“O ID63??? Não, não sei nada sobre isso!” Foi o que quase toda a gente me respondeu com a voz trémula de terror; com excepção de alguns que, desconfiadamente, apenas referiram que não pronunciavam aquela designação, enquanto continuavam apressadamente o seu caminho, visivelmente perplexos com meu interesse.
Encontrei por fim um ancião, notoriamente demente, que se dizia um conjurador de anjos e demónios. Depois de inúmeras e assustadoras advertências, no meio do seu delírio conseguiu indicar-me o covil do monstro. Indicações que segui com alguma dúvida, mas que se provaram exactas.
Aproximei-me cuidadosamente e lá estava ele, o ID63, a majestosa besta! Estudei-a, analisei-a, procurei as suas fraquezas e por fim descobri o âmago da sua fragilidade. Decidido, elaborei um plano de ataque, revi-o minuciosamente e acreditei no meu sucesso.
Reuni toda a minha coragem e, no momento certo, avancei para o perverso prodígio. Aquele que, de tão grotesco e infame, não tem nome. Aquele que apenas mereceu uma identificação numérica, e mesmo essa, capaz de induzir pavor no coração dos mais audazes.
A vil criatura percebeu a minha aproximação e virando o seu temeroso focinho na minha direcção, urrou de tal forma que não só senti as vibrações no diafragma, como consegui também sentir o calor fétido do seu hálito.
Tinha passado o ponto sem retorno, o confronto era inevitável. Avancei para o abjecto ser enquanto ele, com outro urro que pareceu fazer tremer a terra por debaixo dos meus pés, avançou para mim. Cada um de nós acelerando o seu passo, a adrenalina a tomar conta de mim, o tempo a parecer distender-se, o embate estava iminente e…
sexta-feira, 30 de março de 2007
terça-feira, 27 de março de 2007
Fadinho da Carla
Disseram que eras bravia,
Que seria um erro crasso.
Confiando no meu siso,
E sem ligar ao aviso,
Fui morar no teu regaço.
Vi depois que foi simpatia,
Bravia era só um ensaio.
Mera mentira piedosa,
Eufemismo, simples prosa,
Tu és é reles cumó raio!
Não venho para aqui lamentar-me,
Sabemos que há espinhos na rosa.
Quem ama por gosto não cansa,
Quem espera sempre alcança,
Talvez fiques menos ranhosa.
Mas estava no meu destino
Que ia acabar ao teu lado.
E ainda que mal cantado,
Tinhas sempre que ser tu
A dona deste meu fado.
Que seria um erro crasso.
Confiando no meu siso,
E sem ligar ao aviso,
Fui morar no teu regaço.
Vi depois que foi simpatia,
Bravia era só um ensaio.
Mera mentira piedosa,
Eufemismo, simples prosa,
Tu és é reles cumó raio!
Não venho para aqui lamentar-me,
Sabemos que há espinhos na rosa.
Quem ama por gosto não cansa,
Quem espera sempre alcança,
Talvez fiques menos ranhosa.
Mas estava no meu destino
Que ia acabar ao teu lado.
E ainda que mal cantado,
Tinhas sempre que ser tu
A dona deste meu fado.
segunda-feira, 26 de março de 2007
Exercício descritivo
É monumental! De ambos os lados da movimentada estrada, passeios espaçosos e ricamente decorados envolvem verdadeiros jardins rodeados por plátanos de várias idades, no centro dos quais se alinham fileiras de altíssimas palmeiras de variadas espécies, cercadas por uma miríade de arbustos floridos e impecavelmente tratados. Antes de começar a caminhar ao longo da calçada, eximiamente elaborada com complexos motivos, deixei o meu olhar percorrer o percurso que ia efectuar, surpreendendo-me com a riqueza visual, cultural e até biológica daqueles passeios. Nas extremidades dos alongados jardins vêm-se monumentos, inúmeras estátuas de ilustres, desconhecidos de muitos, e algumas árvores bastante incomuns. A minha atenção deteve-se numa espécie de palmeira de aparência algo extraterrestre. O seu grosso tronco principal não mede mais que alguns palmos, a partir de onde se projectam vários ramos, ou troncos secundários, um pouco mais finos e de aspecto áspero. Todos estes troncos secundários são completamente isentos de ramificações e as únicas folhas, longas e pontiagudas como a ponta de uma espada, projectam-se da sua extremidade em todas as direcções, formando com as suas pontas uma esfera quase perfeita. Noutras, semelhantes e igualmente estranhas, os ramos brotam de uma massa no chão e as folhas nas extremidades são em forma de leque. Deliciei-me com estes originais seres vivos que pareciam saídos de um deserto e iniciei a minha caminhada ao longo daquela extraordinária avenida.
