segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Arte #2

Conseguiu sentir algo semelhante a uma sensação de alívio quando, pouco depois dos primeiros raios de sol começarem a entrar pela pequena janela, os vultos disformes começaram a assumir formas humanas. A sensação foi abruptamente cortada quando as silhuetas se tornaram mais nítidas e o recém-chegado percebeu que algo não parecia normal.

Antes que pudesse processar as informações que o seu cérebro recebia das retinas, uma ranhura abre-se na desgastada, mas robusta, porta de ferro, através da qual um tabuleiro com alimentos foi introduzido no espaço. Lentamente, as figuras distantes aproximaram-se dele e pôde vê-los com revoltante detalhe.

O primeiro que, coxeando, se acercou do tabuleiro era um homem já de alguma idade. Apesar da sua deplorável condição o fazer parecer muito envelhecido, achou que não devia ter muito mais que cinquenta anos. Estava extremamente magro e o seu tronco nu apresentava uma grotesca e retorcida cicatriz que se perdia em direcção às costas. Conforme cambaleava na sua direcção, o recém-chegado deixou cair o queixo ao reparar nas sua órbitas ocas. Os olhos do homem tinham sido cuidadosamente extraídos, dando ao seu rosto a aparência de uma caveira. Quem poderia fazer uma coisa destas a alguém, pensou ainda por um instante antes do homem quebrar o silêncio. Estou a ver que temos mais um, disse roucamente, mas não ocorreu ao filho da puta pôr mais comida! Exclamou, virando o seu grotesco rosto na direcção do recém-chegado ao mesmo tempo que partia, o mais irmãmente que conseguiu, o pão em cinco pedaços. Não precisas de te assustar, eu sei que não tens culpa, acrescentou dirigindo-se ao recém-chegado como se tivesse percebido o temor nos seus olhos. Estamos todos no mesmo barco, concluiu enquanto se sentava mordiscando o seu pedaço de pão.

Quando o homem se calou, o recém-chegado desviou a sua atenção para as outras duas pessoas que se movimentavam. Uma encardida menina, que achou ter entre doze e catorze anos ajudava um homem mais velho a levantar-se. O homem teria algo entre trinta e quarenta anos, o seu estado sujo e subnutrido impedia uma estimativa com mais precisão. A aproximação permitiu confirmar o que a sua silhueta já tinha feito inferir, os seus braços tinham sido amputados. A rapariga ajudou-o a sentar-se e, recolhendo dois pedaços de pão, sentou-se junto dele dando-lho à boca enquanto comia o seu. No momento de silêncio que se seguiu, a rapariga, que não apresentava qualquer mutilação visível, dirigiu o seu olhar ao recém-chegado e nele, este viu a mais intensa comiseração. Estava quase a ir-se abaixo perante o triste fado que a cena e o olhar da rapariga deixavam adivinhar para si, quando uma voz o distraiu.

Então, conseguiste dormir? Podes trazer-me o meu pão, se fazes favor? Virou a cara na direcção da voz e confirmou que provinha da mulher sem pernas. A sua voz era doce, quase maternal e ficou surpreendido ao perceber que conseguiu transmitir-lhe algum alento. Claro, disse o recém-chegado enquanto se apoderava dos dois últimos pedaços de pão. Entregou um à mulher, que lhe sorriu, e deixou-se ficar, pensativo, a olhar para o seu. Não consigo comer, disse após alguns minutos, nauseado com o cheiro e com um nó no estômago causado pelo nervosismo. Com alguma dificuldade dividiu o seu pedaço de pão em quatro partes e distribuiu-as entre os demais que o receberam com um misto de espanto e gratidão.

Em silêncio, o recém-chegado percorreu as paredes com o olhar, várias áreas estavam gravadas com palavras que não conseguia ler de onde se encontrava e, aparentemente, havia quem estivesse a tentar manter um registo do tempo em que se mantinha cativo. O enorme número de toscos traços gravados nessa parede fizeram-no perder toda a esperança que ainda mantinha que o pesadelo não durasse muito. Continuando a sua observação, com um esgar enojado, cerrou os olhos ao deparar-se com o canto de onde provinha o fedor. É um pesadelo, é isso, é só um pesadelo e daqui a pouco vou acordar, pensou.

Deves ter perguntas. A voz retirou-o da sua catatonia e fê-lo abrir novamente os olhos. Provinha do homem sem braços que, apesar da amargura da sua voz, lhe dirigia um olhar empático. Sim, apesar de conseguir adivinhar algumas coisas, quero saber porque estamos aqui, porquê nós, quem é que nos mantém aqui presos, disse em tom algo suplicante. Bom, disse o velho, antecipando-se ao outro homem, os porquês também eu gostava de saber. Quem, continuou após pigarrear para clarear a voz, também não sabemos ao certo, sabemos apenas que é um filho da puta cruel e demente. Demente, sem dúvida, cruel, não sei, interveio a mulher sem pernas. Não acha que ele seja cruel? Perguntou o recém-chegado, olhando atónito para ela. Aqui tratamo-nos todos por tu, disse com a sua estranha calma, e não, não acho, pelo menos, que seja uma crueldade calculada ou propositada. Acho que somos algo como moscas que uma criança guarda dentro de um frasco, continuou, acho que ele não tem realmente consciência do mal que nos faz, qual criança que arranca as asas de uma mosca. Será cruel, de facto, mas não deixa de ser inocente, concluiu cruzando as mãos sobre o ventre. Ele não é humano, disse, aterrorizada, a jovem rapariga, que, assim que o recém-chegado virou para si a sua atenção, baixou a cabeça, olhando timidamente o chão, não é humano, repetiu num sussurro. Então o que é que ele é? Perguntou o recém-chegado à rapariga. Esta, levantou a cabeça apenas o suficiente para que os seus olhares se cruzassem e limitou-se a encolher os ombros. Seja humano ou não, para mim é um filho da puta, disse o velho enquanto se levantava para se dirigir à parede junto de onde tinha dormido e se dedicar a, pacientemente, adicionar, com a unha do polegar da mão direita, mais um risco à incontável fila que lá estava gravada.

5 comentários:

Funny Analana disse...

Pesadelo marado :)

Nawita disse...

os vultos disformes começaram a assumir formas humanas. A sensação foi abruptamente cortada quando as silhuetas se tornaram mais nítidas e o recém-chegado percebeu que algo não parecia normal.

Isto é exactamente o que me acontece quando, depois de instalada atrás da minha secretária, chegam os meus colegas e patrão!


Visão de horror mas onde ainda há alguma beleza! É sempre assim quando se juntam seres humanos!

Nawita disse...

Incrível a capacidade que o ser humano tem de manter a esperança mesmo quando ela parece ser em vão.

O homem mais velho mantém um registo do tempo que ali passam porquê?

Rodovalho Zargalheiro disse...

É por isso que faço questão de ser sempre o último a chegar.

E... Não ligues, são cenas de velho :)

Funny Analana disse...

Se calhar é para contar o tempo que lhe falta para morrer ou viver :)