quinta-feira, 18 de março de 2010

Curtas

Deverá o cego não querer saber

Que a razão do seu não ver

Reside só na questão do doer ou não doer?

Mais fácil será não ver para não doer

E o surdo será que quer ouvir

Que a sua surdez se deve ao não querer ouvir

As palavras que sabe serem as tais da boca dos demais?

E aqueles que sabem do que falo não o vão entender

Que para compreender é preciso deixar que a razão faça parte desta equação.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Bananas XII

Porra! Foda-se!!! Quase que não dá para acreditar! Se eu não tivesse ouvido a história em primeira mão, directamente do Faustino, não acreditava mesmo. Pois é. A puta não só conseguiu dar-lhe a volta, como conseguiu fodê-lo completamente! Quando ele me disse que a tinha conhecido num bar de strip, eu fiquei logo de pé atrás. Mas ela só fazia aquilo até arranjar alguma coisa mais séria, dizia ele. Alguma coisa mais séria… O caralho! O que ela queria era arranjar um tanso como o Faustino. A vaca da rameira tinha o plano todo delineado e o pobre do Faustino foi cair mesmo em cheio na armadilha. Deve ter-se sentido especial. Foda-se, deve ter-se sentido o maior, uma gaja de um bar de alterne a demonstrar um interesse por ele que, ao contrário daquele demonstrado por todas as suas demais colegas, parecia mesmo, mesmo genuíno. Uma gaja por quem já tinham passado milhões de gajos diz ao Faustino que ele é especial. Na cabeça do Faustino, que lhe interessava que fosse ou não genuíno? Ia passar um bom bocado, um tempo a dar umas quecas de borla, qual poderia ser o prejuízo? Pois… O fodido é que a suína da brasileira lhe furou os preservativos todos. Pois é… Agora tem que pagar uma pensão a um filho que viu quatro vezes na vida e que não sabe muito bem quem ele é. É uma merda…

segunda-feira, 8 de março de 2010

Bananas XI

Parte-me o coração a história do Vitorino. É um facto que a ex-namorada dele é uma cabra. É um facto que estava melhor sozinho que com ela. Agora… Não sei se é um facto que está melhor com a ucraniana…

Pronto, ela até é bastante bem-feita. Engraçada. Muito loura, tem um porte que consegue impressionar. Mas… por favor. Casar logo assim depois de a conhecer há um mês? Não digo que não estivessem apaixonados e não sei quê, mas, casar logo assim? E ter logo um filho assim??

O que eu sei é que, a cada dia que ele chegava do trabalho havia mais um membro da família a morar com eles. Um membro desempregado da família, claro, e o Vitorino lá continuava a querer ser o homem perfeito, sempre na sua boa onda, que temos que ser uns para os outros. Pois, a verdade é que agora, entre pais, tios, irmãos, primos, cunhados e outros parentes mais ou menos remotos, moram mais de vinte ucranianos na casa do Vitorino e ele é o único que leva dinheiro para casa.

Divorciar-se? Ela ameaça que leva o miúdo para a Ucrânia, ou para a Croácia, ou para o raio do filho da puta de país de onde eles vêm e que ele nunca mais o vê. É que… O miúdo é a única coisa que ele tem. É o miúdo que lhe proporciona a única mísera lufada de ar fresco que ele consegue obter naquela casa. E agora? O que é que o coitado do Vitorino vai fazer? Que lhe resta senão aguentar? Uma criança precisa de uma mãe…