Passeava lentamente, numa tentativa de observar tudo pelo caminho, mas a paisagem é tão rica em pormenores que por vezes tinha que parar por alguns momentos para apreciar plenamente o que me rodeava. Um bom exemplo é o quiosque de aspecto secular cujos floreados e elaboração estética me fizeram dar algumas voltas em seu redor. É um hexágono formado por placas de metal grosseiramente pintadas de verde, de aspecto robusto e oxidado, que nas arestas são unidas com uma peça do mesmo metal, artisticamente elaborada com motivos complexamente retorcidos que aparentavam ter sido inspirados tanto nas plantas como no fogo. O telhado é formado por uma estrutura semelhante à base, também com os mesmos ornamentos nas extremidades, que serve de suporte a um toldo branco, coberto com as mesmas folhas secas que se espalham pelo chão e se acumulam nos cantos. Por dentro, por entre um mar de revistas e afins que não permitia ver mais que o seu busto, um homem de rosto vincado e ar enfadado, cuspia constantemente os pedaços de tabaco que o seu cigarro sem filtro lhe deixava na boca. Os seus olhos fundos observaram-me debaixo da sua boina preta, enquanto esquadrinhava o seu estabelecimento, e voltaram ao seu marasmo quando prossegui o meu caminho.
Mais abaixo detenho-me diante de um plácido lago ao longo de uma parte do passeio, em cuja extremidade se encontra uma fonte, onde sobre uma enorme rocha carcomida, está uma estátua de aspecto antigo retratando um homem seminu de longas barbas e cabelos, que segura um pote de onde jorra a água. Dir-se-ia o próprio Poseidon, ali, no centro de um passeio de uma das avenidas mais movimentadas da cidade, um deus despercebido que ninguém adorava.
Depois de observar, fascinado, todos os pormenores da estrutura, que dir-se-ia saída de um jardim grego da antiguidade; delirante com os pequenos tesouros que se podem encontrar no coração de uma atarefada cidade; voltei a minha atenção para os transeuntes. Cada um seguindo o seu caminho, a maioria em passo acelerado, de olhos no chão ou no infinito. Ninguém parecia ver nada à sua volta, ninguém desfrutava da paisagem, dos magníficos pormenores que esta avenida oferece. A própria calçada é uma verdadeira obra de arte e certamente nem os que iam de olhos no chão a iam realmente a ver. A única excepção foi aquele homem de meia-idade, que aparentava envergar apenas um comprido casaco preto, muito gasto, que, além de um fino triângulo do seu peito amarelado, apenas permitia ver os seus tornozelos e pés encardidos que preenchiam umas sandálias que certamente já tinham palmilhado muitas centenas de quilómetros. Entre as madeixas que desordenadamente lhe caíam de ambos os lados da face magra e escurecida, acabando por se dissimular numa barba de aspecto áspero e sujo, apresentava uns olhos azuis esbugalhados, praticamente a única coisa que conseguia sobressair da selva desgrenhada que era a sua cabeça. Enquanto caminhava devagar, movia a cabeça em todas as direcções, perdendo - ou será mais correcto dizer - empregando todo o tempo necessário para observar minuciosamente tudo à sua volta. Parecia, como eu, fazer questão de observar em vez de apenas olhar, querer beber tudo o que o rodeia, absorver o mundo! Ponderei se seria triste o facto de, no meio de tanta gente, a única pessoa com quem me tinha conseguido identificar minimamente, ter sido um vagabundo, visivelmente afectado mentalmente. Achei que não.
Desço mais um pouco e decido sentar-me num dos bancos de jardim que se perfilavam ao longo do passeio. De estrutura metálica, já esverdeada pelo tempo, sobre a qual se alinhavam tiras de madeira, escura, gretada e ressequida, onde, gravadas, se conseguiam ainda vislumbrar antigas promessas de amor. O banco rangeu em uníssono com o meu suspiro de prazer ao descontrair-me e sentir nas costas o calor do sol ali armazenado. Imaginei que o ranger do banco foi também um suspiro de prazer, de satisfação por uma dos milhares de pessoas que por ali passavam o ter usado, fazê-lo sentir-se útil, real, verdadeiro, sentir-se de facto um banco! Senti-me muito bem.
