quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Um dia escrevi isto

31-01-2005

- “Agasalha-te, deve estar frio”, disse ela num tom maternal que me fez ranger os dentes; respondi com uma onomatopeia e saí para a manhã bucólica de Outono. “Merda! Está um frio de rachar” murmurei enquanto a brisa gélida me lambia a face, “estou a ver que vai ser mais um daqueles dias!”. Meti-me no carro e segui até casa do X; ele já estava à porta, com o seu característico sorriso matinal de quem acorda com a melhor das disposições, eufórico com a vida. Como aquele sorriso me irrita! Todas as manhãs me apetece carregar a fundo no acelerador e deixar aquele sorriso envolto em fumo de escape e simplesmente fugir dele; mas não, ele não tem culpa de ser tão feliz, de achar perfeita a sua vidinha inútil.
- “Bom dia”, disse, como ser fosse uma verdade inegável;
- “Não sei o que é que ele tem de bom. Estamos aqui quando podíamos estar na cama, e ainda por cima está um frio insuportável!”;
- “Sabes, isto pode parecer idiota, mas eu gosto deste frio, faz-nos sentir vivos!”;
- “Tens razão!”;
- “O quê? Concordas?!”,
- “Sim, realmente parece idiota!”.
O resto da viagem até ao emprego decorreu em absoluto silêncio.
- “Almoçamos?”
- “Whatever!”
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- “Não sei porque é que suporto essa tua constante boa disposição! Se soubesses como me irrita...”,
- “Eu sei que te irrita, e, se queres mesmo saber, isso até me dá um certo gozo! Mas queres saber porque é que me suportas? É pela mesma razão que eu te suporto. Tu precisas de mim para não dares um tiro na cabeça, da mesma forma que eu preciso de ti para me manteres em contacto com a realidade. Ser um bom optimista não é tentar acreditar que o mundo é perfeito, mas sim ver a realidade de um ponto de vista positivo e construtivo. É engraçado, o meu optimismo irrita-te enquanto o teu pessimismo me diverte! Não achas que serias muito mais feliz se fosses mais como eu?”
- “E como é que propões que eu faça isso? Como é que eu posso pensar que existe um lado positivo no facto da ementa de hoje ser execrável, quando só de olhar para ela me apetece vomitar?”
- “Se calhar o segredo passa por reduzir o número de coisas que odeias e que te irritam.”
- “Não achas que é um bocado estúpido achar que uma pessoa pode controlar isso? Como é que eu faço para gostar de uma coisa de que não gosto?”
- “Bom, suponho que terás razão nisso, mas um bom começo seria não deixares as coisas que não gostas afectarem-te tanto. Obriga-te a, em vez de praguejar, tirar o melhor partido da situação. Em que é que o pessimismo te ajuda a resolver os problemas?”
- “Ajuda-me a estar preparado para o pior! Poupa-me desilusões”
- “E rouba-te a alegria!”
- “Qual alegria?”
- “A alegria de viver, de poder contemplar a beleza que nos rodeia, de amar!”
- “Vamos pedir que já estou a ficar enjoado!”
Pedi o que me pareceu mais suportável e ele pediu o mesmo.
- “Pergunto-me o que é que te terá feito ficar assim.”
- “O mundo não é um lugar belo, está cheio de humilhação e sofrimento. O ser humano não é humano, é o mais selvagem dos animais!”
- “Mas em que é que a tua postura ajuda? Quando passas por uma pessoa com fome e não tens nada para lhe dar, o que é que achas que ajuda mais a pessoa? Ofereceres um sorriso e umas palavras de conforto e esperança ou sentares-te ao lado dele ajudando-o a praguejar e maldizer o seu fado?”
- “Sabes, acho que a irritação que me provocas é no fundo inveja. A verdade é que eu admiro a tua visão da vida, e se pudesse ser como tu num estalar de dedos, não pensava duas vezes. Mas não consigo. Será patológico? Devo procurar ajuda profissional?”
- “Eu sou da opinião de que temos todas as capacidades necessárias de fazer a nossa auto psicanálise. Temos é que conseguir racionalizar as coisas e encarar e admitir para nós próprios os nossos defeitos, resistindo ao impulso natural da negação.”
- “Nunca vou conseguir!”
- “Às vezes acho que tu gostas de ser assim, que curtes a depressão. Tinhas razão, a comida foi uma desilusão! Amanhã será melhor!”
Contei até dez.
- “Querem vir jantar a nossa casa? É Sexta-feira, podemos ver um filme.”
- “Por mim tudo bem, vou falar com ela.”

