quinta-feira, 24 de março de 2011

Escárnio

Perguntou-me se o rímel lhe ficava bem. Eu respondi que tanto que faria inveja ao Alice Cooper nos seus primórdios. Ficou radiante.
Deve ser tão mais simples viver quando não se conhece o conceito de sarcasmo…

terça-feira, 22 de março de 2011

Fanal

O zumbido da lâmpada era quase inaudível, mas estava lá. Sempre. Bastava que parasse por uma fracção de segundo para que se apercebesse. Já não conseguia dormir, viver sequer, sem a companhia daquele familiar zumbido.
Além dele, estava lá o mar para confortar a sua solidão. O mar… Velho e fiel amigo. Lar dos fantasmas de inúmeros lobos do mar que por vezes também o visitavam. Não estava só, ou, pelo menos, não se sentia só. Nunca tinha tido jeito para as pessoas. Nunca tinha conseguido conversar com alguém como o fazia com as ondas que, incansáveis, teimavam em entregar-se às rochas lá em baixo.
Aquele era o seu mundo, onde se sentia seguro. Um mundo que, apesar de diminuto, o satisfazia plenamente.
Se acaso duvidasse, bastava esperar pelo pôr-do-sol, altura em que acendia o seu cachimbo e se recostava a ver as gaivotas no céu, embaladas pelo vento, sobre aquele fundo repleto de cor. Verdadeira obra de arte da natureza. Um dia deixará ali o seu velho corpo e voará com elas.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Dia 7 - Epílogo

É provavelmente estúpido estar a terminar este relato, já que terá que ser destruído, mas pelo menos não fico com a sensação que deixei algo inacabado.
A rapariga continuava encolhida ao canto, mas estava silenciosa. Os seus olhos esbugalhados fixos em mim como se tivesse percebido que o seu destino estava irremediavelmente traçado. Levantei-me devagar, com a caneta na mão e aproximei-me dela. Pedi-lhe que se levantasse e se encostasse à parede. Ela fê-lo. Sem pensar, como se o meu braço tivesse decidido sozinho, espetei a caneta por detrás da sua traqueia e puxei com toda a minha força. Nunca poderia adivinhar a emoção que me provocou ver os seus olhos perderem o brilho enquanto o seu sangue escorria pelo meu braço, pingando pelo cotovelo. Um orgasmo não chega aos calcanhares do êxtase daquele momento. É indescritível a sensação que tive enquanto a minha mão rasgava freneticamente o seu interior e os seus olhos ficavam eternamente fixos nos meus. Era como se algo dela se estivesse a entranhar em mim. Foi a melhor sensação da minha vida.
Não sei quanto tempo passei em deleite, ensopado em sangue, sentado junto ao cadáver. Já não estava preocupado com absolutamente nada. Senti-me realizado e o facto de a minha existência poder estar em risco de terminar já não me preocupava absolutamente nada. Nunca me tinha sentido tão tranquilo. Quando a porta se abriu limitei-me a levantar calmamente o olhar. A sua expressão era um misto de satisfação e orgulho. Sorriu para mim. Eu sorri para ela.
E foi assim.

Dia 7

Ontem revi as minhas parcas opções e preparei-me psicologicamente para o acontecimento.
Nunca o fiz assim, com as minhas próprias mãos. Gosto de coisas elaboradas, e não sou grande adepto de me sujar. Se a quero impressionar, não vai ser com um vulgar pescoço partido que o vou conseguir. Tem que haver sangue, claro. Seria uma boa prova para mim próprio da minha capacidade de enfrentar e ultrapassar estas barreiras mentais, mas não me agrada mesmo nada a ideia. Preferia deixar isso para quando for mais velho, para quando a coisa começar a deixar de ser gratificante, se lá chegar.
Inevitavelmente, vai ser sujo e rude, mas pronto, é uma ocasião especial. Independentemente do que vai acontecer depois, é nítido o que tenho que fazer.
Vamos a isto!