As minhas divagações foram interrompidas por um bando de pombos que, alvoraçadamente, apareceu, como que vindo do nada. Cerca de um minuto depois apercebi-me que o enorme bando seguia uma senhora já muito idosa, muito baixa e magra, que caminhava lentamente ao longo da avenida. A sua postura encurvada, a sua indumentária completamente preta e o enorme xaile, igualmente preto, que pendia sobre a sua cabeça e envolvia os seus ombros descaídos, escondendo grande parte do seu rosto enrugado, provavelmente mais pelas amarguras da vida do que pelo devorar do tempo, faziam a sua silhueta parecer ainda mais insignificante.
Notava-se a excitação dos pombos a aumentar enquanto seguiam a velha senhora, terminando num clímax de euforia quando esta se sentou no banco a seguir ao meu e fez aparecer, como que por magia, um enorme saco de milho e, também como que através de um qualquer sortilégio, desapareceu no meio dos pombos que a envolviam freneticamente. Com excepção de alguns indivíduos visivelmente doentes, os pombos pareciam bastante saudáveis e bem alimentados. A sua plumagem em tons cinzentos e azulados apresentava belos reflexos verdes quando lhe batia o sol. E enquanto se acotovelavam - se é que tal termo se pode aplicar a aves - presenteavam o observador com um verdadeiro espectáculo de luz e cor; uma verdadeira tela viva.
Deixei-me ficar, a observar os pombos na sua azáfama para disputar os grãos que se espalhavam pela calçada e, quando o turbilhão começou a esmorecer, diverti-me com os seus rituais de acasalamento. Os machos, inchados, incansáveis, exibindo-se para elas, e elas a fugir, de tal forma desinteressadas que admirei a perseverança deles; aquele tipo de indiferença é coisa para frustrar os mais obstinados, mas eles, impassíveis, voltavam à carga. Esperam vencer pela exaustão, suponho. Senti alguma vergonha pela minha espécie ao pensar que os humanos, nos seus jogos de acasalamento, acabam por não ser assim tão diferentes dos pombos...
Passeava lentamente, numa tentativa de observar tudo pelo caminho, mas a paisagem é tão rica em pormenores que por vezes tinha que parar por alguns momentos para apreciar plenamente o que me rodeava. Um bom exemplo é o quiosque de aspecto secular cujos floreados e elaboração estética me fizeram dar algumas voltas em seu redor. É um hexágono formado por placas de metal grosseiramente pintadas de verde, de aspecto robusto e oxidado, que nas arestas são unidas com uma peça do mesmo metal, artisticamente elaborada com motivos complexamente retorcidos que aparentavam ter sido inspirados tanto nas plantas como no fogo. O telhado é formado por uma estrutura semelhante à base, também com os mesmos ornamentos nas extremidades, que serve de suporte a um toldo branco, coberto com as mesmas folhas secas que se espalham pelo chão e se acumulam nos cantos. Por dentro, por entre um mar de revistas e afins que não permitia ver mais que o seu busto, um homem de rosto vincado e ar enfadado, cuspia constantemente os pedaços de tabaco que o seu cigarro sem filtro lhe deixava na boca. Os seus olhos fundos observaram-me debaixo da sua boina preta, enquanto esquadrinhava o seu estabelecimento, e voltaram ao seu marasmo quando prossegui o meu caminho.
Mais abaixo detenho-me diante de um plácido lago ao longo de uma parte do passeio, em cuja extremidade se encontra uma fonte, onde sobre uma enorme rocha carcomida, está uma estátua de aspecto antigo retratando um homem seminu de longas barbas e cabelos, que segura um pote de onde jorra a água. Dir-se-ia o próprio Poseidon, ali, no centro de um passeio de uma das avenidas mais movimentadas da cidade, um deus despercebido que ninguém adorava.
Depois de observar, fascinado, todos os pormenores da estrutura, que dir-se-ia saída de um jardim grego da antiguidade; delirante com os pequenos tesouros que se podem encontrar no coração de uma atarefada cidade; voltei a minha atenção para os transeuntes. Cada um seguindo o seu caminho, a maioria em passo acelerado, de olhos no chão ou no infinito. Ninguém parecia ver nada à sua volta, ninguém desfrutava da paisagem, dos magníficos pormenores que esta avenida oferece. A própria calçada é uma verdadeira obra de arte e certamente nem os que iam de olhos no chão a iam realmente a ver. A única excepção foi aquele homem de meia-idade, que aparentava envergar apenas um comprido casaco preto, muito gasto, que, além de um fino triângulo do seu peito amarelado, apenas permitia ver os seus tornozelos e pés encardidos que preenchiam umas sandálias que certamente já tinham palmilhado muitas centenas de quilómetros. Entre as madeixas que desordenadamente lhe caíam de ambos os lados da face magra e escurecida, acabando por se dissimular numa barba de aspecto áspero e sujo, apresentava uns olhos azuis esbugalhados, praticamente a única coisa que conseguia sobressair da selva desgrenhada que era a sua cabeça. Enquanto caminhava devagar, movia a cabeça em todas as direcções, perdendo - ou será mais correcto dizer - empregando todo o tempo necessário para observar minuciosamente tudo à sua volta. Parecia, como eu, fazer questão de observar em vez de apenas olhar, querer beber tudo o que o rodeia, absorver o mundo! Ponderei se seria triste o facto de, no meio de tanta gente, a única pessoa com quem me tinha conseguido identificar minimamente, ter sido um vagabundo, visivelmente afectado mentalmente. Achei que não.
