quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Devaneio

- Vestal.
- Vestal?
- Sim, vestal.
- Nunca perguntei isto numa entrevista, mas… você é do sexo masculino, certo?
- Sim.
- E “vestal” é a palavra que acha que melhor o define?
- Sim.
- Também nunca perguntei isto, mas… É virgem?
- Não.
- Pois. Creio que não consigo compreender a escolha dessa palavra. Se calhar estamos em contextos diferentes. A ideia que tenho é que a palavra “vestal” provém das antigas sacerdotisas da deusa romana Vesta e é usada figurativamente relacionada com pureza e castidade femininas, já que consta que estas sacerdotisas eram obrigatoriamente virgens.
- Sim, superficialmente é isso.
- Aprofunde então, por favor.
- Apesar de Vesta ter ficado relacionada com a castidade por causa das suas sacerdotisas, estava intimamente ligada ao fogo. O seu altar tinha uma chama permanente que nunca se podia extinguir. Esta chama estava relacionada com a origem da vida.
- Não sabia disso. Continue, por favor.
- Fogo, a origem da vida… Parecem-lhe coisas relacionadas com castidade?
- De facto, não.
- Pois. Vesta pode também ser vista como uma representação do aspecto sexual da criação. Existe portanto uma dualidade na palavra que escolhi.
- Talvez comece a compreender. Relacione então isso consigo e explique-me o porquê da escolha dessa palavra.
- Desculpe, mas o psicólogo aqui é o senhor. Explique você.
- Sou psicólogo, mas isto é uma entrevista de emprego, não é uma consulta.
- Não estou a pedir que me explique a mim. Só estou a dizer que perceber o porquê oculto da minha escolha de palavra é o seu trabalho.
- Certo. Da minha parte estamos despachados. Tem alguma questão que me queira colocar?
- Qual é a palavra que acha que melhor o define?
- Muito engraçado. Boa tarde, contactá-lo-emos nos próximos dias.
- Boa tarde.

- Então, que tal correu a entrevista.
- Bom, acho que consegui lixar qualquer hipótese de ficar com o emprego.
- Então, o que aconteceu?
- Já estava farto daquilo. Daquelas perguntas de merda, tipo “Qual acha que é a sua melhor qualidade? E o seu pior defeito?”. Deu-me para parvejar.
- O que é que disseste?
- Ele perguntou-me qual era a palavra que eu achava que melhor me definia.
- E tu?
- Disse “vestal”.
- Vestal? O que é que isso quer dizer?
- Vem das antigas virgens romanas que adoravam a deusa Vesta.
- Antigas virgens romanas? Fenomenal!!
- Foi a primeira palavra que me veio à cabeça. Depois tive que divagar um bocado para tentar dar-lhe algum sentido.
- Claro que ele ficou a pensar que eras completamente doido.
- Pois…
- Bom, esquece lá isso e falemos de coisas mais alegres. Como é que foi a cena ontem com a gaja?
- Nem me digas nada! Foi surreal, no mau sentido.
- Então? Que se passou?
- Para começar, depois de uma meia hora de conversa, já me estava a dizer que tinha uma fantasia de dupla penetração e a perguntar-me se eu não tinha um amigo que alinhasse.
- E tu, o que é que disseste?
- Tentei explicar-lhe calmamente que não me deixava confortável a ideia de ter o meu escroto a alguns centímetros de outro, correndo até o risco de haver contacto. Tentei que ela percebesse que seria estranho o relacionamento com um amigo depois de ter havido contacto físico entre os nossos escrotos. Que nunca mais conseguiríamos olhar um para o outro da mesma forma.
- E ela?
- Ela lá percebeu, ou pelo menos fingiu e não tocou mais no assunto.
- Então não foi muito mau…
- Não teria sido se tivesse sido só isso, mas depois de estarmos enrolados no sofá, ela diz-me que está com o período!
- Alto turn-off…
- Pois, mas o pior é que ela queria festa na mesma!
- E tu, o que é que fizeste?
- Tentei explicar-lhe calmamente que a menstruação não é sexy. Disse-lhe para ponderar porque é que, havendo tantas vertentes na pornografia, para todos os gostos, não se viam filmes com mulheres menstruadas.
