"A mais conhecida das recomendações de Espinosa no que respeita a viver uma vida bem vivida consistia numa prescrição dupla: um sistema de comportamento ético e um estado democrático. Mas é evidente que não pensava que obedecer a regras éticas e obedecer às leis de um estado democrático fosses suficientes para atingir as formas mais elevadas de contentamento, a alegria sustenida que, para ele, se confunde com a liberdade e com a salvação humana. A minha impressão é que a maior parte dos seres humanos de hoje também não acha suficiente essa dupla prescrição. Pretendemos que a vida nos dê qualquer coisa que vai para além de uma conduta moral e legal, para além das satisfações do amor, da família, das amizades e da boa saúde, para além das recompensas que resultam do trabalho (satisfação pessoal, aprovação dos outros, honra, dinheiro), para além da indulgência dos prazeres privados e da acumulação de posses e para além da identificação com um país ou com a humanidade. Muitos seres humanos requerem também qualquer coisa que envolva uma certa clareza sobre o significado da vida. Esta necessidade, articulada com nitidez ou de forma confusa, pouco importa, consiste num anseio de conhecer uma origem e um destino, de onde viemos e para onde vamos, e de esclarecer a finalidade que a nossa vida pode ter para além da existência imediata.
Nem todos os seres humanos têm tais necessidades. Aquilo de que um ser humano precisa para viver feliz varia consideravelmente com a personalidade, inquisitividade e circunstâncias socioculturais, já para não falar nas diferenças que têm a ver com a idade e com o tamanho da conta bancária. A juventude dá-nos pouco tempo para apreciar as limitações da condição humana, e a riqueza encobre muitas dessas limitações. E para quê pedir mais que juventude, saúde e boa fortuna, dirão alguns? Mas, para aqueles que reconhecem um tal anseio, vale a pena perguntar por que razão querem atingir qualquer coisa que não parece particularmente fácil e pode até nunca ser atingida. Por que razão são os tais clareza e conhecimento extras assim tão desejáveis?
Podíamos começar a resposta dizendo que o tal anseio é um traço profundo da mente humana. Este traço está enraizado no desenho do cérebro humano e no genoma que permite o desenvolvimento desse cérebro, como os traços profundos que nos levam, com grande curiosidade, a explorar sistemáticamente o nosso próprio ser e o universo que nos rodeia, os mesmos traços que nos impelem a construir explicações para os objectos e situações desse universo. A origem evolucionária do anseio é inteiramente plausível, mas é necessário evocar um outro factor para perceber a razão por que a natureza humana incorporou esse traço. Creio que esse outro factor estava já presente nos primeiros seres humanos, tal como está presente hoje em dia. A sua consistência tem a ver com o poderoso mecanismo biológico que lhe está por trás: o mesmo esforço natural de auto-preservação que Espinosa articula tão transparentemente como uma essência dos nossos seres, o conatus, é posto em acção quando somos confrontados com a realidade do sofrimento e, especialmente com a realidade da morte, real ou antecipada, nossa ou daqueles que amamos. A perspectiva de sofrimento e morte compromete o processo homeostático de quem os confronta. A procura de auto-preservação e do bem-estar responde a este compromisso como uma tentativa de evitar o inevitável e regressar assim ao equilíbrio. É uma tentativa árdua que nos leva a procurar estratégias compensatórias para a homeostasia perdida. A partir do momento em que reconhecemos essa situação desenvolve-se em nós um profundo pesar.
Uma vez mais, nem todos os seres humanos reagirão deste modo, por uma razão ou por outra, numa altura da vida ou noutra. Mas os seres humanos que reagem da forma que descrevi, quer consigam ou não resolver o impasse e recuperar o equilíbrio, reconhecem a dimensão trágica desta situação, bem como o facto de que é exclusivamente humana.