Desço mais um pouco e decido sentar-me num dos bancos de jardim que se perfilavam ao longo do passeio. De estrutura metálica, já esverdeada pelo tempo, sobre a qual se alinhavam tiras de madeira, escura, gretada e ressequida, onde, gravadas, se conseguiam ainda vislumbrar antigas promessas de amor. O banco rangeu em uníssono com o meu suspiro de prazer ao descontrair-me e sentir nas costas o calor do sol ali armazenado. Imaginei que o ranger do banco foi também um suspiro de prazer, de satisfação por uma dos milhares de pessoas que por ali passavam o ter usado, fazê-lo sentir-se útil, real, verdadeiro, sentir-se de facto um banco! Senti-me muito bem.
As minhas divagações foram interrompidas por um bando de pombos que, alvoraçadamente, apareceu, como que vindo do nada. Cerca de um minuto depois apercebi-me que o enorme bando seguia uma senhora já muito idosa, muito baixa e magra, que caminhava lentamente ao longo da avenida. A sua postura encurvada, a sua indumentária completamente preta e o enorme xaile, igualmente preto, que pendia sobre a sua cabeça e envolvia os seus ombros descaídos, escondendo grande parte do seu rosto enrugado, provavelmente mais pelas amarguras da vida do que pelo devorar do tempo, faziam a sua silhueta parecer ainda mais insignificante.
Notava-se a excitação dos pombos a aumentar enquanto seguiam a velha senhora, terminando num clímax de euforia quando esta se sentou no banco a seguir ao meu e fez aparecer, como que por magia, um enorme saco de milho e, também como que através de um qualquer sortilégio, desapareceu no meio dos pombos que a envolviam freneticamente. Com excepção de alguns indivíduos visivelmente doentes, os pombos pareciam bastante saudáveis e bem alimentados. A sua plumagem em tons cinzentos e azulados apresentava belos reflexos verdes quando lhe batia o sol. E enquanto se acotovelavam - se é que tal termo se pode aplicar a aves - presenteavam o observador com um verdadeiro espectáculo de luz e cor; uma verdadeira tela viva.
Deixei-me ficar, a observar os pombos na sua azáfama para disputar os grãos que se espalhavam pela calçada e, quando o turbilhão começou a esmorecer, diverti-me com os seus rituais de acasalamento. Os machos, inchados, incansáveis, exibindo-se para elas, e elas a fugir, de tal forma desinteressadas que admirei a perseverança deles; aquele tipo de indiferença é coisa para frustrar os mais obstinados, mas eles, impassíveis, voltavam à carga. Esperam vencer pela exaustão, suponho. Senti alguma vergonha pela minha espécie ao pensar que os humanos, nos seus jogos de acasalamento, acabam por não ser assim tão diferentes dos pombos...
quarta-feira, 14 de março de 2007
Graça surpreendente
Andar de transportes públicos pode ser cansativo e até desconfortável, mas é também uma excelente oportunidade para observar o ser humano. Se tivermos alguma sorte, e nem é preciso muita, então conseguimos deparar-nos com verdadeiros casos de estudo, como o indivíduo com quem partilhei o metropolitano esta manhã.
Aparentemente tratava-se de uma pessoa que, como a grande maioria das outras que usufruíam daquele transporte, se dirigia para o seu emprego e, caso se mantivesse calada, não seria distinguível dos demais.
Mas distinguia-se, bastante mesmo, devido ao facto de ter decidido aproveitar a sua viagem para pregar às massas. De referir que não acho que seja nada a condenar, admiro até as pessoas que têm presença suficiente para o fazer, e esta tinha-a com fartura, dir-se-ia até que seria movida por uma encomenda divina.
Creio que não pregava nada de prejudicial, aparentemente manifestava-se contra a falta de respeito pelos outros (roubo, mentira, violência, homicídio, etc.), contra a fornicação, a favor do amor e em defesa das mulheres, tentando demonstrar-lhes os castigos divinos para a referida prática demoníaca, aparentemente a principal causa de partos difíceis e até mortais, provavelmente por ordem crescente de grau de empenho na dita.