- E ela?
- Ela lá percebeu, ou pelo menos fingiu e não tocou mais no assunto.
- E depois?
- Depois fez-me um broche e eu vim-me embora cheio de complexos de culpa.
- Pois, compreendo… Olha, o teu telefone está a tocar.
- Estou sim? Sim, é o próprio. Sim, com certeza. Certo, está combinado então.
- Novidades?
- Sim, era da empresa onde fui fazer a entrevista.
- A dizerem que não correspondias ao perfil que eles procuram?
- Não. A pedir-me para começar na segunda-feira.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Arte #7

O intenso cheiro a éter atirou o cérebro do recém-chegado para a consciência como se o tivesse empurrado da orla de um abismo. Ainda antes de abrir os olhos, apercebeu-se que os movimentos dos seus braços e das suas pernas estavam fortemente condicionados. Passados os quatro segundos que a sua mente demorou a compreender a totalidade da situação, arregalou os olhos. Viu-se nu, coberto apenas por um pequeno lençol com uma abertura rectangular sobre o esterno, de tornozelos e pulsos amarrados a uma fria mesa metálica. Além das três paredes brancas e despidas, conseguia ver apenas um candeeiro cirúrgico que parecia pairar sobre si.
Está aí alguém? Gritou passados poucos minutos. Isto é uma crueldade, vociferou, não sei quem tu és, mas nada te pode dar o direito de fazer isto às pessoas! Depois de alguns momentos de silêncio, os músculos do recém-chegado retesaram-se. O que eu vou fazer é dar um propósito superior à tua vida, disse uma voz que, apesar de perfeitamente inteligível, parecia provir dos confins da crosta terrestre, procurei-te durante muito tempo, não foi fácil encontrar um sujeito adequado, mas assim que senti a tua energia, soube que eras tu quem eu procurava. Ao contrário dos outros, senti que irias compreender, que és merecedor. O que é que me vais fazer, perguntou o recém-chegado com a voz trémula. Vais fazer parte de algo mais elevado, de algo sublime, respondeu, sibilante, a estranha voz. Mas eu não quero! Vociferou o recém-chegado. Não! Por favor, não me faças mal, choramingou, deixa-me ir embora. É por isso que abomino essa mesquinha espécie humana, por esse absurdo instinto de auto-preservação. Porque hão de dar tanta importância, ao ponto de rastejar e implorar, à vossa miserável existência face a coisas mais elevadas? O que importa a vida de um indivíduo? Que diferença vai fazer no mundo a tua morte? Nenhuma, absolutamente nenhuma. Que valor tem a tua vida face a algo etéreo e intemporal? Face a uma obra de arte? Nenhum, valor nenhum! Que animal de uma espécie dita inteligente e racional prefere sempre optar pela sua vida contra a possibilidade de contribuir para o mundo com algo infinitamente mais enriquecedor? A irritação na estranha voz subia de tom. Mas que raio de merda vai isto fazer pela humanidade, seu filho da puta? Gritou, irritado, o recém-chegado. Que merda vai a humanidade ganhar com essa aberração que estás a fazer? Arte, reles ser, arte, aquilo que existe com o único propósito de fazer sentir e pensar, respondeu a voz, algo capaz de nos fazer perceber a nossa insignificância. Revolta-me que, perante a possibilidade que te ofereço de contribuíres para a posteridade com algo realmente significativo, implores pateticamente pela tua indigente vida. É deplorável a existência de uma espécie tão mesquinha e abominável, terminou a voz, com um tom de verdadeiro asco. Mas eu contribuo, trabalho, produzo, argumentou o recém-chegado, cujo medo se ia, aos poucos, convertendo na mais pura ira, e até já arrisquei a vida por outros, já salvei a vida a várias pessoas! Infeliz verme, disse agressivamente a estranha voz, não consegues compreender o pauperismo de tais actos? Nem sequer sabes se tais pessoas o mereciam, talvez merecessem morrer, talvez só tenham prejudicado a sociedade no tempo adicional que cá andaram. Salvar uma pessoa não é mais que salvar uma formiga. É um esforço tão absurdo como o de tentar reimplantar no corpo uma célula que se desprendeu da pele. Que efeito terás na Humanidade? O que ficará dos teus feitos depois de desapareceres? Não vai ficar mais que uma ténue memória que rapidamente desaparecerá. O que eu te estou a oferecer é imortalidade. Compreendes, abominável ser? Um propósito e imortalidade!! Prova-me! Gritou o recém-chegado no píncaro da sua raiva. Prova-me que a minha morte vai fazer melhor que a minha vida. Quero uma prova! Uma prova? Repetiu a voz indiciando algum espanto. Concordo que mereces algum tipo de prova daquilo que defendo, mas não ta posso dar. A única prova possível seria veres a obra completa, mas isso é impossível, e seria impensável deixar-te vê-la inacabada. A não ser que… Após uma breve pausa, continuou. Está bem. Dado o nível da tua contribuição, parece-me apropriado. Prometo que vou dar-te o privilégio e a honra de seres o primeiro a ver o trabalho completo, o resultado final.
