terça-feira, 6 de setembro de 2005

Ali estava eu deitado, num cenário de alva brancura, rodeado por vultos de branco vestidos, de volta de uma parafernália de aparelhos cheios de luzes e um constante bip, bip, como se de um ritmo cardíaco se tratasse.
Não me lembro de como aqui vim parar. A última recordação que tenho, foi de estar a passear no parque com as crianças, e sentir uma violenta dor no peito, seguida de escuridão. Quando acordei já aqui me encontrava. Suponho que sejam médicos ou enfermeiros, os vultos que me rodeiam. Parece que estou num hospital. Mas porquê?
Até então nunca tinha tido problemas de saúde. Sempre fui saudável, "...uma saúde de ferro." Diziam. E agora estou aqui sem preceber porquê, nem como.
Uma avalanche de imagens invade-me a cabeça. Vejo as crianças, o Miguel, e a Rute. Vejo a Sara, a mãe. São a minha família. A minha única família.
A maca onde me encontro começa-se a mover. A dor no peito intensificou-se e o bip, bip aumentou de ritmo.
Ao sair da sala em que me encontrava vejo que os miúdos, acompanhados da mãe, estão ali. O Miguel, o mais pequeno chora agarrado à mãe, que o tenta acalmar, embora também ela chore. A Rute aproxima-se, com lágrimas nos olhos, e passa-me a mão na cabeça, em quanto continuo o percursso não sei para onde. Em breve só ouço o choro do mais pequeno, que continuava agarrado à mãe a chorar.
Entro numa outra sala em tudo idêntica à primeira, não fossem os projectores de alta voltagem que me cegam a vista. Fecho os olhos. Fico quieto, apenas a ouvir . Ouço o barulho de passos, de metal , objectos a serem movidos de um lado para o outro. Alguém dá instruções, outro alguém as acata. Depois, só silêncio. Apenas o , bip, bip, se mantém a um ritmo acelerado. Ouço vozes. Ouço-as como se estivessem na sala ao lado, e não ali comigo. Sinto que algo me envolve o nariz e a boca. Instintivamente abano a cabeça no intuito de me livrar daquilo, mas imediatamente sinto uma pressão na cabeça que me impede o movimento, ao mesmo tempo que ouço falarem comigo. "Está tudo bem, calma". Sinto um a caricia na cabeça. Fico calmo, embora o coração pareça querer saltar-me do peito, e sinta os pulmões a arder. Mais uma vez ouço vozes. E fico finalmente a saber o que realmente se passou.
Fui atingido por uma bala. Parece que assaltaram o quiosque de revistas do parque, e o assaltante fugiu a pé pelo parque. Dizem que o tentei deter, e o assaltante deu-me um tiro à queima roupa. Parece que o apanharam, mas a mim parece-me mais que quem foi apanhado fui eu. " Não há nada a fazer." Ouço dizer. E mais uma vez sou invadido por uma montanha de imagens das crianças e da Sara, e desejo do fundo do meu ser , que a minha partida seja rápida, e que a Sara e os miúdos prossigam com as suas vidas sem receios. Recordarei para sempre, os momentos que passámos juntos. As férias, os longos passeios de fim de semana, as brincadeiras com as crianças, os serões com a Sara no sofá frente á televisão, as atribuladas manhãs com as crianças, com a Sara sempre a apressar os miúdos para a escola.
Ainda me lembro do dia em que os conheci. Era apenas um cachorro.

3 comentários:

Rodovalho Zargalheiro disse...

Aproveito a oportunidade para desejar as boas-vindas ao nosso mais recente membro.

AP disse...

As memórias deviam ser todas abolidas. Vivam os peixes e todos os animais tambem.

Anónimo disse...

Não deixa de ser engraçado o suspiro de alivio no fim quando se sabe que é de um cachorro que se está a falar. As pessoas tendem sempre, apesar de nunca modificarem nada na sua vida nesse sentido, mas tendem sempre a pensar um ou dois minutos na possibilidade de isso lhes acontecer e no que isso podia significar. Como disse, as pessoas depois desse minuto a pensar sobre isso, continuam com a sua vida e a cometer os mesmos erros, mas como se estava a falar de um cachorro, neste caso só existe mesmo um suspiro de alivio no fim e a vida continua. O lema da vida hoje em dia é: Temos pena. E pronto, as pessoas passam a via a ter pena tão somente. É uma pena.