Dado que se movimentava de forma a conseguir que as suas palavras chegassem ao maior número de pessoas possível, não consegui apanhar todo o discurso, mas aparentemente todos os males da nossa sociedade; entre os quais consegui distinguir os incêndios florestais que, dada a espiral descendente de autodestruição em que nos encontramos, vão aumentar; se devem a estas questões. Quem sabe não tem razão?...
Estava já eu plenamente satisfeito, deleitado até, com a oportunidade de ouvir os ensinamentos desta profetisa que nem me pareceu completamente lunática, quando a experiência conseguiu tornar-se mais sublime. Tendo tido o privilégio de sair na mesma estação, pude ainda testemunhar a entoação, sonante e exímia, do que me pareceu ser uma versão portuguesa de “amazing grace”. Que pessoa fascinante!
Aparentemente tratava-se de uma pessoa que, como a grande maioria das outras que usufruíam daquele transporte, se dirigia para o seu emprego e, caso se mantivesse calada, não seria distinguível dos demais.
Mas distinguia-se, bastante mesmo, devido ao facto de ter decidido aproveitar a sua viagem para pregar às massas. De referir que não acho que seja nada a condenar, admiro até as pessoas que têm presença suficiente para o fazer, e esta tinha-a com fartura, dir-se-ia até que seria movida por uma encomenda divina.
Creio que não pregava nada de prejudicial, aparentemente manifestava-se contra a falta de respeito pelos outros (roubo, mentira, violência, homicídio, etc.), contra a fornicação, a favor do amor e em defesa das mulheres, tentando demonstrar-lhes os castigos divinos para a referida prática demoníaca, aparentemente a principal causa de partos difíceis e até mortais, provavelmente por ordem crescente de grau de empenho na dita.
Dado que se movimentava de forma a conseguir que as suas palavras chegassem ao maior número de pessoas possível, não consegui apanhar todo o discurso, mas aparentemente todos os males da nossa sociedade; entre os quais consegui distinguir os incêndios florestais que, dada a espiral descendente de autodestruição em que nos encontramos, vão aumentar; se devem a estas questões. Quem sabe não tem razão?...
Estava já eu plenamente satisfeito, deleitado até, com a oportunidade de ouvir os ensinamentos desta profetisa que nem me pareceu completamente lunática, quando a experiência conseguiu tornar-se mais sublime. Tendo tido o privilégio de sair na mesma estação, pude ainda testemunhar a entoação, sonante e exímia, do que me pareceu ser uma versão portuguesa de “amazing grace”. Que pessoa fascinante!
terça-feira, 13 de março de 2007
Monodiálogo
- Aaaargh, como aquela gaja me irrita!!!
- Calma, tens que te controlar, não te podes deixar afectar assim.
- Pronto, lá vem ele com a sua calma. Deixa-me lá irritar se a gaja me irrita, se até já estou no ponto de bastar ela aproximar-se para ter vontade de lhe pregar uma sonora e dolorosa chapada! Que bem que me saberia...
- Não podes ser assim, se ela te irrita, tu é que tens que saber lidar com isso. O problema é teu, não dela; ela só está a ser igual a si própria.
- Epa… és um chato de merda! Sempre com o teu racionalismo. Sabes, também me irritas profundamente.
- Lá está outra coisa que tens que saber controlar. Vou pôr-te uma música para acalmar.
- Para ti é tudo muito fácil, não é?
- Para mim pode ser simples, mas lá por não complicar as coisas não quer dizer que seja tudo fácil, antes pelo contrário, é muito difícil ter objectividade que permita manter as coisas simples, mas é o melhor a fazer.
- Tens, obviamente, consciência que é exactamente esse tipo de conversa que te torna tão irritante…
- Hum… talvez esta outra música, ou se quiseres posso mostrar-te como seria aquela gaja sem roupa…
- Deixa lá isso, se quisesses mesmo agradar-me, calavas-te, nem que fosse só por uns minutos.
- Sabes perfeitamente que isso não é possível.
- Pois sei, mas era tão bom…
- Gaita! É mesmo muito frustrante ser o teu cérebro!
- Calma, tens que te controlar, não te podes deixar afectar assim.
- Pronto, lá vem ele com a sua calma. Deixa-me lá irritar se a gaja me irrita, se até já estou no ponto de bastar ela aproximar-se para ter vontade de lhe pregar uma sonora e dolorosa chapada! Que bem que me saberia...
- Não podes ser assim, se ela te irrita, tu é que tens que saber lidar com isso. O problema é teu, não dela; ela só está a ser igual a si própria.
