quinta-feira, 31 de julho de 2008

Tempus Fugit - Capítulo 1.1.1

Nunca se tinha sentido tão à-vontade. Durante o momento morto, cuja duração parecia já quase igualar a do restante período, em que se recolhia quando o mundo regressava à normalidade, sentia-se em casa onde quer que estivesse. Estava já tão confiante que, quando começou a ouvir ao longe a voz já conhecida, estava a descontrair deitado num relvado, completamente nu, de braços e pernas abertas. Já não se questionava se tudo seria real, não lhe interessava minimamente se era uma realidade geral ou apenas sua, decidira simplesmente vivê-la enquanto durasse. Ponderou apenas se não seria algo impróprio receber Deus naqueles propósitos, mas, lembrando-se da conversa anterior, decidiu verificar se a história do senso de humor seria mesmo verdade. Seria talvez testar os limites do senso de humor, mas, se Deus realmente o tivesse como afirmara, teria que perceber a ironia cómica inerente ao facto de alguém o receber nu.

- Vejo que estás a desfrutar o teu tempo.

- É verdade, não é que haja mais alguma coisa para fazer, não é?

- Acho bem que o tenhas aproveitado, porque estava a planear começares hoje com as tuas obrigações.

- Isso das obrigações é uma das coisas que queria debater contigo. Não acho muito correcto que não me tenhas dado nenhuma hipótese de escolha. Acho que isto de ser deus não devia ser imposto a ninguém.

- Estás a dizer que não queres?

- Não necessariamente. Mas a verdade é que não tenho a certeza. Não sei se terei o perfil adequado.

- Acho que o facto de não estares já embriagado com a ideia de vires a ter tal poder já é um bom indício de que tens o perfil adequado.

- Mas... Depois não posso voltar atrás, não é? E se eu me arrepender? Terei alguma maneira de te contactar?

- Não, nada disso será possível. Não poderás voltar atrás nem contactar-me. Honestamente, duvido que te venhas a arrepender. Quem é que se arrependeria de ter poder absoluto?

- Eu... por exemplo...

- Será que ajuda se considerares isto como um favor pessoal que me estarás a fazer?

- Bom... Pressão à parte, acho que sim. Como é que se pode recusar um favor a Deus?

- Caso ainda não estejas convencido posso sempre mandar-te uma pragazita. Já estou um bocado destreinado, mas acho que ainda me lembro de algumas.

- Ha ha, boa piada. Afinal tens mesmo senso de humor. Não será necessário, eu aceito. Até já ando um bocadinho farto desta história do momento morto.

- Obrigado. Será esta então a última conversa que teremos.

- Então e o que é que eu tenho que fazer?

- Absolutamente nada. Tudo irá acontecer exactamente... Agora!

Sentiu-se a flutuar no vazio, no meio do nada absoluto. No entanto bastava que um pensamento surgisse para que este automaticamente se materializasse à sua volta. A sua percepção não era em nada comparável à que antes tinha através dos seus sentidos. Era como se todos os seus sentidos tivessem sido extremamente amplificados e reunidos num só. Não se sentia tão diferente como esperava, apenas tinha consciência de absolutamente tudo e, embora aparentemente ainda conseguisse ponderar várias hipóteses e dissertar mentalmente sobre as questões, o conceito de dúvida tinha desaparecido completamente.

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