quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

A lesma

A lesma passeava pelos pés doridos do Sr. Malaquias enquanto ele, depois de despir as calças e se colocar mais à vontade, desentorpecia as costas, de pés no chão, mas deitado na cama. Depois de se esticar o mais que conseguia, com um suspiro, descontraiu de uma vez todos os músculos e deixou-se ficar a desfrutar o relaxamento, olhando distraidamente para o casulo que uma larva, provavelmente de traça, tinha construído no tecto do quarto.

Deitou-se de lado, atravessado na cama, mesmo a tempo de ainda ver desaparecer a parte traseira da centopeia que deslizou para debaixo da sua almofada. Suspirou outra vez quando a aranha que vivia no canto por cima da sua cabeceira começou a descer pelo seu fio de seda. Que inveja, disse à aranha, não percebo porque é que os budistas ou os taoistas ou lá quem quer que seja que acredita naquela parvoíce que diz que reencarnamos segundo o nosso karma e que ser humano é já quase o fim da linha. Não percebo porque é que se há-de achar tão bom ser-se humano, continuou, até parece que sermos inteligentes contribui para a nossa felicidade. Tenho a certeza que és muito mais feliz que eu, continuou o Sr. Malaquias dirigindo-se à aranha que entretanto tinha já atingido a mesa de cabeceira e parado, como se realmente estivesse a ouvi-lo, não era muito melhor poder descer do cimo de um prédio por um fio produzido pelo nosso corpo? Talvez fosse estranho ao princípio, ter algo tipo um cabo de aço a sair-me do cu, mas nada é perfeito, não é? E acabamos por nos habituar a tudo, não é? Não contribuiria muito mais para a minha felicidade do que ser inteligente? Ou poder voar, poder subir paredes, dar saltos gigantescos, não ter praticamente preocupações na vida… Sim, era muito melhor que ser inteligente! Invejo-vos a todos. A todos! Enquanto proferia a última frase alternou o olhar entre a aranha, as moscas que pairavam no ar, terminando na barata que subia a parede oposta, ao lado do poster do homem aranha que tinha há mais de quarenta anos. Suspirou outra vez, sem sequer se aperceber que a lesma lhe subia pela perna.

Fechou os olhos e imaginou-se um híbrido homem/louva-a-deus gigante a destruir uma cidade sem piedade. Não era por ser mau, disse a si próprio, era apenas porque seria desprovido de qualquer coisa minimamente próxima de ética ou compaixão. Porque seria totalmente livre de fazer o que os meus instintos me dissessem para fazer. Não mataria as pessoas por ser um assassino impiedoso. Mataria movido pelos instintos mais básicos, por fome, por medo e acharia normal. Depois de se tranquilizar que a sua fantasia não o transformava num monstro sanguinário que se satisfazia com o sofrimento dos mais fracos, continuou a ver o filme na sua cabeça. Prédios ruíam com um simples piparote, as pessoas eram como pipocas entre as suas mandíbulas. Crocantes. Deliciosas… Totalmente absorto, o Sr. Malaquias nem sequer sentiu a lesma quando ela já deslizava pela sua coxa. Depois, quando estivesse satisfeito, com um gigantesco salto, voaria através das nuvens, sentindo o vento da liberdade nas antenas. Olhou, melancólico, para o poster. Porque é que não existem mesmo aranhas radioactivas capazes de nos dar parte dos seus poderes? Perguntou a todos os presentes. Ou insectos, ou até mesmo celenterados, moluscos! Fechou os olhos e voltou a deixar-se embrenhar pela fantasia sem se aperceber que a lesma tinha já entrado para dentro da sua roupa interior, perigosamente perto da sua genitália. De olhos fechados e com um ténue sorriso nos lábios, o Sr. Malaquias voava dentro da sua cabeça enquanto a lesma, estrategicamente, se posicionava naquele pequeno espaço entre o escroto e o esfíncter anal.

De repente, uma dor aguda fá-lo esbugalhar os olhos e dar um salto da cama. Atónito, enquanto afagava com a mão a região afectada, sentiu que algo estranho se passava no interior do seu corpo. Assustado, sentiu que os seus ossos começavam a perder a rigidez. Sentiu-se a ficar mais pequeno e, olhando para baixo, aterrorizado, verificou que as suas pernas perdiam a sustentação. Causou-lhe particular estranheza que o fenómeno, em vez de o fazer cair, provocou apenas um desabar do seu corpo sobre si mesmo. Gritou enquanto o seu corpo despencava até se transformar em algo disforme. Chorou no momento em que a sua cabeça se afundava na massa que era agora o seu organismo. Demorou algum tempo até se conseguir começar a habituar à sua vida como a lesma humana.

17 comentários:

anatcat disse...

Fez-me lembrar "A Metamorfose".

E acho que o Sr. Malaquias devia ter tido mais atenção quanto à limpeza do quarto.

Nawita disse...

Talvez fosse estranho ao princípio, ter algo tipo um cabo de aço a sair-me do cu, mas nada é perfeito, não é? E acabamos por nos habituar a tudo, não é? Não contribuiria muito mais para a minha felicidade do que ser inteligente? Ou poder voar, poder subir paredes, dar saltos gigantescos, não ter praticamente preocupações na vida… Sim, era muito melhor que ser inteligente!

...
Suspiro!

Seria muito bom, sobretudo viver sem saber que nos podem matar apenas com uma pisadela.


Anatcat,
LOL
tens razão.

Rodovalho Zargalheiro disse...

Os insectos são nossos amigos, não são sujidade :|

Fique a saber, menina Cat que o Sr. Malaquias era uma pessoa muito organizada e asseadinha, apenas sabia viver em harmonia com as demais espécies com quem partilhava o seu habitat. Claro que depois, quando começou a segregar aquela ranhoca por todos os poros, a coisa tornou-se um bocado mais compicada.

Como te compreendo, amiga Nawita, também eu vivo em constante terror de um dia estar tranquilo na minha vidinha, aparecer um pé gigante e esborrachar-me.

Nawita disse...

Neste momento estou a ser esborrachada pela quantidade de coisas a fazer e pelo tempo que não passa.

Rodovalho Zargalheiro disse...

Havendo formas tão melhores de se ser esborrachado...

Isa disse...

Eu estou a lembrar-me de umas quantas ...





Ainda não li nada. Cá voltarei que parece que isto promete!

Rodovalho Zargalheiro disse...

Cá estaremos à tua espera, Isa, sabes que és sempre bem-vinda :)

(hoje estou estranhamente simpático...)

Isa disse...

Obrigada RZ.


(será da aproximação do dia D?)

Rodovalho Zargalheiro disse...

Pensava que a aproximação do dia D era mais coisa para provocar mau feitio.

Isa disse...

Dependendo do efeito ... e do feito, logo se vê!:p

Rodovalho Zargalheiro disse...

Veremos... :)

Funny Analana disse...

Hummm...Slime

Rodovalho Zargalheiro disse...

Slime good?... :)

Isa disse...

Profundo.



Muito lá pró fundo mesmo, caray.

Rodovalho Zargalheiro disse...

Desculpa lá, Isa, foi mesmo sem querer.

Isa disse...

Ainda me doem as "juntas" de ter ido apanhar aquilo tão lá ao fundo, pá!

Anónimo disse...

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