Não conseguiu compreender porquê, mas o recém-chegado apercebeu-se que o temor o tinha abandonado por completo. Terá havido algo no discurso deste monstro que, a um nível inconsciente, tenha feito sentido? Pensou. A ira tinha-se também desvanecido. Não tenho escolha, pois não? Disse calmamente. Não obteve resposta. Por uma fracção de segundo, sentiu a consciência a esvair-se.
Acorda, está pronta, ouviu alguém dizer suavemente. Durante os poucos segundos que levou a recuperar a consciência juraria ser a voz da sua mãe a chamá-lo para o pequeno-almoço, mas rapidamente se lembrou de onde estava. O recém-chegado abriu lentamente os olhos. Tinha uma almofada sob a cabeça que lhe permitia ver o que estava à sua frente. A sua visão começou por incidir nos tubos que, por entre grosseiras costuras, protuberavam do seu peito, bombeando o sangue que o mantinha vivo. Fraco, focou para mais longe e um agradável arrepio percorreu o seu corpo, seguido de uma intensa sensação de paz e plenitude. À medida que contemplava os detalhes da obra, a confortável sensação era pincelada com laivos de intensas emoções. Sentia-se cheio, vivo. Aos poucos a sua atenção foi-se concentrando no centro, onde, com um aspecto tão vívido como se continuasse dentro do seu peito, estava o seu coração. Todas as sensações e emoções se foram condensando num só sentimento que o recém-chegado apenas conseguiu identificar quando este se instalou por completo. Era orgulho que sentia, ardente orgulho. É maravilhoso, disse debilmente passados alguns momentos, obrigado, muito obrigado.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Arte #6

Os olhos do recém-chegado não se fecharam mais de um minuto seguido naquela noite. Claro que têm como, pensou, se a vontade for verdadeira, arranja-se solução. Será que eu conseguiria? Perguntou-se enquanto alternava o olhar entre as várias formas que se espalhavam junto às paredes fracamente iluminadas. Visualizou-se a ajustar as suas mãos à volta do pescoço de cada um dos seus companheiros de infortúnio. Tentou imaginar os seus rostos a dar o último suspiro. Projectou na sua mente os rostos deploráveis de cada um dos homens à mercê das suas mãos e, perplexo, sentiu-se capaz. Pelas suas figuras lastimáveis, não era tão difícil encaixar um acto tão atroz como sendo movido por compaixão. Coitados, pensou, é triste, mas basta olha para eles para achar que a morte seria um favor. Desviando o olhar para o vulto mais próximo de si, imaginou de seguida o rosto da mulher sem pernas no momento em que a sua vida se esvaía. Achou que seria mais difícil, a calma que conseguia transmitir-lhe criou em si uma empatia que não existia com os demais. Apesar disso, achou que poderia conseguir, se tivesse a certeza que era esse o seu desejo. Quando o encardido rosto da rapariga apareceu na sua mente, rapidamente percebeu que seria muito mais complicado. Apesar de suja e desgrenhada, a sua aparência não suscitava o mesmo nível de comiseração que os outros. Era uma visão excessivamente infausta, sem dúvida, mas não tinha comparação com as miseráveis figuras dos outros. Bastou imaginar os seus olhos tristes à espera do seu irreversível fado para ter a certeza que não conseguiria, mesmo que ela o desejasse. Desejou ardentemente que ela não o quisesse até que o seu pensamento dispersou. E a minha hora, quando chegará? Meditou contemplando os primeiros raios de sol reflectidos nas inúmeras partículas de pó em suspensão no ar deletério.
