segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Dia 3

Convidei-a distraidamente para um café. Ela, aparentemente desinteressada, acedeu. Depois de alguns minutos a debater a clima ameno que aquele dia nos apresentava, olhei bem dentro dos seus olhos. Não resisti e perguntei-lhe se já tinha percebido e foi visível o nervosismo que se apoderou dela. Desviou o olhar, o assunto e, com uma péssima desculpa, rapidamente me deixou sozinho na mesa.
Senti-me imbecil por não ter antecipado que ela seria menos experiente que eu. Provavelmente muito menos do que eu supus. Ainda algo insegura e exacerbadamente cuidadosa. Quem sou eu para contestar tal cuidado? É uma postura que eu devia ter sempre mantido e que já perdi, apenas por desleixe e excesso de confiança. Mas o que importa é que não a interpretei correctamente.
Provavelmente pela emoção, coisa ainda estranha para mim, de finalmente ter encontrado alguém com quem me consegui identificar, tornei-me vulnerável. Saí do caminho e dei o flanco. Foi obviamente uma má ideia, mas a verdade é que não consigo matar a réstia de esperança que reside em mim de que, antes de ser demasiado tarde, ela ainda vai perceber que pode confiar em mim. Que, apesar do risco, juntos podemos fazer muito, muito mais do que fazemos isoladamente.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Dia 2

Casualmente, meti conversa. Ela, embora se percebesse a postura defensiva, alinhou. Falámos das trivialidades normais mas eu, sempre que tinha a oportunidade, metia uma indirecta. Nas primeiras houve um quase imperceptível espanto. Era óbvio que, assim como eu, ela nunca se tinha cruzado com ninguém como nós, no entanto, acho que qualquer pessoa que não estivesse a mesmo a tentar analisá-la não perceberia a sua reacção. Arrisco até a dizer que ninguém que não partilhasse o que eu estava cada vez mais certo que partilhávamos perceberia as suas reacções às minhas tiradas chave. Aquelas frases teste que meti no meio da conversa, que me deixaram ainda mais certo que não se tratava apenas da minha imaginação, deram-me confiança. Provavelmente demasiada confiança.
Com um esforço quase sobre-humano, consegui conter-me e não deixar que a conversa saísse do que poderia alegar ser de circunstância. Não por ter dúvidas em relação a ela, não por achar que ela não tinha percebido o que tínhamos em comum, mas apenas porque sabia que tinha que ter muita calma para não a deixar apreensiva. Não queria deitar tudo a perder.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Dia 1

Soube logo na primeira vez que a vi. Aquele brilho nos olhos não me deixou qualquer dúvida. Estou também bastante certo que, pouco depois, quando os nossos olhares se cruzaram, ela soube também.
Por muito que aquela vozinha no fundo da minha mente me dissesse que o melhor era ignorar, não consegui. Sentia algo que nunca tinha sentido antes. Seria aquilo a que chamavam excitação? Ansiedade? Não sei ao certo como lhe chamar, mas sentia algo. Algo novo!
Nunca tinha encontrado ninguém assim e, em relação a ela, não conseguia ter dúvidas. Não sei ao certo porquê, mas tinha a certeza que ela era como eu.
Prometi a mim mesmo que não me precipitaria e que iria tentar minimizar os riscos com planeamento e ponderação. Falhei. Mais à frente haverá pormenores, mas no fundo o que interessa é que falhei redondamente e posso vir a pagar caros os meus erros. Reparo agora que a opção mais segura teria sido a mais simples, não ter feito absolutamente nada. No entanto isto nunca foi propriamente uma opção para mim. Admoesto-me interiormente por me ter deixado levar por uma emoção, mas, ao mesmo tempo desculpo-me porque nunca poderia estar preparado para algo que nunca tinha sentido antes.
Espero que a lição não tenha sido em vão e que ainda consiga usufruir dos ensinamentos que obtive desde este dia.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Estrada

Tranquilamente, interiorizando a atmosfera pura da montanha, o Alfredo dirigiu-se para o seu carro e pôs-se à estrada. Era das coisas de que mais gostava, pôr-se à estrada, provavelmente a que lhe proporcionava uma maior paz interior, uma maior satisfação. Sim, podemos mesmo dizer que não havia nada de que o Alfredo gostasse mais que iniciar uma viagem. Excepção feita, claro, às viagens que o levavam de volta a casa (não estão, naturalmente, sequer a ser consideradas viagens para o emprego).
Embora curto, o caminho era suficientemente tortuoso para proporcionar a esperada sensação de bem-estar. Pachorrento e com um sorriso nos lábios, acendeu um cigarro e, abrindo caminho por entre a escuridão através da serpenteante estrada, deixou-se lentamente absorver pela serra.
Pois que a partir deste dia, nunca mais ninguém viu o Alfredo. O carro foi encontrado à beira da estrada, com a porta aberta, perto de um caminho que se dissipava floresta adentro.
Não demorou muito até a canalha começar a contar que o diabo lhe apareceu ao caminho e o transformou num grande lobo. Espalhou-se tanto a história do Alfredo que há já mesmo quem jure que, em noites de lua cheia, ouve o seu lamento solitário à procura do seu lugar.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Optimismo