Tanto quanto a consigo entender, esta situação resulta, em primeiro lugar, do facto de termos sentimentos - não apenas emoções, mas sentimentos -, em particular os sentimentos de empatia, através dos quais tomamos conhecimento da nossa simpatia emotiva natural para com os outros. Nas circunstâncias apropriadas, a empatia abre as portas ao pesar. Em segundo lugar, a situação resulta de dois dons biológicos, a consciência e a memória. Partilhamos consciência e memória com outras espécies, mas não há dúvida que a consciência e a memória atingem um grau e uma sofisticação extraordinariamente grandes nos seres humanos. No sentido estrito da palavra, a consciência significa a presença de uma mente com um si, mas, em termos práticos, a palavra significa qualquer coisa mais. Com a ajuda da memória autobiográfica a consciência permite-nos ter um si enriquecido pelas recordações da nossa própria experiência individual. Quando enfrentamos cada novo momento da nossa vida, como seres conscientes, influenciamos esse momento com as circunstâncias das alegrias e tristezas passadas, bem como as circunstâncias imaginárias do nosso futuro antecipado, essas circunstâncias futuras que, presumivelmente, nos trarão mais alegrias e mais tristezas.
Se não fosse este nível tão alto de consciência humana, nunca haveria angústia notável, agora ou no amanhecer da humanidade. Aquilo que não sabemos não nos pode ferir. Se tivéssemos o dom da consciência mas não nos tivesse sido dada a memória, também não teríamos qualquer angústia. Aquilo que sabemos, no presente, mas somos incapazes de colocar no contexto da nossa história pessoal, apenas nos pode ferir no presente. É a combinação destas duas benesses, a consciência e a memória, bem como a sua abundância, que causam o drama humano e que conferem a esse drama o seu estatuto trágico. Felizmente para nós, esses mesmos dons são também a fonte da alegria sem limites e da glória humana que lhe corresponde. Felizmente que viver uma vida bem examinada é também um privilégio e não apenas uma maldição. Nesta perspectiva, qualquer projecto de salvação humana - qualquer projecto capaz de tornar uma vida examinada numa vida feliz - deve incluír meios para resistir à angústia causada pelo sofrimento e pela morte, meios para suprimir a tristeza e para a fazer substituir pela alegria. A neurobiologia da emoção e do sentimento diz-nos, em termos bem sugestivos, que a alegria e as suas variantes são preferíveis à tristeza e às suas variantes, que a alegria leva mais facilmente à saúde e ao florescer criador. Não parece haver aqui qualquer equívoco: devemos procurar a alegria por decreto assente na razão, mesmo que a procura pareça tola e pouco realista. Para aqueles que não têm fome e que não vivem sob um regime opressivo, é necessário compreender que estar vivo é um privilégio."
in Ao encontro de Espinosa, Manuel Damásio
Acha o Sr. Damásio, e na minha opinião faz todo o sentido, que todos os mecanismos que conseguímos que evoluíssem no nosso cérebro humano, mais precisamente o sentimento a que ele chama "si" (self), foram despoletados pelo instinto natural de auto-preservação, presente em todos os seres, até mesmo nos unicelulares que, coitaditos, nem sequer podem sonhar em ter um sistema nervoso.
Ou seja, toda a nossa consciência e engenho humanos, não foram mais do que ferramentas que a evolução nos ofereceu para melhor nos preservarmos. Para melhor atingirmos o que todos os seres viventes procuram: o bem-estar. Mais que a simples neutralidade, não estar bem nem mal, todos os seres procuram o conforto.
Pergunto-me se a natureza não terá errado no nosso caso. Creio que a um nível mais primitivo o sentimento de si terá sido uma óptima ferramenta para não só sobreviver, como encontrar o bem-estar. Acho no entanto, que o nível de evolução que atingimos já não nos ajuda tanto a atingir tal meta. Estamos no ponto em que a consciência associada à memória já nos trazem mais pesar que alegria. Estamos no ponto em que começámos a achar que a ignorância é uma benção ("Aquilo que não sabemos não nos pode ferir").
Gosto de acreditar que é um passo necessário para o que virá depois, que temos que passar por isto para evoluír mais além. Até ao ponto de ser realmente possível para um ser humano, atingir a plenitude. É pena é que para isto tenhamos, eventualmente, que evoluír para além dos sentimentos.
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