quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Devaneio

- Vestal.
- Vestal?
- Sim, vestal.
- Nunca perguntei isto numa entrevista, mas… você é do sexo masculino, certo?
- Sim.
- E “vestal” é a palavra que acha que melhor o define?
- Sim.
- Também nunca perguntei isto, mas… É virgem?
- Não.
- Pois. Creio que não consigo compreender a escolha dessa palavra. Se calhar estamos em contextos diferentes. A ideia que tenho é que a palavra “vestal” provém das antigas sacerdotisas da deusa romana Vesta e é usada figurativamente relacionada com pureza e castidade femininas, já que consta que estas sacerdotisas eram obrigatoriamente virgens.
- Sim, superficialmente é isso.
- Aprofunde então, por favor.
- Apesar de Vesta ter ficado relacionada com a castidade por causa das suas sacerdotisas, estava intimamente ligada ao fogo. O seu altar tinha uma chama permanente que nunca se podia extinguir. Esta chama estava relacionada com a origem da vida.
- Não sabia disso. Continue, por favor.
- Fogo, a origem da vida… Parecem-lhe coisas relacionadas com castidade?
- De facto, não.
- Pois. Vesta pode também ser vista como uma representação do aspecto sexual da criação. Existe portanto uma dualidade na palavra que escolhi.
- Talvez comece a compreender. Relacione então isso consigo e explique-me o porquê da escolha dessa palavra.
- Desculpe, mas o psicólogo aqui é o senhor. Explique você.
- Sou psicólogo, mas isto é uma entrevista de emprego, não é uma consulta.
- Não estou a pedir que me explique a mim. Só estou a dizer que perceber o porquê oculto da minha escolha de palavra é o seu trabalho.
- Certo. Da minha parte estamos despachados. Tem alguma questão que me queira colocar?
- Qual é a palavra que acha que melhor o define?
- Muito engraçado. Boa tarde, contactá-lo-emos nos próximos dias.
- Boa tarde.

- Então, que tal correu a entrevista.
- Bom, acho que consegui lixar qualquer hipótese de ficar com o emprego.
- Então, o que aconteceu?
- Já estava farto daquilo. Daquelas perguntas de merda, tipo “Qual acha que é a sua melhor qualidade? E o seu pior defeito?”. Deu-me para parvejar.
- O que é que disseste?
- Ele perguntou-me qual era a palavra que eu achava que melhor me definia.
- E tu?
- Disse “vestal”.
- Vestal? O que é que isso quer dizer?
- Vem das antigas virgens romanas que adoravam a deusa Vesta.
- Antigas virgens romanas? Fenomenal!!
- Foi a primeira palavra que me veio à cabeça. Depois tive que divagar um bocado para tentar dar-lhe algum sentido.
- Claro que ele ficou a pensar que eras completamente doido.
- Pois…
- Bom, esquece lá isso e falemos de coisas mais alegres. Como é que foi a cena ontem com a gaja?
- Nem me digas nada! Foi surreal, no mau sentido.
- Então? Que se passou?
- Para começar, depois de uma meia hora de conversa, já me estava a dizer que tinha uma fantasia de dupla penetração e a perguntar-me se eu não tinha um amigo que alinhasse.
- E tu, o que é que disseste?
- Tentei explicar-lhe calmamente que não me deixava confortável a ideia de ter o meu escroto a alguns centímetros de outro, correndo até o risco de haver contacto. Tentei que ela percebesse que seria estranho o relacionamento com um amigo depois de ter havido contacto físico entre os nossos escrotos. Que nunca mais conseguiríamos olhar um para o outro da mesma forma.
- E ela?
- Ela lá percebeu, ou pelo menos fingiu e não tocou mais no assunto.
- Então não foi muito mau…
- Não teria sido se tivesse sido só isso, mas depois de estarmos enrolados no sofá, ela diz-me que está com o período!
- Alto turn-off…
- Pois, mas o pior é que ela queria festa na mesma!
- E tu, o que é que fizeste?
- Tentei explicar-lhe calmamente que a menstruação não é sexy. Disse-lhe para ponderar porque é que, havendo tantas vertentes na pornografia, para todos os gostos, não se viam filmes com mulheres menstruadas.
- E ela?
- Ela lá percebeu, ou pelo menos fingiu e não tocou mais no assunto.
- E depois?
- Depois fez-me um broche e eu vim-me embora cheio de complexos de culpa.
- Pois, compreendo… Olha, o teu telefone está a tocar.
- Estou sim? Sim, é o próprio. Sim, com certeza. Certo, está combinado então.
- Novidades?
- Sim, era da empresa onde fui fazer a entrevista.
- A dizerem que não correspondias ao perfil que eles procuram?
- Não. A pedir-me para começar na segunda-feira.

5 comentários:

Anónimo disse...

Hilarious ! Analana

Isa disse...

Hilarious, indeed!

E a escrita, muito boa, na minha modesta opinião.
Parabéns.

Rodovalho Zargalheiro disse...

Thanks! :)

grassa disse...

Definitivamente, um dos textos da semana.

Curti bué.

Rodovalho Zargalheiro disse...

Pois que tal me enche de satisfação :)