Pouco tempo depois, como em todos os dias, o silêncio foi quebrado pelo ranger da portinhola. Como um funesto ritual, em resposta ao som, os vultos disformes começam a mover-se e a aproximar-se da porta. Cumprindo a sua parte, o recém-chegado imitou e regressou para junto da mulher com o medíocre pequeno-almoço de ambos.
Preferias morrer? Perguntou baixo à mulher, tentando que ninguém o ouvisse, mas reparou que o velho levantou rapidamente a cabeça, virando para si o ouvido direito. A mulher virou a cabeça devagar na sua direcção. Já tive dias em que aceitaria a morte de bom grado, mas tenho outros em que me sinto feliz por ela não ter chegado, disse, em tom normal e sem qualquer preocupação com quem ouviria. Quase instantaneamente, o velho virou as suas órbitas ocas na direcção dos dialogantes. Porquê a pergunta? Disparou o velho do outro lado da cela. Disseste-me que só não acabaste com a tua vida porque não tinhas como, respondeu o recém-chegado. Disse e repito, retorquiu o velho no seu constante tom amargo. Pois agora já tens como, respondeu secamente o recém-chegado, ainda queres? Não penses que és o Einstein por teres pensado nisso, continuou o velho no mesmo tom, eu já tive essa ideia há muito tempo, mas seria incapaz de pedir uma coisa dessas a alguém, de pedir a alguém que, por mim, carregasse para o resto da vida o peso de ter tirado a vida a outro ser humano. Lentamente, o velho levantou-se e, da mesma forma que o faria se os seus globos oculares ainda se encontrassem no sítio devido, atravessou o espaço e ajoelhou-se em frente do recém-chegado. Estás a voluntariar-te? Perguntou aproximando tanto o seu rosto do do recém-chegado que este se contorceu de náusea ao cheirar o hálito do velho. Sim, voluntario-me, respondeu o recém-chegado sem pensar. Se me garantires que é isso que queres, eu faço-o. Garanto-te que é o que quero, não tenho qualquer dúvida, respondeu prontamente o velho. E tu? Perguntou. Tens a certeza que és capaz? Tens consciência de que nunca mais serás o mesmo? De que esse momento nunca, nunca mais se vai esbater na tua memória? Que vai ficar sempre tão vívido, que vais ter vontade de fazer um furo na cabeça para que as memórias escorram para fora? Pareces saber bastante sobre o assunto, disse o recém-chegado com uma nota de sarcasmo na voz. Não é isso que estamos a debater, respondeu rispidamente o velho. Pois não, retrucou o recém-chegado quase com a mesma rispidez, e já te disse que o faço, que te faço esse favor. Não sei o que aconteceu no teu caso, continuou mais delicadamente, mas se eu o fizer será um acto de misericórdia e será assim que o momento ficará registado na minha memória. Se continuar sempre vívido, fará sentir-me bem lembrar-me que tive coragem suficiente para, movido por puro altruísmo, conceder esse obséquio a alguém, por ter estado à altura da situação e ter feito o que tinha que ser feito. Está bem, convenceste-me, respondeu o velho aparentando estar algo divertido com o discurso, estou à espera. Faço-te esse favor, disse o recém-chegado enchendo o peito, com a condição de haver um dia de reflexão. Isto vale para todos, continuou, levantando o tom de voz. Pensem bem no assunto e dêem-me a vossa resposta amanhã. Não sei onde vou conseguir forças, mas eu faço-o. Faço-o por compaixão para convosco, mas também porque é a única vingança que vos posso proporcionar. Ao terminar o seu discurso, olhando para o rosto triste da rapariga, quase imperceptivelmente, rodou a cabeça para ambos os lados.