Gosto muito das reuniões de antigos colegas de escola. É sempre uma ocasião riquíssima em material de ponderação. Permite-me várias revelações sobre grandes questões da nossa existência, mas, no entanto, deixa-me sempre mais algumas para ponderar até ao encontro seguinte onde, muitas vezes acabo por conseguir que sobre elas incida luz.
Este ano foi muito interessante. O Careca é dos que ainda tem mais cabelo e o Gordo está irreconhecível de magro, isto deixou-me a pensar… 
Concluí também que Deus não existe. É a única explicação para o Galinha, o maior filho da puta da turma, arrogante, egocêntrico e sem um pingo de compaixão por ninguém, nem sequer pela sua avozinha que é um doce de senhora, ser o que está melhor na vida. Mas tenho que ser optimista, pode ser que ande a esconder um tumor no cérebro ou qualquer coisa assim.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Viver

O Gervásio tinha sempre muito medo de ser mal interpretado. Às vezes apetecia-lhe mandar uma daquelas bocas cáusticas, mas tinha medo que o levassem a sério.
Um dia, o Gervásio ponderou que a sua preocupação em não ser mal interpretado o estaria a impedir de ser genuíno, de ser ele próprio.
Pensou que não poderia viver sempre em função dos outros e que se condicionasse sempre as suas acções pelo impacto que teriam nos demais, não seria ele, mas sim uma imagem daquilo que achava que os outros queriam que ele fosse.
Então, o Gervásio decidiu mudar. Começou a mandar todos os amigos para o caralho sempre que lhe apetecia, mesmo aqueles que sabia mais sensíveis e viveu feliz para sempre. Quero dizer... mais ou menos feliz... Houve uns amigos que levaram algumas coisas a mal, talvez tivesse a ver com a sua insegurança, talvez não, mas houve com efeito alguns amigos que decidiram interpretar de má fé a genuinidade do Gervásio e a coisa não correu muito bem, mas, tirando isso, viveu feliz para sempre, minimamente feliz, pelo menos, porque depois há o problema das mulheres. Podemos achar que elas estão horríveis e, engolindo em seco, dizer que estão lindas. Mas achar que estão lindas e, apenas pelo impulso idiota da palhaçada, dizer que estão horríveis, não, isso é erro crasso e energúmeno.
Por coisas deste tipo, o Gervásio nunca conseguiu ter sucesso com as mulheres, mas viveu, vá, mediocremente feliz para sempre, se não contarmos a sua inata capacidade de irritar animais de estimação... Nem as outras questões sociais, mas pronto, viveu... Não foi obviamente para sempre, até porque a saúde o traiu algo cedo, mas pronto, viveu... E isso é que interessa!!

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Comida

– Ó Maria, este jantar hoje está muito fraco. O que é que se passa?

– Não se passa nada. Uns dias está melhor, outros está pior. É só comida. Come, mas é.

– Só comida? Só comida?! Tu não digas isso, por favor. A comida é só a tua matéria-prima. Tu és uma artista, cada prato é uma obra de arte digerível! Tu pegas em coisas vulgares, juntas-lhe técnica, inspiração, criatividade… Alma, juntas-lhe a tua alma e crias algo novo, algo que não existia antes. Crias uma representação comestível daquilo que tu és. Não voltes a dizer que é só comida!

– Obrigado, Manuel, sabe muito bem ouvir isso e saber que dás valor.

– Claro que dou valor!

– Queres mais banha nos teus couratos?

– Sim, se fazes favor.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

REM

Estou no corredor de um edifício familiar, a fumar um cigarro junto de um cinzeiro de chão. Noto que as pessoas que passam olham muito para mim, mas não ligo e continuo a fumar tranquilamente. Quando vou para apagar o cigarro, olho para baixo e reparo que estou nu da cintura parar baixo. Aí começa a ansiedade. Embora quem passa não pareça incomodar-se muito com a minha falta de preparos, começo a ficar extremamente desconfortável e envergonhado. Começo a vaguear pelos corredores à procura, sem sucesso e com o stress a aumentar cada vez mais, de um sítio para me esconder. Nisto, vejo-me ao longe. É uma cópia minha, mas ao contrário de mim, está nu da cintura para cima. Não estranho e instantaneamente penso que se me fundir com ele fico totalmente vestido. Corro direito ao meu clone que, assim que se apercebe de mim, como se soubesse em que é que eu estava a pensar, começa também a correr para mim. No momento do impacto fundimo-nos, mas a coisa não corre como eu esperava e, em vez de ficar todo vestido, fico é completamente nu. O stress transforma-se em pânico quando vejo um grupo de pessoas a aproximar-se. Corro para o outro lado e de repente estou num grande salão e gente aproxima-se de todos os lados. Sem rota de fuga, tenho que limitar-me a assistir, impotente, enquanto as pessoas se aproximam e formam uma roda à minha volta. Assim que a roda se fecha, as pessoas param e ficam ali a olhar para mim, rosto rígido, mas com um brilho no olhos divertido e maquiavélico. Sem saber o que fazer, grito a plenos pulmões para que me deixem passar. Pergunto o que querem de mim, mas ninguém responde. Neste momento olho para cima e apercebo-me que o tecto desapareceu. Consigo ver o céu de dentro do edifício e está a relampejar violentamente. Instantes depois, um olho titânico, com gigantescas pestanas aparece onde antes estava o tecto. Quando enormes lágrimas corrosivas começam a jorrar do olho gigante, abrindo buracos no chão, perigosamente perto de mim, já não estou muito preocupado por estar nu, quero é sair dali. A necessidade de fuga torna-se premente. Reúno todas as minhas forças e, correndo tão depressa quanto consigo, vou direito à roda de pessoas que me cerca. Quando estou prestes a abalroar quem está entre mim e a liberdade, ainda tenho um segundo de satisfação achando que vou conseguir e depois acordo, suado e com o coração aos pulos.

Tem sido assim todas as noites há já quase uma semana. O que é que acha que significa, doutor? Doutor?...

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011