segunda-feira, 1 de março de 2010

Historieta

21-03-2005

Já era quase noite e ainda não tinha conseguido escrever nada, a história até tinha fluido bem ao início, mas chegou a um impasse e encalhou. Nem tinha bem a certeza se gostava do que já tinha escrito, mas tinha saído naturalmente, e o que interessava não era ele gostar, mas sim o editor gostar, e agarrava-se sempre a este pensamento para conter o impulso de rasgar tudo; afinal, se assim não fosse nunca teria publicado nada, já que nada do que escreveu lhe agradou realmente quando releu tudo no fim, mas a verdade é que os seus livros vendiam e isto proporcionava-lhe uma vida confortável. Em todo o caso, sentia que esta história seria diferente, não conseguia perceber porquê mas, apesar de simples, sentia-a especial, com potencial. Além do mais, não era uma história qualquer, dizia-lhe algo mais que as outras visto o personagem principal ser também um escritor, não propriamente ele, mas naturalmente, e apesar de se esforçar para contrariar isso, havia muito dele no personagem. Tinha sempre uma grande dificuldade em dar nomes aos seus personagens, mas assim que começou a escrever a história, o nome Stark Lone surgiu-lhe na mente e, embora uma voz dentro de si dissesse que não era prestigiante para a sua língua materna usar um nome estrangeiro, agradou-lhe a sonoridade e ficou feliz por não ter que pensar mais nisso.
Não vale a pena insistir, pensou. Pousou a caneta, vestiu o casaco e saiu para jantar, pelo caminho pensou que a dificuldade com que se estava a deparar talvez se devesse à luta constante que travava contra o instinto de aproximar Lone de si próprio, talvez ajudasse se colocasse mais de si no seu personagem, mas rapidamente decidiu não o fazer, isso implicava abrir um pouco do livro fechado que era a sua vida e iria fazê-lo sentir-se tão vulnerável que só o próprio pensamento disso lhe provocou um arrepio. Não, Lone, além de ter a mesma profissão, não teria mais em comum com o escritor do que qualquer outra das personagens que nasceram na sua caneta. Dando esta questão como encerrada, deu por si já sentado no restaurante. Comeu, e foi já durante o cigarro que acompanhava o café que lhe surgiu uma ideia; Lone podia suspeitar de que só existia numa história. Melhor! Lone pode fazer a personagem da história que está a escrever aperceber-se de que existe apenas num livro e isso o levar a questionar se não será também ele apenas uma personagem numa história de ficção. Este pensamento fez o escritor estremecer. Não seria a vida dele também apenas um livro? E se este momento, este cigarro, este sentimento existirem apenas porque alguém os escreveu? Tanto quanto sabia, ele e Lone podiam afinal ser o mesmo. Com este fluxo de pensamentos, embora tivesse consciência de quão absurdo parecia, não conseguiu evitar a sensação de que mergulhava mais fundo na verdade do que alguma vez antes. Sentiu uma tontura e pediu um brandy; bebeu-o de um trago, acendeu mais um cigarro e saiu para a noite deixando uma nota na mesa.

Apesar de ter ajudado a recuperar as forças, aquele brandy não ajudou a reduzir a torrente de pensamentos que lhe rodopiava na mente, e embora argumentasse consigo próprio que nenhum deles fazia sentido, cada vez se sentia mais convencido que era apenas um elo na cadeia e não existia fora da sua realidade, da sua história. Questionou também se quem estava a escrever a sua história não seria também apenas uma personagem de uma história maior. Onde é que isto acaba? A palavra “acaba” ecoou no seu crânio. Todos os livros têm um fim. O que acontece quando o livro acabar? Se eu for apenas uma personagem de um livro que está a escrever um livro, será que se eu acabar o livro que estou a escrever, o livro em que existo acabará também? E o que acontece aos personagens quando um livro acaba? Não é que o escritor fosse um verdadeiro amante da vida, mas a ideia de deixar de existir provocou-lhe uma contida sensação de pânico. No entanto um pensamento acalmou-o automaticamente, se não acabasse o seu livro, certamente o seu autor também não acabaria o seu. É isso, disse para si próprio, basta não acabar o meu livro! Caminhou um pouco mais pelas ruas já quase desertas tentando digerir a situação, fez ainda mais algumas tentativas para se convencer que tudo não passava de um delírio seu, mas com muito pouco sucesso.

Decidiu então deixar a história de Stark Lone de parte, talvez a acabasse quando fosse mais velho. Com esta decisão conseguiu dormir um pesado sono sem sonhos. Ao contrário do que era habitual, o escritor acordou com uma óptima disposição, mas assim que abriu os olhos, sem qualquer controlo da sua parte, a história de Lone começou a desenrolar-se na sua mente. Enquanto no dia anterior não tinha conseguido escrever nada, no primeiro minuto desta manhã já sabia como a história continuava. Pensou que o melhor era mesmo escrever, senão esquecer-se-ia, e além do mais era só mais algum desenvolvimento, isso não o obrigava a acabar o livro. Preparou algo que se assemelhava com um pequeno-almoço e sentou-se a comer com uma mão e a escrever com a outra. Escreveu como nunca e já a tarde ia avançada quando o seu estômago se manifestou com um sonoro ronco. Só neste momento se apercebeu do que estava a fazer, era impossível saber ao certo, mas o livro já iria certamente a mais de meio. Praguejou e insultou-se pela sua estupidez, mas a história continuava na sua cabeça e tinha que fazer uma esforço para se impedir de a escrever. Atirou a caneta para longe e levantou-se abruptamente. Decidindo render-se aos protestos do estômago, saiu para comer e comprar cigarros. Depois de um farto lanche decidiu aproveitar a última luz do dia dando um longo passeio, tendo bastante sucesso na tentativa de afastar Lone da sua mente. Quando regressou ao seu apartamento era já bastante tarde, olhou para a secretária estremeceu ao ver a caneta novamente colocada em cima! Foi a mulher-a-dias, só pode, pensou e sentou-se em frente à televisão a comer a sanduíche que tinha trazido, acompanhada de uma cerveja. Terminada a refeição, deixou-se ficar no sofá a ver um documentário sobre moluscos até que se deixou dormir.