Todos ficaram em silêncio virados para o recém-chegado por alguns momentos até que o homem sem braços quebrou a quietude. Eu também quero, disse, elevando o tom de voz mais do que seria necessário para que todos ouvissem. Eu também quero, repetiu mais baixo. Todos os rostos se viraram para si. Mesmo que ainda venha a sair daqui, que não acho que aconteça, que vida vou eu ter? Alguém aqui vai conseguir ultrapassar isto se conseguir sair daqui? Perguntou aos demais. Não, para mim chega, continuou, dirigindo-se ao recém-chegado, se me fazes o favor de não permitir que aquele ser abjecto continue a divertir-se a ver-me definhar, eu agradeço-te do fundo do meu coração. O recém-chegado acenou com a cabeça em consentimento e voltou-se para encontrar o olhar da mulher sem pernas. Eu vou pensar nisso, respondeu a mulher à pergunta não verbalizada.
Enquanto todos se abstraíam, meditando sobre o assunto que se tinha discutido, o recém-chegado acercou-se da rapariga. Tu não precisas de pensar no caso, disse-lhe baixinho, mas sabendo que o velho o ouviria, nunca to conseguiria fazer, não entras para o acordo. Porquê? Perguntou a rapariga. Porque há uma pequena hipótese de saíres daqui e ainda vires a ter uma vida normal, respondeu o recém-chegado. Olha para eles, continuou enquanto percorria o espaço com um movimento do braço direito, mesmo que saíssem daqui, as feridas físicas e emocionais tomariam sempre conta da sua vida, acredito que, para eles, a morte é mesmo a única libertação possível, mas não para ti. Eu não quero morrer, disse a rapariga, olhando fundo nos olhos do recém-chegado, o que eu queria, já que não posso sair daqui, era ficar cá sozinha contigo. O olhar da rapariga desviou-se para uma racha no chão ao proferir a última frase. Porquê comigo? Perguntou espantado o recém-chegado. Tens braços, retorquiu a rapariga, continuando a percorrer lentamente com o olhar a fenda no chão, não és repulsivo, não és mais velho que o meu pai… O recém-chegado deslizou suavemente as costas do indicador direito na face encardida da rapariga, que levantou o olhar para encontrar o seu. A decisão não é minha, disse, mas se ficarmos cá os dois sozinhos, eu não vou poder ser mais que um irmão mais velho para ti. A rapariga virou violentamente a cara para o outro lado e, com passos rápidos, foi sentar-se no canto oposto abraçando as pernas.
O resto do dia decorreu em silêncio. Com excepção do velho, que dormiu a maior parte do tempo, meditabundos, os restantes ocupantes mantiveram-se ensimesmados, provavelmente a pensar no que iria acontecer na manhã seguinte.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Arte #5

Após algumas dezenas de minutos, durante os quais cada um se manteve silenciosamente imerso nos seus próprios pensamentos, o recém-chegado acercou-se da parede onde o velho mantinha o seu registo e ficou estático a olhar para a serpenteante fila de riscos na parede. Trezentos e oitenta e sete, disse o velho, provocando algum espanto no recém-chegado por parecer ter lido a sua mente. Estás cá há trezentos e oitenta e sete dias? Perguntou abismado o recém-chegado. Sim, respondeu o velho, fui o primeiro. Estive vários meses aqui sozinho, continuou, e só não acabei com a minha miserável existência porque não tinha como. Agora já nem me preocupo, estou mentalizado para acabar aqui os meus dias, só espero que esteja para breve. As palavras do velho provocaram uma imensurável tristeza no recém-chegado, que lutava por não desmoralizar e manter uma réstia de optimismo. Deduzo que a rapariga foi a última pessoa a chegar antes de mim, especulou o recém-chegado em tom interrogativo. Sim, de facto deduzes bem, embora o facto que provavelmente te levou a essa dedução não o comprove, respondeu o velho. Como assim? Perguntou o recém-chegado. Ele já a veio buscar uma vez, mas aparentemente não lhe fez nada, explicou o velho, ou pelo menos é o que parece e é o que ela diz, se calhar fez-lhe alguma coisa que ela não quer dizer, continuou em tom ponderativo. Bom, pelo menos não lhe fez nada que salte à vista, ao contrário do que aconteceu com o resto de nós, concluiu, percorrendo a sua longa cicatriz com a ponta do indicador da mão direita. Depois recostou-se na parede e cruzou as mãos sobre o abdómen, como se se preparasse para dormir.
