segunda-feira, 21 de maio de 2007

Nevrostalgia

– Doutor, quero apagar todas as minhas recordações boas.
– Como??? Apagar as recordações boas??
– Sim, quero eliminar todas as minhas recordações agradáveis!
– Mas isso além de absurdo é muito perigoso. Os equipamentos para manipulação de memórias ainda não são cem por cento fiáveis, principalmente num caso em que será necessária uma extrema precisão na selecção das memórias a eliminar. Do meu conhecimento, estes processos são apenas usados em casos traumáticos graves, e nesse caso a memória do trauma é facilmente distinguível por entre as outras.
– Quer portanto dizer que é possível.
– Os riscos do que me está a pedir podem ir desde eliminarmos memórias que não queríamos, até ficar num estado vegetativo. Possivelmente até mesmo a morte!
– Estou disposto a correr qualquer risco! Não aguento mais.
– Não consigo conceber porque uma pessoa poderá querer eliminar as suas boas recordações, muito menos correndo o risco de ficar com graves danos cerebrais. Além do mais, seria um processo extremamente moroso e dispendioso.
– Não aguento mais a nostalgia, doutor; as minhas boas recordações fazem-me sofrer. Eu gosto de me divertir, gosto do momento em que me divirto; mas lembrar-me posteriormente desse momento faz-me sofrer desmesuradamente, e quanto mais feliz for a recordação, pior! E porquê? Não preciso da recordação de um momento feliz, basta-me viver o momento e depois não me lembrar mais disso. Para quê a recordação se apenas nos traz nostalgia.
– Creio que começo a compreender, mas a verdade é que é impossível prever o efeito de um processo desses. Como se comportará um cérebro humano desprovido de qualquer memória agradável? Pode entrar numa espiral depressiva, ficar até com tendências suicidas, por exemplo.
– Certo, também não é preciso serem todas as recordações agradáveis, só aquelas mesmo, mesmo boas, as que deixam saudade. Podem perfeitamente ficar aquelas menos importantes, coisas que achei piada, conversas, etc. Momentos agradáveis, mas que não tenham sido tão marcantes. Só não quero as que me fazem sofrer por querer vivê-las novamente e não poder.
– Sabe, essa ideia que ao princípio me pareceu completamente absurda, começa a fazer cada vez mais sentido. Creio até que, activando a memória e registando a sua reacção a ela, conseguimos distinguir bastante bem as que o fazem sofrer. Talvez a selecção não seja tão difícil como imaginei.
– Por favor, doutor. A minha felicidade depende disso!
– Isto de facto não é tão estúpido como parece, quem sabe não estamos a inventar um processo que se tornará corrente. Deve haver mais gente com esse desejo… Realmente… Para que é que eu quero recordações que me deixam melancólico? Se não me lembrar delas também não lhes sinto a falta… Sabe, acho que alinho consigo. Vou também submeter-me a isso!

4 comentários:

AP disse...

Então, e este processo não provoca nostalgia, ou melancolia, por depois não nos lembrarmos das boas memórias que tivemos? Ou pura e simplesmente não nos lembramos que tivemos boas memórias? Se não nos lembrarmos que tivemos boas memórias, isso não pode também porovocar melancolia, ou nostalgia? ;)

Anónimo disse...

Olha, a memória tem a ver com o tempo e eu estava mesmo agora, há cerca de uns minutos atrás, no dia de hoje, nem mais nem menos que a pensar no tempo. Ele há coisas!..

Rodovalho Zargalheiro disse...

Realmente há coisas que não podem ser só coincidência...

É possível que não ter memórias boas, daquelas mesmo mesmo boas, provoque alguma melancolia... Será que ainda vamos a tempo de avisar o homem? :)

Anónimo disse...

As coincidências, por exemplo, são daquelas boas memórias que desvanecem tão rapidamente como a própria soma indevida de incidências. São contas de cabeça com demasiados zeros.
De qualquer forma, já plantei um megafone no canteiro da varanda, da sub-espécie "emissão contínua", de modo a que todos os Homens que passem nesta rua recebam a nova. Pode ser que se lembrem de passar a palavra se, ao dobrar a esquina para a rua principal, não esbarrarem com uma qualquer passageira coincidência.