Começou por ser uma história inocente inspirada no São Paulo 451 dos Belle Chase Hotel e, sem qualquer controlo da minha parte, acabou por ir descambando até se transformar num texto sem sentido; mórbido, grotesco e nauseante. Um texto demoníaco que não deve ser lido por ninguém e capaz de condenar à danação eterna os tementes a qualquer dos deuses. Se calhar devia procurar ajuda profissional…
Estais avisados.
José desligou a água do duche. Inspirou fundo, endireitou as costas, levantou a cabeça de forma a que o seu nariz ficasse a um ângulo de cerca de trinta e cinco graus em relação ao plano do chão e, com uma enérgica expiração deu o primeiro passo para enfrentar o mundo naquele dia, saindo da banheira. Ainda a pingar, continuou o seu ritual diário untando cuidadosamente todo o seu corpo com óleo. Nunca percebi porque alguém faria uma coisa destas, já que sempre achei que um dos objectivos do banho era exactamente remover o excesso de gordura que vamos segregando, pelo que me parece absurdo repô-la assim que acabamos de a retirar, mas o que interessa aqui não é a minha opinião e sim contar a história, portanto… Adiante. Enrolou uma toalha no cabelo e foi para o quarto, deixando pegadas húmidas, número quarenta e quatro, pelo caminho. Abriu a porta do roupeiro para revelar o espelho de corpo inteiro. Aproximou o rosto e, acariciando o queixo, acenou afirmativamente para o seu reflexo. O creme depilatório que usava para a barba era eficaz, mas por vezes causava-lhe irritação na pele, mas não naquele dia. Afastou-se do espelho de forma a conseguir ver mais de si e sorriu. “Está quase, pequenas”, disse. “Só mais…”. Olhou para um papel pousado na mesa de cabeceira. “quarenta e oito clientes. Se as coisas correrem de feição, é um mesito ou menos”. Olhou para o vestido roxo escuro que tinha escolhido na noite anterior e colocado nas costas da cadeira. “Não, não, não, não, hoje não”, disse ao vestido na cadeira. Dirigindo-se ao roupeiro, foi direito ao vestido rosa choque curtíssimo. “Tenho um bom pressentimento para hoje”, disse ao vestido rosa enquanto o retirava do armário juntamente com umas meias de rede. Vestiu-se, maquilhou-se e, ao terminar de pintar os lábios, penteou-se com os dedos e fez uma pose para o espelho. “Linda”, exclamou, e despediu-se do seu gémeo com um beijo nos lábios do reflexo.
“Tenho que comer bem, sinto que vai ser um dia atarefado. Hoje vou mimar-me. Vou almoçar ao Gomes e vou convidar a Manuelle”, disse às paredes.
Ao chegar ao rés-do-chão, já ouvia o sinal de chamada no telemóvel que rapidamente foi substituído pela esperada voz.
– Quériiida!! – Disse alegremente José.
– Gaija!! – Respondeu Manuel no mesmo tom – Que andas a fazer?
– Estou a sair agora e apetece-me qualquer coisa diferente. Não sei porquê, mas estou muito bem disposta. Vamos ao Gomes? Pago eu.
– Mulher, nem imaginas o bem que me estás a fazer. Tinha saudades de te ver assim. Estou lá daqui a meia hora.
– Ok, até já.
– Eu lhe amo, sua boba – Disse Manuel com sotaque brasileiro.
– Chérie!! – Respondeu José.
Ambos produziram simultaneamente o som de um beijo repenicado e desligaram.
Como chegava ao restaurante em menos de quinze minutos, José decidiu tomar primeiro um café na cervejaria da esquina. Já estava habituado a que toda a gente olhasse para ele quando entrava em algum sítio, mas naquele dia sentia-se tão deslumbrante que conseguiu mesmo achar que era pela sua sensualidade que os homens olhavam para si e não por o acharem uma aberração. Era algo que tentava combater, mas era tremendamente difícil achar que o olhar de outro homem poderia ser de interesse emocional e não por uma qualquer curiosidade científica ou mórbida.