O recém-chegado deixou-se ficar alguns momentos em silêncio junto ao velho e aproximou-se depois da rapariga. Achas mesmo que ele não é humano? Perguntou com delicadeza. Não sei o que ele é, mas não acredito que um ser humano possa dar tão pouco valor à vida de outro, retrucou a rapariga. Pois, ainda és demasiado nova e ingénua, pensou o recém-chegado condescendentemente, mas limitou-se a acenar com a cabeça. E ele falou mesmo contigo? Sim, respondeu a rapariga com uma voz trémula, foi arrepiante. E o que é que ele te disse? Indagou o recém-chegado. Não me disse grande coisa, mas, apesar de não me ter feito mal, foi o suficiente para me deixar aterrorizada, respondeu a rapariga. Conta-me, pediu o recém-chegado.
A rapariga respirou fundo, endireitou as costas como que reunindo forças e começou. Nunca ninguém aqui o viu nem teve nenhum contacto com ele, além do que me aconteceu a mim. Ninguém sabe sequer se é só um, ou mesmo se é humano. Sou quem está cá há menos tempo depois de ti e, quando cheguei, ninguém sabia absolutamente nada do que poderia estar a acontecer. Só sabiam que havia manhãs em que, ao acordarem, faltava uma pessoa. Essa pessoa normalmente, sem ninguém também saber como, aparecia noutra manhã, vários dias depois… A rapariga fez uma pausa e desviou o olhar para o velho que dormitava. Naquele estado, continuou, enfiando a cara não mãos sem conseguir conter o choro. O recém-chegado afagou-lhe o cabelo sujo e dirigiu-lhe algumas palavras de conforto. Podes abraçar-me? Pediu a rapariga. O recém-chegado abriu os braços e ela, encaixando-se nele, encostou a cabeça ao seu peito e fechou os olhos.
Obrigado, disse ela, já recomposta, passado algum tempo. Não imaginas o que eu estava a precisar de um abraço. Tem um efeito quase milagroso, não achas? O recém-chegado limitou-se a murmurar uma interjeição afirmativa. A teoria geral é que libertam um gás anestesiante, disse a rapariga, retomando o assunto. Suponho que ninguém se surpreendeu quando, uma manhã, eu não estava lá, mas a minha história é diferente. Não acordei aqui, no mesmo estado que os outros. Então? Perguntou, curioso, o recém-chegado, como se estivesse esquecido que o que ouvia não era apenas uma história, mas sim uma cruel realidade onde estava também inserido. Acordei presa a uma espécie de mesa de operações, numa sala que parecia pertencer a um hospital antigo com um quase insuportável cheiro a éter. Pouco depois ouvi uma voz. Uma voz que não pode ser deste mundo, parecia que silvava e saia do fundo de um buraco. Causou-me verdadeiro pavor. O que é que ele disse? Perguntou o recém-chegado, cada vez mais empolgado. Essa é a parte mais estranha, pediu-me desculpa. O quê? Perguntou, incrédulo, o recém-chegado. Sim, respondeu a rapariga, foi perfeitamente educado e pediu-me desculpa porque eu não servia. Não servias? Porquê? E para quê? Indagou o recém-chegado. Não sei, respondeu a rapariga, além de pedir muita desculpa, ele só me disse que a matéria-prima tinha que estar imaculada e que eu não servia. Ainda bem, respondeu apenas o recém-chegado, sorrindo. Corada, desviando os olhos, a rapariga sorriu também.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Arte #4

