quarta-feira, 29 de abril de 2009

O Olho

Era manhã cedo, estava ainda meio ensonado e não dei qualquer importância à pequena protuberância que senti no crânio enquanto me secava depois do banho. Era na parte lateral, mas suficientemente atrás para não a conseguir ver ao espelho. Uma borbulha, pensei na altura, e não liguei mais. Passados alguns dias, ao passar a mão pela cabeça, voltei a senti-la, parecia maior. Estranhei. Não me doía, mas aparentava estar a crescer. Há-de passar, pensei desta vez, com o meu inato optimismo.

Quando, passada mais de uma semana, voltei a reparar na protuberância, agora já algo do tamanho de um caroço de cereja, uma ponta de preocupação começou a instalar-se. Sempre odiei ir a médicos e só recorro a eles mesmo em casos de manifesta necessidade, por isso resisti à opção e decidi observar mais atentamente o desenvolvimento da situação. Nos dias seguintes, pela observação mais minuciosa do fenómeno, apercebi-me que realmente continuava a crescer e, no espaço de mais uma semana, a protuberância cresceu até ao tamanho de uma pequena azeitona.

Ainda numa posição de resistência a recorrer a um clínico, decidi recorrer à Sílvia, a minha barbeira, como eu lhe chamava, conseguindo uma espécie de tranquilidade infantil, considerando que já estava a recorrer a ajuda profissional. A tranquilidade durou pouco tempo, já que a opinião profissional da Sílvia, depois de observar a protuberância, foi que devia procurar um médico. Pedi que me cortasse o cabelo muito curto, de forma a poder observar melhor o alto.

Em casa, com a ajuda de dois espelhos, a protuberância pareceu-me muito maior do que aparentava ao senti-la com a mão. Ao contrário do que eu pensava, era já algo com um tamanho próximo de um berlinde, mas, na minha atitude normal de desleixo, achei que só parecia muito maior porque tinha agora o cabelo extremamente curto.

Só quando, passados mais alguns dias, calhou enrolar-me com a Ana que, ao pegar-me na cabeça para afundar a minha cara entre os seus seios, gritou assustada, dando um salto para trás, é que finalmente achei que era mesmo imperativo recorrer a ajuda médica. Mexeu-se, disse, horrorizada. É natural, estava a crescer, respondi atónito, já o tinhas sentido antes e nunca reagiste assim. O que é que se passa, perguntei com genuíno espanto. Não é isso, estúpido, respondeu com aquele tom que me fazia adorar quando me chamava aquilo, o alto na cabeça, mexeu-se! A sério, perguntei desconfiado, tens a certeza? Juro-te, senti nitidamente isso a mexer, e foi muito atrofiante. Desculpa lá mas isso cortou o clima e acho que vou andando, disse meio envergonhada, tens mesmo que ir mostrar isso a um médico. Vestiu a camisola à pressa e saiu, visivelmente transtornada. Já não era apenas um alto na cabeça, era algo que começava a interferir com a minha vida, e logo com uma parte que eu prezava bastante. Algo revoltado, decidi que teria mesmo que fazer alguma coisa. Quando, ao apalpar a protuberância, senti também algo a mover-se lá dentro, tive que recorrer a todo o meu sangue-frio para não entrar em pânico. Apesar disso, achei que não podia esperar mais e fui direito ao hospital.

Pois, de facto creio nunca ter visto nada assim, disse o médico, eu diria que era um quisto se não fossem estas pregas na pele que atravessam a protuberância, vamos fazer uma tomografia para podermos ver por dentro. Aguarde aqui um momento, por favor, concluíu enquanto saia para partilhar o caso com um colega. O outro médico entrou e observou-me também. Tem mais alguma coisa assim no resto do corpo, perguntou-me. Não, respondi, é só aí. Siga-me então, vamos fazer o exame.