- Epa… és um chato de merda! Sempre com o teu racionalismo. Sabes, também me irritas profundamente.
- Lá está outra coisa que tens que saber controlar. Vou pôr-te uma música para acalmar.
- Para ti é tudo muito fácil, não é?
- Para mim pode ser simples, mas lá por não complicar as coisas não quer dizer que seja tudo fácil, antes pelo contrário, é muito difícil ter objectividade que permita manter as coisas simples, mas é o melhor a fazer.
- Tens, obviamente, consciência que é exactamente esse tipo de conversa que te torna tão irritante…
- Hum… talvez esta outra música, ou se quiseres posso mostrar-te como seria aquela gaja sem roupa…
- Deixa lá isso, se quisesses mesmo agradar-me, calavas-te, nem que fosse só por uns minutos.
- Sabes perfeitamente que isso não é possível.
- Pois sei, mas era tão bom…
- Gaita! É mesmo muito frustrante ser o teu cérebro!
quinta-feira, 8 de março de 2007
Mulheres
- Confiar nas mulheres? És maluco? As mulheres não são de confiança. Se um gajo lhes deixa as rédeas muito soltas, acaba sempre por se lixar!
- Parece-me uma opinião algo radical. Aceito que haja pessoas, não apenas mulheres, que não são de confiança, mas a generalização é habitualmente, um erro.
- Tu és muito ingénuo! Não conheces o animal mulher. Elas não são frágeis como querem que pareça, são manipuladoras!
- O teu discurso parece saído da idade das trevas! Essa conversa de as mulheres serem perversas, a verdadeira personificação do demónio já está, felizmente, ultrapassada.
- Ouve bem o que te digo, se dás muita liberdade à tua mulher, mais tarde ou mais cedo ela vai cruzar-se com um gajo que engraça com ela e que tem a energia que tu tinhas antes, que lhe dá certos mimos que tu já não tens pachorra para lhe dar e ela vai borrifar-se para ti. Todo o amor que ela apregoava por ti se esfuma. E ainda por cima são estúpidas demais para perceberem que passado algum tempo, pouco tempo, vão estar na mesma situação que estavam antes, ou pior.
- Então… mas… quer dizer então que a culpa não será, pelo menos inteiramente dela. Se não deixasses de ter pachorra para lhe dar os mimos que ela precisa, provavelmente ela já não se deixava ir na cantiga do outro.
- Elas querem sempre mais do que têm! Até podes ser o Sr. Perfeito que ela vai ter sempre alguma queixa. Nunca nada que tu faças é suficiente para satisfazer uma mulher. Além do mais, é perfeitamente natural a relação esmorecer com o tempo.
- Se esmorece, se calhar é porque o sentimento mudou. Se deixas de te sentir impelido a mimá-la, a fazê-la feliz, se calhar é porque afinal não a amas como achavas que amavas e aí, acho que se calhar mais vale enfrentar a realidade e, por muito complicado e assustador que isso possa parecer, terminar a relação.
- Eu não deixei de gostar da minha mulher. Pode ter passado aquela paixão do início, mas eu amo-a!
- Parece que estás a dizer isso a ti próprio, e até compreendo que queiras mesmo acreditar nisso, mas se quando estás com ela, já não surge em ti qualquer impulso que te puxe para ela. Quando já não tens motivação para a fazer feliz e se calhar até já tens alguma para a fazer infeliz, isso já não se pode chamar amor. Já é uma questão de conforto e habituação. Se calhar até de medo da mudança.
- Não me passa pela cabeça deixar a minha mulher, perder tudo o que construímos juntos. Não a quero perder! Também não consigo andar, falsamente e por obrigação, sempre agarrado a ela como dantes. Acho que era uma hipocrisia passar a vida a fingir, fazer-lhe um mimo só por obrigação quando isso não surge espontaneamente.
- Lá está, se não surge de forma espontânea, se calhar já não estás lá a fazer nada. Se calhar mais vale libertá-la para que ela possa procurar o que precisa. Para que possa colmatar as suas carências. Claro que isso para ti é inconcebível, mas já se está fora de questão deixá-la, assim como dar-lhe o que ela precisa, acho que a única solução seria fechar os olhos e deixá-la resolver as suas carências como achar.
- Como é que com tanta inteligência consegues ser tão estúpido? Isso era mais que meio caminho andado para ela me dar com os pés! Não inventes, o que eu tenho que fazer é controlá-la, não é tentar satisfazê-la.