Chegado ao balcão, pediu o seu café a três quartos, pegou no jornal e foi sentar-se numa mesa ao fundo a lê-lo, ignorando os demais clientes. Ocasionalmente fazia o movimento “instinto fatal” e sorria, espreitando as reacções embasbacadas dos presentes. Bebeu o café, fumou um dos seus cigarros de puta, como lhes chamava, e saiu deixando a moeda na mesa.
Ao chegar ao restaurante, Manuel estava à porta a fumar o seu SG filtro. Não gostava daquelas coisas que o outro fumava. “Só um cigarro de homem macho é que me satisfaz”, costumava dizer. Entraram, comeram, beberam e divertiram-se prevendo maravilhosas viagens que nunca fariam e inflamadas histórias de amor com príncipes encantados que nunca viriam a conhecer.
Bebido o café e o brandy, o Sr. Gomes ofereceu-lhes cigarrilhas. Era burro como um tijolo e bruto que nem um cepo de madeira, mas, vá-se lá perceber as pessoas, tinha uma mente mais aberta à diferença do que muitos jovens urbanos e nunca discriminava ninguém fosse por cor, credo ou originalidade de apresentação.
– Vais deixar-me retribuir-te este excelente almoço. Que tal tirarmos o serão e jantarmos em minha casa? Ando doida para experimentar uma receita nova.
– Boa ideia. Apareço lá pelas oito, nove. Pode ser?
– Perfeito!
Saíram do restaurante, deram dois beijos na atmosfera e cada um seguiu na direcção do seu local de trabalho de eleição.
As expectativas de José confirmaram-se e a tarde foi de facto muito azafamada. Melhor, só teve que exercer o papel activo em apenas um dos clientes, e ainda por cima era aquele rapaz musculado que o fazia estremecer quando o via. Não é que não gostasse de se vir, mas ser o activo impunha-lhe um nível de pressão que não existia na outra situação, em que não tinha que pôr nada em pé e podia muito bem estar a pensar numa praia tropical ou a ouvir música na sua cabeça. Era sempre um stress quando lhe aparecia um daqueles velhos asquerosos a querer ser enrabado, coisa que acontecia muito mais do que esperava quando se tinha iniciado naquela vida. Era uma merda quando o seu rendimento dependia de conseguir excitar-se e em vez de pensar em praias paradisíacas ter que se obrigar a recorrer às memórias que ia guardando dos homens que realmente o agradavam. Um destes era exactamente o jovem musculado que, ditou a sorte naquele dia, foi o único que o obrigou a ter uma erecção. Apesar do agrado, causava-lhe alguma confusão que o rapaz recorresse a ele, já que alegadamente teria um namorado fixo. Achava que, no fundo, o rapaz, já que o escolhia a ele e não um gay macho, daqueles de farto bigode, correntes, óculos escuros e boné de couro preto; nem devia ser homossexual. Que o mais provável era gostar apenas de levar na anilha e isso causava-lhe um certo sentimento de comiseração que, além do corpo que o fazia babar, o tornava mais empático com o jovem. De resto, os vários velhos asquerosos quiseram apenas servir-se dele. Foi, portanto, um dia bom.
José premiu o desgastado botão da campainha do quinto esquerdo. “Sim?”, perguntou uma voz rouca no intercomunicador. “Sou eu, querida”, respondeu José. A porta abriu-se e ele subiu.
Ao chegar, deu dois toques na porta com os nós dos dedos e esta abriu-se para revelar um Manuel desgrenhado, com um aspecto terrível, embrulhado num roupão sujo de sangue. “O que é que te aconteceu?”, perguntou José, atónito. Manuel levantou os seus olhos esborratados por alguns segundos, apenas para se desmoronar de joelhos no chão e rosto enterrado nas mãos a chorar inconsolavelmente. José afagou-lhe ternamente a cabeça. “De onde é que veio este sangue?”, perguntou, tentando manter a calma. Manuel afastou o roupão para revelar uma grande laceração na nádega direita. José recuou com o choque. “Vou chamar um táxi e vamos já para o hospital!”, exclamou enquanto pressionava nervosamente as teclas do telefone. Manuel retomou o choro compulsivo enquanto levantava o indicador na direcção do quarto. “Depois!”, vociferou José, “Agora temos que ir tratar disso”.
O táxi chegou e lá foram para as urgências. José, louríssima e espampanante, com o seu vestido rosa choque, as suas meias de rede e os seus saltos agulha. Manuel, morena e despenteada, de roupão, chinelos e ar de quem passou os últimos anos numa prisão turca.