Não sei se foi a conversa do almoço, mas curiosamente passei a tarde quase sem me irritar, se calhar já estou a ficar habituado à incompetência.
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- “Abres a porta? Devem ser eles.”
- “Tenho alternativa?”
Abri a porta e lá estava o sorriso aberto. No entanto desta vez transmitiu-me uma inexplicável sensação de calor. Deve ser do vinho que bebi enquanto fazia o jantar.
- “Boas! Entrem e ponham-se à vontade.”
Seguiu-se o habitual, e tratando-se do X, excessivamente caloroso, ritual de cumprimentos.
- “O jantar vai ser bacalhau pessimista!”
- “E estará bom?”
- “Dificilmente! Mas desde quando é que isso é um problema para ti?”
- “Não é. A comida é a parte menos importante do jantar. É preciso ajuda para alguma coisa”
- “Podem ir começando a pôr a mesa. A comida está quase pronta.”
Eles cumpriram e atacámos o bacalhau. Estava bom.
- “Então? Há novidades? Como é que vão as coisas?” Perguntou Y
- “A mesma merda de sempre!” Respondi antes que a W pudesse dizer algo.
- “Porque é que tens sempre que tentar estragar o ambiente?” Perguntou ela.
- “Não estava a tentar nada, simplesmente respondi honestamente.”
- “Pronto, pronto. Foi só uma daquelas perguntas standard. Não é preciso estarem já a chatear-se.”
- “É que esta atitude perante a vida começa a afectar-me os nervos. Está sempre tudo mal. Qual é o meu papel no meio disto? Se não sirvo para o fazer feliz, o que é que eu estou aqui a fazer?”
- “Sombra!”
“Eu estou a falar a sério! Isto está a esgotar-me as forças. Não quero tornar-me maníaco - depressiva! Como é que eu lido com esta merda?”
“Que tal calada?”
Ainda recebi um olhar fulminante antes de ela se ir fechar no quarto.
“Não estava a contar o tempo, mas parece-me que foi um novo recorde!”
“Isto diverte-te? Como tu não está feliz, tens que estragar a noite das outras pessoas?”
“Parece-me que, desta vez, até fui eu a ter a atitude mais cool.”
“Pois, tu só és cool quando estás a gozar com a estabilidade emocional das pessoas. Não vês que ela gosta de ti e quer ser feliz ao teu lado? Porque é que tu não deixas que os teus amigos te ajudem? Vou falar com ela.”

“É impressionante como vocês conseguem manter esta amizade há tanto tempo.”
“É mais uma relação amizade/ódio!”

“Deixa lá, não fiques assim”, confortou X.
“E fico como? Já não aguento as merdas dele!”
“Ele está a passar uma fase difícil. Eu acho que ele, no fundo, está revoltado por estar a ser obrigado a crescer, a ter responsabilidades e já não poder fazer o que lhe dá na cabeça.”
“Mas não é justo que gostar dele tenha um preço tão alto! Já tenho dúvidas que eu significo alguma coisa para ele”
“Eu acho que, de certa forma, ele te culpa, porque foste tu que fizeste tudo acontecer, foi ter-te conhecido que o fez avançar no seguimento normal da vida, casar, constituir família, e isso mostra o que significas para ele; e não acho que esteja arrependido, é só um problema de adaptação. Tenho a certeza que, com a tua ajuda, ele vai ultrapassar esta fase.”
“Mas eu não sei como agir. Acho que não cumpri as expectativas dele.”
“Porque é que não experimentas psicologia inversa? Quando ele está para desatinar, tu levas a coisa na boa e reages com extrema boa disposição, brinca com ele; mesmo que não resulte sempre evitas que a coisa descambe. Pensando nisso, acho que no fundo é como eu tenho conseguido ser amigo dele, embora o faça mais para o chatear.”

8 comentários:

Funny Analana disse...

..."o que é que eu estou aqui a fazer?”
"sombra"
Gosto tanto desta parte :) :) :)

anatcat disse...

Cool essa relação.

Conheço pessoas exactamente do tipo X e pessoas exactamente do tipo... do outro tipo, pronto.

Rodovalho Zargalheiro disse...

Também gosto bastante do:
"...Como é que eu lido com esta merda?"
"Que tal calada?"
:)

Rodovalho Zargalheiro disse...

Pois que no fundo, só há mesmo dois tipos de pessoa. Os que pensam como eu e os outros ;)

Isa disse...

E escreveste muito bem.

Gostei particularmente da parte em que o cinismo do pessimista se recusa a dar-se por conquistado.
O X, um sábio. Um bocado enjoativo(como todos os sábios) ao princípio mas ganhou o meu respeito com a conselho que deu à amiga no final.
Nada como psicologia invertida para lidar com os natural born do contra.
Moro com um e comigo tem funcionado bem.

Nawita disse...

Ah ah ah ah
Muito bom mesmo.
Confesso que foi necessário fazer um esforço para não deixar que tanto o optimista como o pessimista me enervassem. Eles são mesmo bons no que fazem.

A Isa também tem razão.

grassa disse...

Pá, percebes que qualquer dia me chamam à atenção pelas folhas que gasto em impressões aqui no trabalho, não percebes?

Segunda-feira logo te digo qualquer coisa.

Rodovalho Zargalheiro disse...

Muito obrigado a todos :)

E sim, a mim também me irritam bastante os dois.

(e as árvorezinhas, Grassa, pensa nas árvorezinhas)