- É a tua opinião, a tua visão das coisas. Não vou ter a presunção de que é obrigatoriamente a minha visão que está certa e a tua errada, mas definitivamente discordo. Mas mesmo que tenhas razão, que o caminho que apresenta melhores resultados seja o controle, face à satisfação, ou pelo menos à tentativa de satisfação, não será também o caminho mais difícil para ti? Mesmo apresentando os melhores resultados, isso implicará ser a melhor escolha? Acho que não. Para começar, só conseguirias um controle a cem por cento se a vigiasses vinte e quatro horas por dia, e isso é impossível. Assim, será sempre uma fonte de stress, de desconfiança. Acho que deve ser horrível ela ir, por exemplo, ao cabeleireiro e tu ficares a matutar se ela lá terá ido mesmo. Acho que o método do controle só te causa preocupações, enquanto que se confiasses nela e no facto das carências dela estarem minimamente satisfeitas; digo minimamente porque também não acredito que ela vá procurar outra pessoa só porque não lhe deste um abraço e um sorriso quando chegaste a casa ou porque não lhe telefonaste durante o dia, acho que para correres esse risco é porque realmente existe um padrão de comportamento que não a faz feliz; viverias muito mais tranquila e descontraidamente.
- É impossível fazê-la feliz!!! Ouviste alguma coisa do que te disse? É uma missão impossível! A única solução é proteger-me e não lhe dar abébias. Controle!
- Só tu é que podes fazer essa opção, mas pensa quão mais tranquila seria a tua vida sem esse medo? Quão mais feliz serias sem esse fantasma? Acho até que se conseguirias ser tão mais feliz que até poderia voltar o ímpeto de a mimar. Quem sabe não é esse o segredo para reatar a paixão. Tenho a certeza que pelo menos terias mais energia para colmatar as carências dela e resolver os problemas dentro da relação, se não gastasses tanta a tentar envolver a relação numa redoma para a proteger das ameaças externas. Em suma, a melhor maneira de proteger a relação é resolver os problemas internos. E quando digo resolver, não me refiro a tratamento sintomático, em que apenas consegues, pelo menos aparentemente, resolver os sintomas, a manifestação do problema, sem resolver a sua origem. O que tu tens que resolver é o cerne da questão, aquilo que te obriga a esse controle. Resolvendo a origem do problema já não precisas que despender tanta energia a controlá-la. Acho mesmo que seriam ambos muito mais felizes.
- E tu a dares-lhe… A origem do problema não tem solução! Se eu começar a dar-lhe mimos ela vai sempre achar que são poucos. Nunca vou conseguir dar-lhe atenção suficiente de forma a satisfazê-la. Não me chateies mais com esse assunto, não há volta a dar. Rédea curta! Não vou também ser presunçoso ao ponto de achar que é a minha visão das coisas que está certa, mas está! É a única maneira.
- Tudo bem, fecha-se aqui o assunto. Não te chateio mais, mas faz-me confusão como é que se consegue viver assim.
- Daqui a uns anos voltamos a falar nisto.
- Parece-me uma opinião algo radical. Aceito que haja pessoas, não apenas mulheres, que não são de confiança, mas a generalização é habitualmente, um erro.
- Tu és muito ingénuo! Não conheces o animal mulher. Elas não são frágeis como querem que pareça, são manipuladoras!
- O teu discurso parece saído da idade das trevas! Essa conversa de as mulheres serem perversas, a verdadeira personificação do demónio já está, felizmente, ultrapassada.
- Ouve bem o que te digo, se dás muita liberdade à tua mulher, mais tarde ou mais cedo ela vai cruzar-se com um gajo que engraça com ela e que tem a energia que tu tinhas antes, que lhe dá certos mimos que tu já não tens pachorra para lhe dar e ela vai borrifar-se para ti. Todo o amor que ela apregoava por ti se esfuma. E ainda por cima são estúpidas demais para perceberem que passado algum tempo, pouco tempo, vão estar na mesma situação que estavam antes, ou pior.
- Então… mas… quer dizer então que a culpa não será, pelo menos inteiramente dela. Se não deixasses de ter pachorra para lhe dar os mimos que ela precisa, provavelmente ela já não se deixava ir na cantiga do outro.
- Elas querem sempre mais do que têm! Até podes ser o Sr. Perfeito que ela vai ter sempre alguma queixa. Nunca nada que tu faças é suficiente para satisfazer uma mulher. Além do mais, é perfeitamente natural a relação esmorecer com o tempo.
- Se esmorece, se calhar é porque o sentimento mudou. Se deixas de te sentir impelido a mimá-la, a fazê-la feliz, se calhar é porque afinal não a amas como achavas que amavas e aí, acho que se calhar mais vale enfrentar a realidade e, por muito complicado e assustador que isso possa parecer, terminar a relação.