Talvez pela gravidade do ferimento, talvez pela comoção que provocaram ao irromper espalhafatosamente pelo hospital naquele estado, Manuel foi imediatamente assistido. José, indiferente às indicações dos profissionais, não saiu do seu lado e segurou-lhe carinhosamente a mão enquanto lhe cosiam o golpe. “Não sei em que andanças se meteu, mas agora não se vai poder sentar como deve ser durante umas duas semanas. Espero que tenha valido a pena”, disse o médico. Manuel retomou o choro e José olhou para o médico de tal forma que este temeu pela sua segurança. Desculpou-se a despachar e desapareceu num ápice. “Grande filho da puta!”, ainda ouviu a ecoar pelo corredor enquanto se afastava.
– Agora vamos para casa para descansares e amanhã vamos à polícia – disse José.
– Não sei se é grande ideia ir à polícia – Disse Manuel sem levantar a cabeça.
– O pulha que te fez isso vai ter que pagar! – Respondeu José irritado.
– O pulha já pagou. Era o que te estava a tentar dizer lá em casa. O filho da puta está esticado no meu quarto com um balázio na testa e outro no peito. Nem sei como é que não lhe enfiei também um nos colhões…
– Meu deus! – Exclamou José, atónito – Mas afinal o que é que aconteceu?
– Não sei o que se passou na cabeça daquele anormal, que decidiu espetar-me uma faca a meio do serviço. No segundo a seguir já eu tinha aberto a gaveta da mesa de cabeceira e estava de arma em punho. Ainda me pareceu que ele ia tentar implorar, mas num instante já estava com os dois balázios em cima.
– Porra… - Disse José mais para si próprio que para o outro – O teu treino dos fuzos ainda está bem apurado.
– Há coisas que nos ficam tão marcadas que nunca mais passam – Respondeu Manuel com um misto de orgulho e vergonha – E agora, o que é que eu vou fazer?
– Acho que devíamos ir na mesma à polícia.
– Desculpa, mas não posso fazer isso. Sabes como é que ia ser. Ia ser o bobo da corte e não me safava da prisão. Eu não sobrevivia uma semana preso atrás de grades sem poder sair para ir comprar uma roupita ou um creme novo nem poder ir passear pela baixa a ver as montras. Não, isso não!
Ainda ouviram o taxista gritar “Paneleiros!” quando arrancou depois de os deixar à porta da casa de Manuel. Subiram e, lentamente como se temessem que o cadáver se tivesse levantado e estivesse num qualquer canto à espera do momento certo para os atacar, acabaram por chegar ao quarto onde, deitado numa imensa poça de sangue, jazia nu um homem de cerca de quarenta anos. O seu crânio estava parcialmente desfeito e um buraco no peito maior que um punho deixava vislumbrar um pouco do enorme estrago nos órgãos torácicos.
– Nove milímetros derrubantes fazem um bocado de estrago… – Desabafou José meio absorto, absorvendo o grotesco cenário em que o seu quarto se tinha tornado.
– Minha querida amiga – Disse José sem tirar os olhos arregalados do cadáver – Eu apoio qualquer decisão que tomes. Mas o que é que vamos fazer a isto?
– Temos que o fazer desaparecer, mas primeiro temos que recolher as balas.
José desviou o olhar do corpo morto e pregou-o no seu amigo, intensificando ainda mais a expressão atónita que tinha adquirido desde que entrara no quarto.
– Estás muito frio, para quem parecia uma Madalena há menos de uma hora!
– Já me passou o estado de choque. Agora quero é ver-me livre de toda esta situação. E não há nada que me diga que este pedaço de merda não merecia morrer – Fez uma pausa para cuspir no cadáver – Por isso não me vou sentir mal com isto.
– Ainda bem, porque apesar de parecer estar a levar isto tudo muito na boa, sou capaz de me ir abaixo a qualquer momento. E por favor, não me peças para lhe enfiar a mão.
– Eu faço isso.