Aguardava algo ansioso na sala de espera quando entrou o primeiro médico que me tinha examinado. Vinha com um ar algo espantado, o que me provocou algum temor. Faça favor, disse-me enquanto estendia a mão na direcção da sua sala. Entrei, ele entrou a seguir a mim, estendeu novamente a mão, agora na direcção da cadeira e eu sentei-me. O médico observou novamente o meu crânio por alguns momentos e sentou-se também. Depois de uma breve pausa, durante a qual me olhou com alguma estranheza, provocando-me um arrepio na coluna vertebral, quebrou o desconfortável silêncio. É um olho, disse algo bruscamente. Um olho?? Repeti perplexo. Sim, um olho, confirmou, e deixe-me que lhe diga que, em mais de trinta anos de medicina, nunca vi nada assim. Apesar da estranheza do caso, continuou, nem eu nem os colegas a quem pedi aconselhamento achamos que a situação representa algum perigo para a sua saúde, pelo que não pensamos haver razão para alarme. Faremos mais alguns exames e depois podemos discutir as suas opções, sendo que será provável a possibilidade de extracção cirúrgica. Numa questão de segundos imaginei-me um mutante metido numa sala de análise, observado através de um vidro por um magote de cientistas e a ideia assustou-me. Obrigado doutor, disse muito depressa enquanto me levantava, muito obrigado por tudo, voltei a dizer enquanto atravessava a porta em passo acelerado. Ainda o ouvi a pedir-me para esperar, mas não parei até chegar ao carro, onde me meti lestamente, voltando para casa.

Em casa, fiz o meu exame minucioso. Apalpei, olhei, e era nítido que o médico tinha razão, as pálpebras eram já perfeitamente distinguíveis, era mesmo um olho! Algo desnorteado, senti-me fraquejar com o choque e decidi que precisava de descansar. Pensaria no que fazer no dia seguinte.

Quando acordei, nos minutos em que lentamente recuperava a consciência, a minha mente conseguiu enganar-me fazendo-me pensar que toda a história do olho não tinha passado de um sonho, mas, não sei se ao recuperar a razão ou ao passar a mão pela cabeça, a realidade atingiu-me. Era real. Algo assustado, dirigi-me ao espelho e, novamente com a ajuda de outro pequeno espelho, observei demoradamente aquela coisa. O coração quase me saía pela boca quando o olho se abriu! O susto fez-me largar o pequeno espelho que se desintegrou no chão. Foda-se, mais azar, era mesmo o que eu precisava, consegui ainda pensar antes do pavor se apoderar de mim, ao sentir que efectivamente o olho se mexia. Sentia inequivocamente o olho a mexer-se na minha cabeça. Não era, no entanto, uma sensação desagradável, era apenas estranha. Ainda impulsionado pelo pânico, fiz rapidamente um penso com gaze e colei-o na cabeça, tapando o olho. Sentei-me na cama, tentei acalmar-me e pensar no que iria fazer, mas rapidamente se começou a apoderar de mim um estranho desconforto. Não era nada de muito incomodativo, era apenas uma sensação geral levemente desagradável da qual não conseguia perceber a origem e acabei por ignorá-la. Ainda sem saber o que fazer, voltei ao espelho e retirei o penso. Instantaneamente o desconforto desapareceu, tornando claro que se devia ao facto do olho estar tapado. Peguei no caco maior de entre os pedaços do outro espelho que se espalhavam pelo chão e tentei ver o olho. Senti as pernas a fraquejar ao vislumbrar o olho a mover-se freneticamente, olhando parar todo o lado como que tentado perceber o que se passava à sua volta. Mais uma vez o choque me fez largar o pedaço de espelho, que se dividiu em inúmeros pedaços ainda mais pequenos ao atingir o chão.

