quarta-feira, 27 de junho de 2007

O Caracol - Capítulo 1

A velha ébria cambaleava pelo passeio. A cada cinco ou seis passos parava, encostava-se ao muro e dava um gole na sagres de litro que trazia envolta num saco de plástico. Creio que o saco servia para disfarçar, e quem sabe não resultaria caso ela não fosse a praguejar sonoramente com o mundo, atraindo a atenção de toda a gente.
Distraí-me a olhar para o velhote, seguramente já bem acima dos sessenta, que, com o seu boné da moda, deslizava descontraidamente na paisagem sobre um par de patins em linha e quando dei por mim estava envolto num mar de gente que se deslocava no sentido inverso. Já quase a sufocar, acelero o passo, abrindo caminho pelo magote e quando me vi livre, encostei-me ao pilar a recuperar o fôlego. Levantando lentamente os olhos do chão, comecei a ver uma bengala de cego, continuando a levantar a cabeça, senti um nó na garganta ao fixar o olhar nos olhos do cego, abertos, completamente brancos! No meio daquele vazio, pareciam olhar para mim, para dentro de mim! Enquanto o arrepio descia pela coluna vertebral já eu corria em direcção à escada como quem foge do demo. Aliviante, uma visão fez-me deixar de sentir que teria, sem querer, atravessado um qualquer portal mágico e aterrado no meio de um filme surrealista.
Era o Caracol. Foi a alcunha que lhe coloquei por andar sempre com aquele saco enorme às costas, que deveria provavelmente conter todas as suas posses materiais. Via-o todos os dias, depois do almoço, quando dava uma volta para fumar um cigarro. Sempre com a casa às costas, como eu gostava de dizer a mim próprio, e com o seu ar pensativo, que de estúpido não tinha nada! Entretinha-me a pensar o que levaria no saco, imagino que pelo menos não tivesse lá uma tesoura, dado o tamanho da barba, que já com o cabelo misturado, lhe chega a meio do peito. Tinha adquirido uma simpatia por ele, que foi consolidada na única vez que se dirigiu a mim, com extrema educação para que, encarecidamente, lhe facultasse um cigarro. O que faria ali a esta hora, pensei.
Perante o meu ar aturdido ao perceber que se dirigia a mim, limitou-se a murmurar que tínhamos que sair dali enquanto me puxava pelo braço. Perplexo, deixei-me levar e só ao fim de algum tempo é que percebi que ainda murmurava. Qualquer coisa relacionada com o facto de ter tido que me salvar. Só abrandou quando chegámos a um beco, onde finalmente me olhou fixamente nos olhos. Não podia deixar-te ali, disse, estava mesmo quase a haver um lapso. Alguém que lá estivesse que não fosse deles, já deve estar morto. Quando disse "deles" a sua voz ficou trémula e, num acto instintivo encolheu a cabeça para dentro dos ombros enquanto olhava para ambos os lados. Quem são eles, perguntei. Shhhhh, ainda não estamos seguros, eles podem ouvir-nos.
Não sabia se seria pelo meu fascínio por aqueles a quem a sociedade apelida de loucos, por terem uma forma de pensar diferente do que é comum, mas a verdade é que me sentia impelido a alinhar na história. Mais até que impelido, parecia que nem o conseguiria evitar. Sei de um sítio seguro, disse o Caracol, enquanto me pegava novamente pelo braço e me levava a passo acelerado para uma qualquer parte incerta.
Visivelmente mais tranquilo, apontou-me um monte de tijolos quando chegámos. Era um beco entre três prédios muito antigos, com uma entrada estreita e um espaço relativamente amplo onde havia uma nespereira de tamanho considerável. Sentei-me nos tijolos enquanto olhava à volta, surpreendido pelo asseio do local.
Bom, disse, trago aqui jantar, hoje já não saio. E pousando o saco no chão, sem dizer mais nenhuma palavra, ante o meu olhar intrigado, começou por retirar um toldo. Preso a duas cavilhas estrategicamente colocadas nas paredes e com outra ponta amarrada na nespereira, rapidamente o toldo se transformou numa tenda. Não é que o Caracol trazia mesmo a casa às costas, pensei sorrindo. Continuou o seu afazer, retirando também um saco-cama, um daqueles pequenos fogões de campismo e um saco mais pequeno, que continha alguns víveres e pequenos utensílios de cozinha. Estendeu o saco-cama, colocou o fogão onde, pela marca no chão era notório ser o seu sítio e, retirando um pequeno púcaro, colocou ao lume uma porção de água obtida de um garrafão habilmente escondido a um canto. Efectuou todo o processo com bastante calma, nem parecia o mesmo de há momentos atrás e, como se se tivesse esquecido que eu ali estava, sem proferir uma palavra. Limitei-me também a observá-lo até que, por fim, retirando uma saqueta de chá, quebrou o silêncio dizendo: Vou fazer-nos um chazinho para ajudar a descontrair. Aqui estamos a salvo, é como se estivéssemos invisíveis para eles. E vai dizer-me quem são eles agora, perguntei. Sim, sim, respondeu, é preciso é ter calma, conto-te tudo durante o chá, e podes tratar-me por tu. Já agora, acrescentou, queres com ou sem cheirinho? Pode ser com, respondi com um sorriso cúmplice. O seu rosto contorceu-se num esgar que interpretei como um sorriso, o primeiro e único que o vi esboçar.

1 comentário:

Anónimo disse...

Conheci um tipo assim, correspondente a essa descrição, uma vez que saía de casa para o trabalho, como tantas outras vezes. Pediu-me um cigarro, e já agora uns trocos. Dei o cigarro e os trocos disse que lhe daria se ele me deixasse cortar-lhe as unhas. Estavam já a encaracolar e ele podia facilmente magoar-se. Além disso, muito sinceramente, metiam nojo. Ele encolheu as mãos atrás das costas com olhar de puto espantado, como se eu quisesse fazer mal ao seu tesouro, e respondeu com a pergunta "queres IR comigo?"... Abanei a cabeça, sorri e segui. Fui jogar o jogo que ele não joga: fui gastar as minhas unhas no trabalho.