E agora, senhoras e senhores, para o meu próximo número vou precisar de um preservativo e de um voluntário. Por razões diversas, os olhos de toda a gente na plateia ficararam esbugalhados. Calma, ha ha, estava a brincar em relação ao preservativo, vou precisar só de um voluntário, ou quem sabe até uma voluntária. Porque não, por exemplo... a menina! Aquela menina tão engraçada de óculos, você, de camisola côr-de-rosa e gancho no cabelo. Sim, você, não se acanhe, suba para o palco, e também não precisa de ter medo, estará segura nas minhas mãos, disse o velho ilusionista com o seu melhor sorriso.
Hesitante e pouco à vontade, Maria subiu os três degraus já gastos que facilitavam o acesso ao palco. Uma salva de palmas para a nossa corajosa voluntária, senhoras e senhores, continuou o prestidigitador enquanto encaminhava Maria para dentro do baú recentemente trazido pela sua assistente. Assim que fecha a tampa do baú com Maria lá dentro, num ápice, pega numa enorme espada e trespassa-o. O público estremeceu, não de assombro pelo acto, já que toda a gente da plateia tinha já visto centenas de truques destes, mas apenas pela brusquidão. O prestidigitador continuou frenético e ao fim de menos de meio minuto já o baú estava cravejado com perto de uma dezena de espadas. O público respondeu ao abrir de braços do prestidigitador com um pouco efusivo aplauso, que este retribuíu com uma vénia excessivamente teatral. Com um gesto, o artista pediu silêncio, o público acatou, entra o rufar da tarola enquanto o prestidigitador começa a retirar as espadas e termina com um toque de pratos no momento em que o velho artista abre o baú e um bando de pombas sai a esvoaçar. O público irrompe em aplauso, muito provavelmente mais pela simpatia e pela carismática figura do velho ilusionista do que pela espectacularidade do número.
Peço desculpa, senhoras e senhores, começou o prestidigitador, mas isto não correu bem como era esperado. Estava a contar ver sair do baú a nossa voluntária, mas isso não aconteceu. Peço alguns momentos de silêncio para tentar recuperá-la, senão poderá ficar para sempre perdida no limbo. A maioria das pessoas do público entrou na brincadeira e fingiu preocupação. O ilusionista voltou a fechar o baú, recitou uma ladaínha numa língua que aparentava ser latim, voltou a abri-lo e, ao som daquele pequeno excerto musical, vulgarmente conhecido como tcha-ran, eis que sai Maria do baú, algo envergonhada, entre balões e serpentinas. Foi a apoteose do espectáculo! Os falsamente expectantes espectadores, paternalistas, aplaudiram sonoramente de pé. O velho artista desfez-se em vénias e por fim apresentou a sua assistente - certamente a sua mulher que, embora provavelmente já não lhe ficasse tão bem como antes, ainda era bem capaz de estar a usar o mesmo fato de lantejoulas de quando tinha iniciado a sua carreira, vinte ou trinta anos antes - para que tivesse também o seu momento de protagonismo sob os focos do palco. Em conclusão, o artista agradeceu a presença dos espectadores e convidou-os a voltar. Estes calmamente começaram a abandonar o velho teatro enquanto o ilusionista guiava Maria pela mão até às escadas que a permitiam descer do palco. Muito obrigado pela sua participação, disse, e deixe-me que lhe diga que eu não acredito que seja o acaso que leva ao meu palco os voluntários para os meus números. Acho que as pessoas acabam a participar nos meus truques por uma razão, uma razão superior, continuou, devo também avisá-la que é possível que haja efeitos secundários, mas não se preocupe, não correrá qualquer risco, concluiu o ilusionista com o seu simpático e permanente sorriso. Maria franziu a sobrancelha ao ouvir as palavras do velhote, mas rapidamente se tranquilizou pensando que aquilo ainda faria parte do número, para manter a ilusão e a fantasia. Despediu-se cordialmente do simpático prestidigitador e dirigiu-se para a porta onde Joaquim já a esperava.