- Eu não deixei de gostar da minha mulher. Pode ter passado aquela paixão do início, mas eu amo-a!
- Parece que estás a dizer isso a ti próprio, e até compreendo que queiras mesmo acreditar nisso, mas se quando estás com ela, já não surge em ti qualquer impulso que te puxe para ela. Quando já não tens motivação para a fazer feliz e se calhar até já tens alguma para a fazer infeliz, isso já não se pode chamar amor. Já é uma questão de conforto e habituação. Se calhar até de medo da mudança.
- Não me passa pela cabeça deixar a minha mulher, perder tudo o que construímos juntos. Não a quero perder! Também não consigo andar, falsamente e por obrigação, sempre agarrado a ela como dantes. Acho que era uma hipocrisia passar a vida a fingir, fazer-lhe um mimo só por obrigação quando isso não surge espontaneamente.
- Lá está, se não surge de forma espontânea, se calhar já não estás lá a fazer nada. Se calhar mais vale libertá-la para que ela possa procurar o que precisa. Para que possa colmatar as suas carências. Claro que isso para ti é inconcebível, mas já se está fora de questão deixá-la, assim como dar-lhe o que ela precisa, acho que a única solução seria fechar os olhos e deixá-la resolver as suas carências como achar.
- Como é que com tanta inteligência consegues ser tão estúpido? Isso era mais que meio caminho andado para ela me dar com os pés! Não inventes, o que eu tenho que fazer é controlá-la, não é tentar satisfazê-la.
- É a tua opinião, a tua visão das coisas. Não vou ter a presunção de que é obrigatoriamente a minha visão que está certa e a tua errada, mas definitivamente discordo. Mas mesmo que tenhas razão, que o caminho que apresenta melhores resultados seja o controle, face à satisfação, ou pelo menos à tentativa de satisfação, não será também o caminho mais difícil para ti? Mesmo apresentando os melhores resultados, isso implicará ser a melhor escolha? Acho que não. Para começar, só conseguirias um controle a cem por cento se a vigiasses vinte e quatro horas por dia, e isso é impossível. Assim, será sempre uma fonte de stress, de desconfiança. Acho que deve ser horrível ela ir, por exemplo, ao cabeleireiro e tu ficares a matutar se ela lá terá ido mesmo. Acho que o método do controle só te causa preocupações, enquanto que se confiasses nela e no facto das carências dela estarem minimamente satisfeitas; digo minimamente porque também não acredito que ela vá procurar outra pessoa só porque não lhe deste um abraço e um sorriso quando chegaste a casa ou porque não lhe telefonaste durante o dia, acho que para correres esse risco é porque realmente existe um padrão de comportamento que não a faz feliz; viverias muito mais tranquila e descontraidamente.
- É impossível fazê-la feliz!!! Ouviste alguma coisa do que te disse? É uma missão impossível! A única solução é proteger-me e não lhe dar abébias. Controle!
- Só tu é que podes fazer essa opção, mas pensa quão mais tranquila seria a tua vida sem esse medo? Quão mais feliz serias sem esse fantasma? Acho até que se conseguirias ser tão mais feliz que até poderia voltar o ímpeto de a mimar. Quem sabe não é esse o segredo para reatar a paixão. Tenho a certeza que pelo menos terias mais energia para colmatar as carências dela e resolver os problemas dentro da relação, se não gastasses tanta a tentar envolver a relação numa redoma para a proteger das ameaças externas. Em suma, a melhor maneira de proteger a relação é resolver os problemas internos. E quando digo resolver, não me refiro a tratamento sintomático, em que apenas consegues, pelo menos aparentemente, resolver os sintomas, a manifestação do problema, sem resolver a sua origem. O que tu tens que resolver é o cerne da questão, aquilo que te obriga a esse controle. Resolvendo a origem do problema já não precisas que despender tanta energia a controlá-la. Acho mesmo que seriam ambos muito mais felizes.
- E tu a dares-lhe… A origem do problema não tem solução! Se eu começar a dar-lhe mimos ela vai sempre achar que são poucos. Nunca vou conseguir dar-lhe atenção suficiente de forma a satisfazê-la. Não me chateies mais com esse assunto, não há volta a dar. Rédea curta! Não vou também ser presunçoso ao ponto de achar que é a minha visão das coisas que está certa, mas está! É a única maneira.
- Tudo bem, fecha-se aqui o assunto. Não te chateio mais, mas faz-me confusão como é que se consegue viver assim.
- Daqui a uns anos voltamos a falar nisto.
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