segunda-feira, 22 de junho de 2009

A Peça ou Será estúpido?

Não consigo, estou demasiado nervoso, disse o jovem actor, porque é que a primeira cena a sério da minha vida tinha que ser logo um monólogo? Eu também não sei o que é que o encenador viu em ti para achar que este papel tinha que ser teu, mas alguma coisa há-de ter sido, respondeu o segundo actor. Mas o teatro está cheio, e eu não consigo parar de tremer, continuou o jovem actor, como é que eu alinhei nisto? Pois que agora é tarde demais para te acobardares, respondeu o segundo actor com alguma aspereza, aceitaste a responsabilidade, agora tens que cumprir. Vais ver que depois de passarem aqueles momentos iniciais de pânico, a coisa começa a fluir, continuou em tom paternalista, entra no personagem e dá tudo de ti. E no fim… os aplausos, meu caro… quando sentires os aplausos vais querer fazer isto até morrer. Não há sensação que se compare a uma ovação de pé. Agora, vai-te a eles e ajuda-nos a conseguir uma esta noite! Concluiu, numa derradeira tentativa de encorajar o jovem actor a enfrentar a multidão, enquanto o empurrava para o palco.

Assim que a força provocada pelo empurrão desapareceu, num movimento súbito e instantâneo, o jovem actor inspirou e colocou-se muito direito. Já não tremia. Deu duas voltas ao palco, olhando, empertigado, a audiência. Por fim, parou na frente do público e, com uma postura algo napoleónica, começou.

Quem sois vós? Todos vós? A que pensais vir aqui assistir? Teatro? Não, nada disso, pois que não será teatro que vereis. Vereis vida, meus caros, vereis vida desenrolar-se perante os vossos olhos. Vereis pessoas boas, ou talvez não, pessoas más, ou que tiveram apenas azar. Conseguireis saber onde se escondem os Messias? Onde se escondem os Judas? Podeis, ingenuamente, pensar que sim, mas eu garanto-vos que não, meus caros, não sabereis. Preparai-vos, pois os momentos que se seguem poderão mudar as vossas vidas. Poderão tornar-vos novas pessoas e, àqueles que não conseguirem deixar hoje esta sala mais ricos e preenchidos, nada mais posso fazer senão comiserar-vos.

Boquiabertos, o encenador e os outros actores assistiam à cena a partir dos bastidores. O que é que aquele maluco está a fazer? Perguntou, atónito, o segundo actor. Nada daquilo está no guião! Ei, estou a falar contigo! O encenador virou os seus olhos aguados para o outro actor e fitou-o por alguns segundos antes de responder. Genial, disse, emocionado, eu sabia que havia qualquer coisa de especial naquele miúdo. Senti-o mas minhas entranhas. Genial… Repetiu enquanto dirigia novamente a sua atenção para o palco, no momento em que o jovem actor terminava o seu monólogo e que, como que movida por um impulso comum, toda a platéia aplaudia intensa e copiosamente. Com uma vénia suave, em que quase só o seu pescoço se moveu, o jovem actor saiu de cena, transformando-se novamente na pessoa que era antes de ter pisado o palco.

Os seus olhos transbordavam temor quando encontraram os do encenador. Desculpe, não sei o que me deu, disse, envergonhado. Nem acredito que estejas a pedir-me desculpa? Retorquiu o encenador. Foi brilhante, continuou, olha, disse enquanto levantava o braço direito e mostrava ao jovem actor os seus pelos eriçados. Eu vi um brilho especial nos teus olhos, mas nunca pensei que pudesse significar tanto, prosseguiu, visivelmente emocionado. Eu nunca faço isto, mas vamos já alterar os planos. Vou ser eu a representar os teus papéis nas outras cenas e tu vais só entrar entre cada uma delas e improvisar. As pernas do jovem actor fraquejaram e os seus olhos arregalaram-se. Desculpe, mas acho que não consigo, disse o jovem actor com a voz trémula, não tive qualquer controle sobre mim quando estava no palco, não tenho nenhuma garantia de que possa voltar a correr bem. Não te preocupes, respondeu, tranquilizador, o encenador, tu nasceste para isto! Tenho a certeza que vai correr maravilhosamente. Só tens que entrar em cena e vais ver que tudo acontece naturalmente. Bom… Vou dar o meu melhor, respondeu, hesitante, o jovem actor. A cena está a terminar, prepara-te, disse, energicamente, o encenador, quando o último sair do palco, tu entras. Agora, vá! Muita merda, muita merda! Sem pensar, o jovem actor reagiu às palavras que lhe eram dirigidas e invadiu o palco.