Aquilo não enganou ninguém, até uma criança percebe que o baú tem um fundo falso e que aquilo se faz com os alçapões que há no palco, disse Joaquim enquanto caminhavam até ao carro. Era de facto verdade. Era também verdade que os truques já estavam bastante vistos e ultrapassados. O espectáculo não deixava de ser divertido, mas em termos de ilusionismo já não conseguia competir com os novos talentos, que tinham a tecnologia do seu lado e conseguiam deixar o público estupefacto. Sim, respondeu distraidamente Maria, não tem grande truque. Assim que ele fechou a tampa do baú, alguém me tirou de lá por um alçapão e fiquei debaixo do palco até ser altura de voltar para o baú. No entanto... Foi estranho. Estranho como? Não sei bem explicar, mas parecia que, apesar de tudo, havia ali magia. Magia? Repetiu Joaquim colocando o seu sorriso jocoso que ela tanto odiava. Nem sei porque me dou ao trabalho de falar contigo sobre estas sensações estranhas que tenho. Pronto, não fiques chateada, sabes que me custa compreender essas coisas. A mim também. Achas que compreendo? É um feeling... Mas não quero falar mais sobre isso.
Ninguém proferiu mais nenhuma palavra e estavam já a meio caminho de casa quando Maria avista ao longe, à beira da estrada, o que lhe parece ser um grupo de anões. A estupefacção foi total quando, ao aproximar-se, verificou que eram sete, todos tinham barretes vermelhos e transportavam pás e picaretas. Joaquim reparou na sua boca aberta de espanto e perguntou o que se passava. Maria respondeu que nada se passava, sabia perfeitamente que se lhe dissesse que tinha visto sete anões à beira da estrada, a única coisa que conseguiria era ser gozada durante vários dias.
O resto da viagem decorreu em absoluto silêncio. Normalmente incomodava-a a capacidade de Joaquim para suportar o silêncio, mas não desta vez.
Chegados a casa, Maria apercebe-se de um enorme vulto sobre o telhado, se não soubesse que não existiam, teria achado ser um dragão. Depois de, incrédula, esfregar os olhos, viu o vulto levantar vôo com um par de asas semelhantes às dos morcegos, mas que achou serem demasiado pequenas para permitirem um animal daquele porte voar. Ainda com a perplexidade espelhada na cara, desta vez conseguiu coragem para perguntar a Joaquim se tinha visto alguma coisa. Este, com um ar intrigado, respondeu que não.
Assim que entraram em casa, Maria deixou-se instintivamente cair sobre o sofá. Pensou no ilusionista e no que este lhe tinha dito e achou que estava a ser vítima de sugestão. O ambiente do espectáculo e o que o velho artista lhe tinha dito, associados à sua susceptibilidade e alguma fadiga estavam a fazer a sua mente pregar-lhe partidas. Era isso, de certeza!
Percebendo a sua apatia, Joaquim voltou a perguntar o que se passava, se se sentia bem. Maria desculpou-se com o cansaço, disse que depois de um banho relaxante e de uma noite bem dormida estaria recuperada. Despediu-se e subiu a escada de madeira que dava acesso ao primeiro andar e começou a preparar o seu banho.
Estava tranquilamente deitada na banheira quando a sua visão periférica detectou movimento. Quando olhou nessa direcção teve apenas tempo para ver uma cauda de aspecto réptil desaparecer por debaixo do armário das toalhas. Involuntáriamente soltou um grito que alertou Joaquim. Num ápice, Joaquim irrompe pela casa-de-banho. Está ali um bicho enorme, disse Maria quase em estado de choque, atrás do armário. Joaquim olhou-a incrédulo, mas vendo a sua expressão, sem proferir qualquer palavra, dirigiu-se ao armário. Assim que o afastou, Maria teve que usar toda a sua força para conseguir manter a compostura. Estava uma porta atrás do armário! Uma pequena porta! Pela ausência de reação, facilmente se apercebeu que Joaquim não a via e não hesitou na decisão de não dizer nada. Não vejo bicho nenhum, disse ele desinteressadamente, deves tê-lo imaginado. Maria já não sabia o que dizer e acabou por responder afirmativamente para fechar o assunto.
Deitou-se e tentou descontrair, tarefa que foi dificultada pelas pequenas criaturas brilhantes que esvoaçavam pelo quarto e completamente impossibilitada pela visão de uma enorme aranha a subir pela parede. Puxou os cobertores para que lhe cobrissem completamente a cabeça e voltou a pensar no velho ilusionista e no que este lhe tinha dito. Achou que as visões teriam que estar relacionadas com ele, talvez a tivesse hipnotizado. Lembrou-se então que ele lhe tinha dito para não se preocupar pois não corria qualquer risco. Esta memória conseguiu tranquilizá-la um pouco, mas só conseguiu dormir quando Joaquim foi para a cama.