segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Arte #7

O intenso cheiro a éter atirou o cérebro do recém-chegado para a consciência como se o tivesse empurrado da orla de um abismo. Ainda antes de abrir os olhos, apercebeu-se que os movimentos dos seus braços e das suas pernas estavam fortemente condicionados. Passados os quatro segundos que a sua mente demorou a compreender a totalidade da situação, arregalou os olhos. Viu-se nu, coberto apenas por um pequeno lençol com uma abertura rectangular sobre o esterno, de tornozelos e pulsos amarrados a uma fria mesa metálica. Além das três paredes brancas e despidas, conseguia ver apenas um candeeiro cirúrgico que parecia pairar sobre si.
Está aí alguém? Gritou passados poucos minutos. Isto é uma crueldade, vociferou, não sei quem tu és, mas nada te pode dar o direito de fazer isto às pessoas! Depois de alguns momentos de silêncio, os músculos do recém-chegado retesaram-se. O que eu vou fazer é dar um propósito superior à tua vida, disse uma voz que, apesar de perfeitamente inteligível, parecia provir dos confins da crosta terrestre, procurei-te durante muito tempo, não foi fácil encontrar um sujeito adequado, mas assim que senti a tua energia, soube que eras tu quem eu procurava. Ao contrário dos outros, senti que irias compreender, que és merecedor. O que é que me vais fazer, perguntou o recém-chegado com a voz trémula. Vais fazer parte de algo mais elevado, de algo sublime, respondeu, sibilante, a estranha voz. Mas eu não quero! Vociferou o recém-chegado. Não! Por favor, não me faças mal, choramingou, deixa-me ir embora. É por isso que abomino essa mesquinha espécie humana, por esse absurdo instinto de auto-preservação. Porque hão de dar tanta importância, ao ponto de rastejar e implorar, à vossa miserável existência face a coisas mais elevadas? O que importa a vida de um indivíduo? Que diferença vai fazer no mundo a tua morte? Nenhuma, absolutamente nenhuma. Que valor tem a tua vida face a algo etéreo e intemporal? Face a uma obra de arte? Nenhum, valor nenhum! Que animal de uma espécie dita inteligente e racional prefere sempre optar pela sua vida contra a possibilidade de contribuir para o mundo com algo infinitamente mais enriquecedor? A irritação na estranha voz subia de tom. Mas que raio de merda vai isto fazer pela humanidade, seu filho da puta? Gritou, irritado, o recém-chegado. Que merda vai a humanidade ganhar com essa aberração que estás a fazer? Arte, reles ser, arte, aquilo que existe com o único propósito de fazer sentir e pensar, respondeu a voz, algo capaz de nos fazer perceber a nossa insignificância. Revolta-me que, perante a possibilidade que te ofereço de contribuíres para a posteridade com algo realmente significativo, implores pateticamente pela tua indigente vida. É deplorável a existência de uma espécie tão mesquinha e abominável, terminou a voz, com um tom de verdadeiro asco. Mas eu contribuo, trabalho, produzo, argumentou o recém-chegado, cujo medo se ia, aos poucos, convertendo na mais pura ira, e até já arrisquei a vida por outros, já salvei a vida a várias pessoas! Infeliz verme, disse agressivamente a estranha voz, não consegues compreender o pauperismo de tais actos? Nem sequer sabes se tais pessoas o mereciam, talvez merecessem morrer, talvez só tenham prejudicado a sociedade no tempo adicional que cá andaram. Salvar uma pessoa não é mais que salvar uma formiga. É um esforço tão absurdo como o de tentar reimplantar no corpo uma célula que se desprendeu da pele. Que efeito terás na Humanidade? O que ficará dos teus feitos depois de desapareceres? Não vai ficar mais que uma ténue memória que rapidamente desaparecerá. O que eu te estou a oferecer é imortalidade. Compreendes, abominável ser? Um propósito e imortalidade!! Prova-me! Gritou o recém-chegado no píncaro da sua raiva. Prova-me que a minha morte vai fazer melhor que a minha vida. Quero uma prova! Uma prova? Repetiu a voz indiciando algum espanto. Concordo que mereces algum tipo de prova daquilo que defendo, mas não ta posso dar. A única prova possível seria veres a obra completa, mas isso é impossível, e seria impensável deixar-te vê-la inacabada. A não ser que… Após uma breve pausa, continuou. Está bem. Dado o nível da tua contribuição, parece-me apropriado. Prometo que vou dar-te o privilégio e a honra de seres o primeiro a ver o trabalho completo, o resultado final.
Não conseguiu compreender porquê, mas o recém-chegado apercebeu-se que o temor o tinha abandonado por completo. Terá havido algo no discurso deste monstro que, a um nível inconsciente, tenha feito sentido? Pensou. A ira tinha-se também desvanecido. Não tenho escolha, pois não? Disse calmamente. Não obteve resposta. Por uma fracção de segundo, sentiu a consciência a esvair-se.
Acorda, está pronta, ouviu alguém dizer suavemente. Durante os poucos segundos que levou a recuperar a consciência juraria ser a voz da sua mãe a chamá-lo para o pequeno-almoço, mas rapidamente se lembrou de onde estava. O recém-chegado abriu lentamente os olhos. Tinha uma almofada sob a cabeça que lhe permitia ver o que estava à sua frente. A sua visão começou por incidir nos tubos que, por entre grosseiras costuras, protuberavam do seu peito, bombeando o sangue que o mantinha vivo. Fraco, focou para mais longe e um agradável arrepio percorreu o seu corpo, seguido de uma intensa sensação de paz e plenitude. À medida que contemplava os detalhes da obra, a confortável sensação era pincelada com laivos de intensas emoções. Sentia-se cheio, vivo. Aos poucos a sua atenção foi-se concentrando no centro, onde, com um aspecto tão vívido como se continuasse dentro do seu peito, estava o seu coração. Todas as sensações e emoções se foram condensando num só sentimento que o recém-chegado apenas conseguiu identificar quando este se instalou por completo. Era orgulho que sentia, ardente orgulho. É maravilhoso, disse debilmente passados alguns momentos, obrigado, muito obrigado.

5 comentários:

Funny Analana disse...

Weirdo...

Rodovalho Zargalheiro disse...

But in a good way... Right?

Anónimo disse...

Sim...in a good way. Mas eu também gostava de ver a obra. Analana

Rodovalho Zargalheiro disse...

A obra está aqui, disse Rodovalho dando duas suaves pancadas no centro da testa de Analana com o dedo indicador, podes vê-la sempre que quiseres :)

Anónimo disse...

Ao que Analana respondeu com um eco das sabias palavras de Rodovalho Zargalheiro : ) analana