Seguiu a orla do palco, fixando os olhos do maior número de espectadores que conseguiu. Ao chegar ao extremo oposto parou por alguns momentos, deu meia volta e começou a falar enquanto percorria a trajectória inversa.

Preparai-vos, meus caros. Preparai-vos para, quando daqui sairdes, enfrentar um novo mundo. Ver novas formas, novas cores. Ver as pequenas coisas da vida com outros olhos. Reparar em pormenores que nunca antes havíeis reparado e compreender a sua importância. Preparai-vos para navegar dentro das vossas próprias mentes, onde fareis mirabolantes viagens de descoberta, onde vos deparareis com o vosso centro, a vossa medula, com o vosso verdadeiro ser. Aí, vereis com clareza o belo e o horrendo, o sublime e o banal, o bem e o mal. Tornar-vos-eis pessoas, pessoas reais e plenas, em vez de vulgares seres humanos. Sei que viestes à procura de algo, de algo magnificente. Pois encontrareis. Não tenhais dúvidas que, se abrirdes as vossas mentes e os vossos corações, encontrareis. Concluiu enquanto abria os braços e deixava a cabeça cair para trás.

Quando o jovem actor se retirou do palco, deparou-se com o encenador de lágrimas nos olhos. Fenomenal, disse-lhe, tens verdadeiramente um dom. Abençoado seja o dia em que entraste neste teatro. Um talento como o teu não se encontra muitas vezes na duração de uma vida. O jovem actor limitou-se a, envergonhado, fixar os olhos no chão. Nem me conheço, disse entre dentes. Não, retorquiu prontamente o encenador, agora é que te estás finalmente a conhecer. Eu compreendo que não pareça, mas aquele és tu. Aquela pessoa que ali esteve está dentro de ti, é parte integrante de quem és. Acredita! Temos agora a última cena, continuou, mas eu quero que entres ainda outra vez depois dela. O público quer mais de ti, tenho a certeza. Quando a cena acabar, entras e fazes a conclusão.

Quando chegou o momento, o jovem actor caminhou lentamente palco adentro, de olhos no chão, acariciando o queixo com um ar pensativo. Quando chegou ao centro do palco, parou, de costas para o público. Será? Disse, introspectivo. Será que foi hoje? Continuou. Será mesmo que foi hoje? Repetiu enquanto se virava e encarava a audiência. Foi hoje que todos partilhámos um momento único, sublime, elevado? Sinto as vibrações, a energia no ar. Sinto as sinergias que acredito terem o poder de nos metamorfosear, transformando-nos em algo mais que meros humanos. Acreditem, meus caros, que hoje sim; hoje aconteceu algo grandioso, majestoso! Todos os nossos corações foram tocados e os nossos horizontes alargados. Acreditem, meus caros, acreditem que nunca mais seremos os mesmos. Acreditem! Concluiu enquanto baixava a cabeça e cruzava as mãos sobre o peito. Permaneceu imóvel naquela posição, de olhos novamente postos nas tábuas puídas do chão. O pano desceu e o público, como que impelido por uma força invisível que o repeliu das cadeiras, levantou-se de imediato e irrompeu num titânico aplauso. Ouviam-se “bravo” inflamados. O êxtase era quase palpável na atmosfera.

O encenador soluçava convulsivamente e as lágrimas escorriam-lhe face abaixo. Obrigado, disse ao jovem actor, entre dois soluços. Obrigado por me teres proporcionado este dia, estas emoções. Sinto que foi o dia mais intenso da minha vida e sim, já não sou o mesmo. Sinto que vou mesmo ver o mundo de outra forma. Acredito! Eu acredito! O jovem actor corou instantaneamente. Eu não sei de onde saiu tudo aquilo, disse, sentia que não era eu quem controlava as minhas acções. Não consigo explicar, mas foi como se, ao pisar o palco, me transformasse automaticamente noutra pessoa. Aquele não era um personagem, respondeu o encenador enquanto tentava recuperar a compostura, era o teu âmago. Hoje nasceste. Hoje, todos nós nascemos.

3 comentários:

Nawita disse...

:):):)
muito bom!

Funny Analana disse...

Tears in my eyes :) :) :)

Rodovalho Zargalheiro disse...

:)