quinta-feira, 3 de março de 2011

Dia 6

Ainda respiro. Para a maioria das pessoas é algo normalíssimo e sobre o qual nem se pensa, mas, na minha situação, respirar significa muito mais. Significa que ela está indecisa. Sei perfeitamente que, caso ela não estivesse a ponderar confiar em mim, eu já não estaria vivo, portanto, é uma excelente notícia! Claro que não me dá qualquer garantia de que vou sair daqui pelo meu pé, mas pelo menos diz-me que existe uma probabilidade disso.
Fui acordado pela tranca da porta. Uma jovem rapariga foi introduzida no local onde estou cativo. Ainda meio trôpego, olhei para a porta apenas para ver fugazmente um relance do seu rosto a espreitar. Um segundo depois a porta estava novamente trancada. Deixei-me estar deitado de costas, fixando um ponto no tecto, a ponderar a situação. Não estava em questão a razão da presença da infeliz, essa era certa, mas percebi que como o faria poderia definir o meu destino. Esta era a minha oportunidade de lhe mostrar que era digno do seu respeito. Tentei avaliar as minhas opções, mas acabei por não conseguir ignorar por mais tempo a histeria da rapariga. Olhei para ela contendo o impulso de lhe partir o pescoço e ela aparentou perceber que a sua salvação não passava por gritar descontroladamente.
Estranhei ter-se acalmado tão depressa, mas a verdade é que me perdi novamente nos meus pensamentos e não sei ao certo quanto tempo terá passado. Perguntou-me porque estava ali, o que estava a acontecer. Disse-lhe calmamente que ia morrer e, em vez da gritaria para a qual me estava já a preparar, ela limitou-se a encolher-se num canto a soluçar, quase inaudível. O soluçar era muito mais fácil de ignorar e fiquei satisfeito por verificar que conseguia pensar e escrever muito melhor.
Considerando as minhas possibilidades, tentei inferir a que me proporcionaria um maior respeito da parte dela, mas questionei-me imediatamente se seria a abordagem certa. Deveria ser aquilo que achava que ela desejava que eu fosse? Não. Por muito graves que fossem as consequências a única coisa certa a fazer seria ser genuíno. Não queria o respeito dela por algo que eu não faria sem essa pressão.
Com isto coloca-se um problema. Sou uma pessoa meticulosa, alguns diriam até compulsiva. Sigo os meus protocolos quase religiosamente e não estou nada habituado a, qual McGyver, trabalhar com o que tenho à mão. E o que tenho à mão é mesmo muito pouco.
Decidi que não vou fazer nada hoje. Muitas vezes é quando a nossa cabeça repousa na almofada, almofada esta que, neste caso, é completamente metafórica, que as coisas parecem mais claras. 

quarta-feira, 2 de março de 2011

Dia 5 - Hoje

E eis que o meu relato chega ao dia presente. Interessa referir que, neste momento, tenho um doloroso hematoma na cabeça e estou trancado numa cave em sítio incerto. Só estou a ter a possibilidade de escrever isto porque ela, não sei se por condescendência ou por algum prazer cruel, me deixou papel e uma caneta.
Sinto-me um atrasado mental por achar que o cuidado dela era devido a inexperiência. Eu é que sou o inexperiente! Ela teve sempre a situação perfeitamente controlada e eu é que me tornei descuidado. Eu é que tenho que aprender com ela e não o contrário.
Mas… Alguma coisa ela há-de ter visto em mim, já que, ao contrário do que tenho a certeza ter acontecido com os anteriores hóspedes desta divisão (são visíveis os vestígios nas paredes, com vários graus de envelhecimento. É curioso como o sangue vai esverdeando), me foi concedida não só a possibilidade de deixar este testemunho, como o privilégio de ainda ter batimento cardíaco. Dadas as circunstâncias, tenho que me satisfazer com a situação. E tenho ainda a esperança de conseguir alterar o meu fado.
Já escrevi e destruí várias cartas para ela. Concluí que não vai ser com palavras que vou conseguir o que quero. Vou tentar descontrair e esperar que algo aconteça.

terça-feira, 1 de março de 2011

Dia 4 - Ontem

Dizem os livros que as pessoas como eu são extremamente calculistas e pacientes. Eu não o sou. Não tinha ainda tido muito contacto com esta faceta minha, mas apercebi-me que paciente era algo que eu definitivamente não era. Foi aqui que as coisas começaram mesmo a correr mal.
Esperei que ela saísse e, provavelmente disfarçando muito mal, fingi que foi por acaso que acabámos a caminhar juntos. Não aguentei mais e disse-lhe que sabia. Perguntou-me o que é que eu sabia e foi notória a sua preparação para esta situação. O desconhecimento que demonstrou sobre o assunto pareceu tão genuíno que, se não estivesse tão certo das minhas convicções, teria desistido. Isso teria sido sensato, mas não foi o que fiz. Estupidamente, como quem mergulha de cabeça num local desconhecido, sem saber o que se esconde debaixo da superfície da água, disse-lhe. Disse-lhe que sabia o que significava o brilho que ela tinha nos olhos. Disse-lhe que sabia o que ela era e que não precisava de fingir comigo. Erro crasso. Erro que só percebi quando acordei hoje, depois de, sem sequer pensar, ter ontem aceite o convite para passar o serão na sua casa. Esta é a última coisa que consigo recordar deste dia.