Enquanto introduzia a mão no buraco deixado pelo impacto da bala no crânio do infeliz, Manuel ainda tentou aliviar a tensão dizendo que era um desperdício pois o homem até era bem parecido. José limitou-se a manter o olhar na parede, cantarolando numa vã tentativa de evitar que os seus sentidos conseguissem processar o som horripilante do esmigalhar de massa cerebral. A do peito foi mais difícil. Deve ter feito ricochete na coluna vertebral e partiu-se em vários pedaços, alguns dos quais obrigaram José a enviar quase todo o braço pelo buraco no peito do cadáver para os encontrar dispersos pela cavidade abdominal.
O seu sangue-frio pareceu ter sido mesmo à conta, já que assim que retirou o que pensou ser o último pedaço de metal e se pôs de pé, iniciou uma extravagante dança que consistia em dar pequenos pulos alternando os pés enquanto agitava os braços a dupla cadência, tudo acompanhado por estranhas vocalizações. A dança terminou na banheira, onde se esfregou prolificamente com o esfoliante mais áspero que tinha entre os seus incontáveis produtos para o banho.
José sentou-se no tampo da sanita a olhar pensativamente para o rasto ensanguentado.
– Nem acredito que estou a dizer isto, mas vi num filme que os porcos conseguem digerir tudo de um corpo humano menos os dentes, só temos que o cortar em bocados muito pequenos.
– Se tivéssemos possibilidade de o cortar em pedaços pequenos, até ia pela sanita! – Respondeu Manuel algo irritado – Como é que propões que o cortemos em pedaços pequenos?
– Pois… Não é fácil… E se o atirássemos ao rio com uns pesos agarrados?
– Parece que também já recuperaste a compostura.
– Está assente que temos que fazer o corpo desaparecer, não é? Então temos que pensar na melhor maneira de o fazer. E para isso temos que pôr a comoção de lado e raciocinar. É o que estou a fazer. Acho que em vez de estares com essa atitude devias estar a ajudar-me, já que foste tu quem nos meteu nisto.
Manuel afastou violentamente a cortina do duche e lançou um olhar fulminante a José.
– Desculpa lá a crueza, mas é a verdade. E acho que mais vale acalmares-te que eu só te estou a tentar ajudar. Se preferires fazer tudo sozinho é só dizeres – Terminou José secamente.
– Tens razão. Desculpa. Começamos por separar a cabeça e a ponta dos dedos do resto.
– O quê??
– Não vês séries de homicídios? Sem as pontas dos dedos e a cabeça é praticamente impossível identificar um cadáver.
– E o ADN?
– Isto é Portugal, não é o CSI.
– Certo…
– As pontas dos dedos vão para o liquidificador. O crânio, vou ter que o desfazer com o martelo da carne.
– Estás a assustar-me Manuel.
Tê-lo tratado pelo nome que os pais lhe tinham posto foi prova suficiente que falava muito a sério. Manuel já nem se lembrava da última vez que o tinha feito, mas instintivamente levantou os olhos para confirmar pela sua expressão o que já tinha inferido.
– Tem que ser, amiga, é a minha sobrevivência. Não te censuro se, a qualquer momento, quiseres afastar-te.
– E quem é que vai tomar conta de ti se eu me afastar? E quem é que vai tomar conta de mim? És a minha família. Estou aqui para o que der e vier.
Manuel saiu do banho, enrolou-se na toalha e acariciou o cabelo de José.
– Obrigado, querida. Que tal tomares um banho para descontrair enquanto eu trato desta parte?