Abri a água e deixei a banheira encher enquanto varri cuidadosamente os cacos do espelho que se tinham projectado para todos os lados. Deitado na banheira, deixei os músculos descontraírem-se na água quente e, de uma forma semi-deliberada, decidi manter-me em negação em relação à minha condição e fazer a minha vida normalmente. Sequei-me, vesti-me, voltei a tapar o olho com o penso e saí para comer qualquer coisa. O desconforto voltou, comprovando que era provocado pelo tapar daquele estranho olho, mas eu resisti-lhe. Tomei o pequeno-almoço e decidi passear um pouco enquanto fumava um cigarro, mas, apesar de não ser muito desagradável, não conseguia abstrair-me do constante desconforto. Continuei, no entanto, a achar que conseguia continuar a minha vida normalmente. Diria às pessoas que tinha uma ferida ou qualquer coisa assim e viveria normalmente.

Assim fiz. Continuei a minha vida, mas com uma diferença, estava sempre ansioso para ir para casa e poder retirar o penso e fazer desaparecer aquele desconforto. Em casa, depois de ter reposto o espelho partido, passava bastante tempo a observar o estranho olho. Movia-se, parecia mesmo observar o que nos rodeava, mas eu não conseguia ver por ele, era como se fosse independente de mim. Comecei a aceitar que não poderia continuar a viver assim, lembrei-me do episódio com a Ana e percebi que mais tarde ou mais cedo este estranho fenómeno iria ter impactos negativos na minha vida. Apesar disso, mantinha alguma resistência em recorrer a ajuda clínica, não queria ser um objecto de pesquisa, e muito menos ser visto como uma aberração. Para recorrer a médicos, tem que ser numa perspectiva de remover isto sem mais demoras nem exames, pensei enquanto observava o olho na sua aparente azáfama de absorver tudo o que conseguisse visualizar. Estranhamente, senti que não me deveria precipitar, que o aparecimento do estranho apêndice visual poderia trazer-me algum benefício e que poderia via a arrepender-me. Por alguns momentos fantasiei com a ideia de passar a conseguir ver através daquele olho e achei que a possibilidade tinha potencial. Decidi continuar a observar o desenvolvimento do fenómeno antes de tomar uma decisão.

Os dias foram passando e comecei a aperceber-me que, de certa forma, estava a deixar que aquele olho manipulasse a minha vida. Sempre que estava fora de casa, so pensava em voltar para poder retirar o penso e acabar com aquela estranha sensação desconfortável. Tinha também bastantes reservas em partilhar a minha situação com mais alguém, já que achava muito provável que me vissem como algo grotesco. Estava cada vez mais sozinho e um dia obriguei-me a tomar uma decisão. À noite, sentado na cama, prometi a mim mesmo que no dia seguinte procuraria um médico que me extraísse aquilo. Esforcei-me por afastar a sensação de que poderia ainda ter alguma vantagem em ter um olho na parte posterior da cabeça dizendo a mim próprio que tal teria o amargo preço de me tornar, para sempre, uma aberração. Decidido, deitei-me e tentei dormir.

Abri os olhos e a claridade invadiu-me as retinas. Sentia-me estranhamente bem. Estiquei os braços e espreguicei-me vagarosamente. Com uma inspiração profunda, elevei-me e sentei-me na cama. Apercebi-me que, de facto, me sentia maravilhosamente, tanto física, como psicologicamente. Levei a mão à cabeça e fiquei quase eufórico ao perceber que não sentia lá nada de anormal. Passou! Pensei, radiante, Passou! Levantei-me pleno de energia, mas o meu queixo caíu quando olhei para a cama. Ainda meio coberto pelo lençol, estava o que aparentava ser um corpo vazio. Era eu! Era a minha casca vazia que jazia na cama, com um enorme buraco na cabeça.

4 comentários:

Funny Analana disse...

Freak...!
:)

Funny Analana disse...

E se em vez de ser um olho se fosse um rim, ou um baço?

Nawita disse...

Gostei muito.
Por vezes também gostava de me livrar da velha “casca” e voltar mais forte, qual Fénix renascida :P ou cascavel… ou conguito!!!

Anónimo disse...

Quem não gostaria de se ver livre da casca,que por vezes é muito mais feia por dentro do que por fora e muitas vezes enganadora. Também gostei deste. Um anônimo