguia voar, ou aquele em que conseguia ficar invisível, ou talvez também aquele… Mexe-te, otário! Um sonho destes e tu estás a desperdiçá-lo a divagar? Levanta-te, explora, aproveita!

O homem levantou-se e, enquanto decidia que direcção tomar, ouviu o toque de um telefone. Era a tradicional e inconfundível campainha de um telefone. Seguindo pelo caminho que o levava na direcção do som, foi-se embrenhando cada vez mais selva adentro, sempre seguindo o toque do telefone que, apesar da tortuosidade do percurso, cada vez parecia mais próximo.

Um telefone, no meio da selva, este sonho está a descair um bocado para o surreal. Também já gostei mais dele, se em vez de estar a deambular pela selva estivesse a ter um happy ending com a massagista seria tão melhor.

O homem continuou a seguir o som até se deparar com um estranho arbusto que lhe cortava o caminho. O toque do telefone parecia provir de detrás da peculiar vegetação.

O caminho cortado por um arbusto de ramos negros e bagas verde fluorescente? Será que isto tem algum significado subliminar? Não canses a cabeça a procurar significados ocultos em tudo, Lapricínio, é só um sonho marado. E o telefone no meio da selva a tocar por trás? Não deve ter voice mail activado, senão aquela menina simpática com quem gosto tanto de falar já tinha atendido a pedir para deixarem recado. Acho que posso esgueirar-me por entre estes dois ramos. Estas bagas são muito curiosas, até me apetecia comer uma.

O homem aproximou a pinça formada pelo indicador e o polegar da mão direita da brilhante baga mas, no instante em que lhe tocou, esta explodiu libertando uma pequena nuvem de gás verde fluorescente.

Olha. Giro. Isto afinal são pequenas bolhas de gás. Se isto está a sair do meu inconsciente, deve ter alguma significado, mas qual? Bom, vamos lá atender a merda do telefone que já me está a irritar, e para isso chega-me a vida real.

O movimento nos ramos do arbusto provocado pela passagem do homem fez rebentar quase todas as bagas cujo conteúdo deixou no ar um cheiro singular mas agradável, como uma extraordinária especiaria desconhecida. Ao chegar ao outro lado do arbusto deparou-se com uma pequena mesa redonda cuja única perna assentava no chão no que parecia tentar imitar a pata de uma ave, sobre a qual tocava incessantemente o procurado telefone. Era um enorme aparelho de aspecto muito antigo, branco com detalhes em dourado, sem qualquer fio visível. O homem, agastado pelo contínuo soar do telefone, atendeu prontamente.

- Tá lá? Quem é que fala?

- Filho, consegues ouvir-me, meu amor?

- Almerinda? És tu, querida?

- Não me deixes, por favor.

- Ninguém vai deixar ninguém, tem calma contigo. Onde é que estás?

- Eu não sei o que fazer sem ti. Volta para mim, tens que voltar para mim.

- Claro que volto! Podes começar por dizer-me onde estás. Isso ajudava.

- Não vou desistir de ti, ouviste? Não vou desistir!

- Estás parva, mulher? Já te disse que não há razão para essa angústia. Só tens que me dizer onde estás. Tás-me a ouvir?

- Se soubesses quanto eu te amo não me fazias isto. Se soubesses, voltavas para mim agora, neste instante.

- Mas tu estás a ouvir-me ou não? Eu estou a tentar voltar para ti, mais ou menos, mas este sonho está cada vez mais estúpido. Tou? Almerinda? Tou?

A voz do outro lado da linha transformou-se num lamento baixo e incompreensível. O homem continuou a tentar comunicar até concluír que não estava a ser ouvido pela outra pessoa. Frustrado, atirou o telefone de volta para o descanso.

Calma, Lapricínio, é só a porra de um sonho. Não era a Almerinda, era só uma manifestação do teu inconsciente. E por favor, não te ponhas agora a tentar interpretar, tens muito tempo para isso quando acordares. E agora? Estou no meio da selva sem saber o que fazer. Se calhar mais valia acordar. Que som é este agora? Tambores? Parece-me demasiado ritmado para não ser, mas claro que podem sempre ser coqueiros inteligentes ou algo do género.