Manuel observou o cadáver por alguns momentos. “O que tem que ser tem que ser”, disse ao morto e foi em busca de ferramentas. Retirou um cutelo e uma tábua de corte da cozinha e foi à caixa de ferramentas encontrar uma serra. De uma forma quase maquinal, como se fosse totalmente desprovido de emoções, Manuel colocou a tábua debaixo da mão do morto e, com golpes seguros, separou as falangetas do corpo. Repetiu o processo para a outra mão. Sem perder a compostura, virou o cadáver de barriga para baixo e investiu, serra em punho, no pescoço do defunto. Foi mais difícil do que esperava, mas lá encontrou o espaço entre a terceira e a quarta vértebras cervicais e conseguiu por fim separar a cabeça. Colocou as pontas dos dedos no liquidificador com um pouco de água e rapidamente tudo se transformou numa papa avermelhada que despejou no lava-louça. “Agora a parte mais difícil” disse à cabeça da sua vítima, que envolveu em inúmeros sacos de plástico numa tentativa de sujar o menos possível. Num canto, colocou o mórbido embrulho no chão. Levantou o martelo, reuniu toda a sua força e desferiu o primeiro golpe no crânio que desabou sobre si próprio. “Mal tu sabias, mãezinha, que o martelo que me trouxeste e que eu achei que seria inútil, ia servir para isto…”, disse olhando para cima. A mãe de Manuel ainda não estava morta, mas mesmo assim ele tinha sempre a sensação de que ela o observava de cima. Desferiu mais alguns golpes mas rapidamente percebeu que não conseguiria destruir o crânio de forma a que conseguisse deitá-lo sanita abaixo. Envolveu a pasta de onde protuberavam pedaços de osso em mais alguns sacos de plástico e decidiu que a deitaria num contentor de lixo. Esperaria até que visse o camião a vir, deitaria o despojo no contentor e ia ficar à espreita a ver se alguém reparava em algo estranho. Achou que era o mais seguro e decidiu fazer o mesmo com o resto do corpo. Cortá-lo-ia em pedaços manejáveis e distribuía-os por vários contentores do lixo em sítios distintos. Se fosse cuidadoso nunca o apanhariam. Mas, mesmo serrando pelas articulações, despedaçar um corpo humano não é tão fácil como pode parecer e quando José apareceu, passada mais de uma hora, Manuel ainda só tinha conseguido separar um pé e investia vigorosamente com a serra no outro tornozelo.
– Se hoje de manhã me tivessem dito que neste dia ia assistir ao desmembramento de um cadáver, eu não acreditava. E até acordei tão bem disposta hoje – Disse José num lamento.
– Pois, eu também não estava a contar que me esfaqueassem a peida – Disse Manuel enquanto, já com um brilho lunático nos olhos, pegava novamente no cutelo e atacava o tornozelo até que o segundo pé se separou do resto do corpo – Não aguento mais. Hoje levamos a cabeça e os pés e depois logo se trata do resto.
– Qual é o plano?
– Acho que o mais seguro é embrulhar bem e deitar no lixo. Assim que for para o compactador do camião, mais ninguém o vê.
– Parece-me arriscado. E se alguém repara naquilo? E se alguém for mexer naquilo na lixeira?
– Tens outra sugestão?
– Estava no banho a lembrar-me das aulas de biologia no liceu. Sabias que o vinagre dissolve o cálcio dos ossos? Se triturarmos as partes moles, podemos deitar tudo na sanita e depois pomos os ossos de molho em vinagre até ficarem suficientemente moles para os desfazermos também.
Manuel olhava incrédulo para José, como se só agora tivesse percebido o nível de gravidade da situação.
– Eu não acredito no que acabei de ouvir. Não acredito que isto me esteja a acontecer. Não acredito que acabei de cortar os pés a uma pessoa morta! Não vou aguentar isto. Não aguento! – Gritou agitando as mãos junto aos ombros.
– Começámos isto, agora não temos opção senão ir até ao fim. Controla-te, mulher. Tens que te aguentar.
– Tenho que me aguentar?? Por acaso pensaste no que acabaste de propor? Quem é que vai separar a carne dos ossos?
– Fazemos como se fosse um animal. Esfolamos a pele e vamos cortando até chegar ao osso.
– Agora és tu que me estás a assustar.
– Se conseguíssemos arranjar ácido sulfúrico suficiente…
– Nem estou a acreditar que estás a falar a sério!
– Já sei! Enchemos a banheira com aquele produto para desentupir os canos e deitamos o corpo lá para dentro. Aquilo é altamente corrosivo para a matéria orgânica. Deixamo-lo lá uns dias e depois deitamos água e abrimos o ralo para a nhanha sair. Repetimos até ficarem só os ossos e depois usamos o vinagre – José não conseguiu evitar mostrar uma ponta de excitação, apesar de tudo o seu sonho sempre tinha sido ser engenheira bioquímica.
– Estás a divertir-te com isto??
– Estou só a ser racional.
– Se não envolve serrar mais ossos nem cortar fatias de carne humana, eu alinho.
– Ficas em minha casa durante o processo. É capaz de deitar cheiro.