Porque se referem sempre a “ele”, perguntou o recém-chegado, porque é que acham que é só uma pessoa? Nas poucas e curtas mensagens que já nos deixou escritas assina “Escultor”, respondeu a mulher, mas eu não acredito que ele consiga fazer tudo sem ajuda. Haverá de certeza outros que o ajudam, mas tudo aponta para que seja mesmo à mercê de apenas uma pessoa, humana ou não, que estamos. E o que diziam essas mensagens? Continuou, curioso, o recém-chegado. A mulher enfiou a mão por dentro da camisa suja e esfarrapada e retirou de lá dois pedaços dobrados de papel amarelado e entregou-os ao recém-chegado. Depois de alguns segundos a olhar para os pedaços de papel pousados na palma da sua mão, o recém-chegado pegou num deles e abriu-o. Estava encardido e emanava um cheiro estranho e desagradável. “Dignitários sois de grave prerrogativa” era o que estava escrito, notoriamente a aparo, numa letra extremamente cuidada e floreada. O papel amarelado e a letra manuscrita faziam a mensagem aparentar ter séculos de existência. Voltou a dobrar cuidadosamente o pedaço de papel e, com o mesmo cuidado, abriu o outro. “Compreendei a vossa fortuna” estava escrito na segunda nota, na mesma letra trabalhada. Escultor… O recém-chegado leu alto a palavra que assinava ambas as notas. Escultor… Repetiu para si próprio, dirigindo o olhar para a janela que deixava entrar alguns raios de sol. Dignitários sois de imensa prerrogativa? Compreendei a vossa fortuna? Que merda quer isto dizer? Perguntou o recém-chegado à atmosfera, em tom irritado. Pelo que percebo, ele ou vai recompensar-nos, ou acha que nos está a fazer bem, respondeu a mulher, sem nunca mostrar abalada a sua pacatez. Estás a ver o nível do filho da puta? Disparou o velho, do outro lado da cela. Ainda acha que nos está a fazer um favor, o grande pulha. Se queria ser decente, pelo menos dava-nos alguma escolha. Eu nunca disse que achava bem o que ele nos está a fazer, retorquiu a mulher, apenas elevando a volume da sua voz, mas mantendo no mesmo tom calmo, mas é por isto que acho que ele não nos está a fazer mal apenas para satisfazer um qualquer depravado desejo sádico. Não acho que o objectivo de tudo isto seja apenas fazer-nos sofrer. A última frase foi proferida mais suavemente e dirigida ao recém-chegado, que lhe retribuiu um olhar compreensivo.
O recém-chegado sentou-se ao lado da mulher sem pernas. Sabes, isto pode ser também uma forma cruel de brincar com as nossas mentes, com a nossa sanidade mental, disse baixinho. Claro que pode, respondeu a mulher quase de imediato, não penses que não coloco essa possibilidade, mas, como não tenho provas nem dessa, nem da outra hipótese, e já que não posso fazer nada, prefiro acreditar na que me é mais confortável.
Ele mostra-se, perguntou o recém-chegado, alguém já o viu? Não, respondeu o homem sem braços com a sua voz débil, quando vem buscar alguém, só nos apercebemos quando acordamos. Ele deve usar alguma coisa para nos pôr a dormir profundamente. É um vampiro, um monstro, disse a jovem rapariga, levantando a voz. Não há monstros ou vampiros, disse o velho com alguma irritação na voz, o que há é seres humanos capazes das maiores barbáries. Os monstros somos nós, os maiores monstros que cá andam, e basta conhecer um bocadinho da nossa história ou simplesmente ver as notícias para perceber isso. E a voz? Aquela voz não pode ser humana, gritou a jovem rapariga, roçando a histeria, dizes isso porque nunca lhe ouviste a voz. Ela foi a única com quem ele já falou, esclareceu o homem sem braços, dirigindo-se ao recém-chegado, não sabemos porquê.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

A parte de dentro para fora

“Não é o que metemos dentro de nós que nos define, mas sim aquilo que sai de nós”, disse-me uma vez um amigo. Pessoa muito interessante, constantemente à procura de novas emoções, totalmente agarrado às drogas. Concordo. Acho que estava imerso em razão. É uma pena ter morrido tão jovem…