Com alguma dificuldade em perceber a direcção de onde provinha o batuque, o homem tentou seguir uma linha recta, atravessando o mato que parecia afastar-se para lhe dar passagem. Algumas centenas de metros mais à frente, o homem encontra-se na orla de uma enorme clareira onde pôde vislumbrar a origem do som. Era uma tribo de indígenas, vistosamente decorados com plumas e pinturas berrantes. Mais de uma centena de homens dispostos em três fileiras, formando um semi-círculo, marcavam uma rápida e ribombante cadência com os seus tambores, ao ritmo da qual um velho, magríssimo, que aparentava ter mais que cem anos, dançava freneticamente.

O raio do velho mexe-se bem. Deve ter tomado uma daquelas mistelas para contactar com os deuses ou isso. Parece uma marionete.

A medo, o homem aproximou-se devagar e o seu sangue gelou quando, ao dar o passo que o colocava a uns vinte metros do grupo, em perfeita sincronia, todos os tambores se calaram e todos os olhares se dirigiram para ele.

Pronto, já te fodeste, Lapricínio. Nunca soubeste estar quieto no teu canto. Assim que o primeiro pegar numa lança, tu não vais assumir que isto é só um sonho e corres como se não houvesse amanhã, até porque pode não haver mesmo. Nunca morrer, mesmo que seja em sonhos, sempre foi o teu lema. Prepara-te…

O velho baixou-se lentamente e, com ambas as mãos, pegou numa taça de madeira que repousava aos seus pés. Elevou-se com a mesma lentidão e, esticando os braços, ofereceu-a ao homem. Com passos inseguros, o homem aproximou-se do velho e tentou evitar um esgar ao aproximar-se e inalar os vapores emanados pelo líquido verde e viscoso no interior da taça. Com um movimento brusco, o velho encostou a taça ao peito do homem, praticamente obrigando-o a aceitá-la. Ainda desconfiado, o homem elevou lentamente as mãos e permitiu que o velho nelas depositasse a sua oferenda. Baixou os olhos e fitou a beberagem de aspecto nada apetitoso.

Será que eles acham que eu sou um deus, como se vê às vezes nos filmes? Isso é que era… Mas podiam oferendar-me qualquer coisa mais apelativa.

O velho colocou as suas esqueléticas e enrugadas mãos à volta das do homem e dirigiu a taça que nelas repousava na direcção da boca deste. Movido por pouco mais que temor, com uma careta, o homem deu um trago na estranha bebida.

- Onde estou? O que é que aconteceu?

- Filho! Finalmente acordaste, meu amor!! Não saí do teu lado. Eu sabia que não me ias abandonar, Gervásio.

- Mas, mas… Quem és tu??

6 comentários:

Anónimo disse...

Humm...smells like...A....r :D analana

grassa disse...

Pá, vou imprimir isto e levar para ler a caminho de casa.

Amanhã logo te digo qualquer coisa.

Nawita disse...

Ah ah ah ah ah!
Grassa eu fiz o mesmo.

Epá RZ isto está altamente, ele anda a fazer viagens extra-corporais, inter-corporais, alfa pendulares, enfim, estás a ver o que quero dizer…
Eu também ia adorar acordar num corpo que estivesse numa praia paradisíaca, sem canibais claro. E infelizmente ia começar, como ele, a tentar interpretar tudo.
Isso das mulheres chamarem de filho aos homens faz impressão, não é bebé?

Isa disse...

RZ pá!

Isto está muito bom! Já experimentaste mandar uns textos assim para o LOST?

Rodovalho Zargalheiro disse...

Analana,

Sorry... Took a bath, meanwhile :)


Grassa,

Obrigado. Só espero que tenha sido em papel reciclado, já que a qualidade literária dificilmente justificará o impacto ambiental :)


Nawita,

Idem e... A mim, nem a minha mãe me trata por filho... Ó de mim...


Isa,

Thanks! :) Era uma ideia, se eles não tivessem já estragado aquilo tudo...

grassa disse...

Obrigado eu.

Não pelo texto, mas pela imprevisibilidade no final.