Estavam os primeiros raios de sol a entrar pela janela quando o escritor acordou de um sonho surreal, ainda meio a dormir sentou-se à secretária e começou inconscientemente a escrever até que o vício o obrigou a pegar num cigarro e foi aí que acordou realmente, sem qualquer noção do que tinha escrito tentou lembrar-se do sonho, tudo estava muito ténue na sua mente, mas lembrava-se que tinha sonhado com Lone, era exactamente como o imaginava, assim que visualizou Lone, a memória do sonho aclarou-se. Lembrava-se de ele lhe ter dito que era inútil resistir, o seu propósito seria cumprido independentemente da sua vontade e só tinha a ganhar se aceitasse o seu destino. Tinha a sensação de que a conversa tinha sido muito mais longa, mas não conseguia lembrar-se de mais nada. Reviu a sua situação num derradeiro esforço para a racionalizar. Que ideia mais estúpida, pensou, devo estar a ficar doido, os personagens não existem, não sentem, logo eu não posso ser um personagem. Por momentos ocorreu-lhe que devia procurar ajuda profissional, mas rapidamente pôs esta ideia de parte lembrando-se da sua nada simpática opinião sobre psicólogos e psiquiatras, e a verdade é que por muito que a sua razão lhe dissesse que estava a entrar num estado de demência, continuava convicto que estava mais são mentalmente do que alguma vez estivera. Os personagens não sentem! Disse alto, mas as suas palavras transbordavam insegurança. Apercebendo-se que estava a ficar bastante irritado com todos estes pensamentos respirou fundo, fez um esforço para limpar a mente e leu o que tinha escrito. Extraordinário! O escritor deparava-se com um sentimento completamente novo para ele. Estava realmente agradado com o que tinha escrito até então. Sentiu que, pela primeira vez, tinha conseguido criar algo bom. Era a primeira vez que estava plenamente satisfeito com o seu trabalho, e a sensação era fantástica! Ainda inebriado, releu tudo outra vez talvez para se certificar, talvez para acariciar o seu ego mais um pouco, mas a verdade é que continuou a achar que estava estranhamente perfeito, não havia nenhuma frase que achasse que deveria ser alterada, estava perfeito! A palavra persistiu na sua cabeça. Está a ficar perfeito, disse alto, deliciando-se em cada letra. Sentia que podia acabar o livro, lembrou-se das palavras de Lone, lembrou-se dos seus temores e, decidindo não se precipitar, saiu para clarear as ideias, afinal ainda não tinha comido nada.

Enquanto caminhava tentou organizar as ideias, e passado o orgulho inicial de estar perante uma verdadeira obra-prima, começou a desconfiar da situação. Porque é que normalmente considerava todas as suas obras mero lixo, tendo até uma certa tendência para desprezar os seus leitores, e com esta era diferente? Compreendia que seria possível escrever algo que não considerasse lixo, mas escrever algo que considerasse realmente bom era para ele um conceito estranho. Mais estranho era achar que seria uma obra-prima. Deduziu que teria que haver uma relação entre o livro e a sua nova perspectiva. Automaticamente o seu pensamento voltou à teoria, que futilmente se esforçava por considerar demente, de que era apenas um personagem. Isto explicava a qualidade deste seu trabalho, bastava o seu autor escrever que ele tinha escrito algo que lhe agradava para isso ser a realidade para si. Além do mais, este livro estava a ser criado de uma forma quase irreal, não tinha feito qualquer esforço para o escrever, tudo tinha saído naturalmente, demasiado naturalmente. Curiosamente, desta vez a ideia não lhe causou medo, sentiu até uma certa segurança pelo facto de estar ciente da sua condição. Se realmente apenas existia numa história, mais valia estar ao corrente disso! Assim conseguiu afastar os seus medos e pensou que afinal, acabar ou não o livro não seria uma decisão sua, aliás nada seria feito por decisão sua, a sua vontade estava sujeita à vontade do seu autor. Resignado com a sua situação sentiu até uma sensação de calma, não era responsável por si, não valia a pena gastar energia com decisões, a sua vida era regida por uma entidade superior e a ele bastava-lhe vivê-la, representar o papel que lhe tinha sido atribuído. Não questionou mais a sua sanidade mental nem a veracidade da sua situação e sentiu-se iluminado, sentiu que tinha descoberto muito mais do que todas as outras personagens com quem partilhava a sua história. Sentado no banco de um jardim, observou os outros com uma superioridade paternal, coitados, pensou, todos certos de que existem realmente…

Convicto de que não dependia de si, não se preocupou mais com o livro, não faria nenhum esforço para o acabar, nem para não o acabar, deixaria isso ao critério do seu autor e sentiu-se mais livre do que nunca. Caminhou mais um pouco sem destino, sem a certeza de onde se encontrava ao certo, até que viu um restaurante de aspecto pouco asseado que lhe confirmou que não fazia a mínima ideia de onde estava, mas a visão fez o seu estômago suplicar e acabou por entrar. Comeu demoradamente, durante a refeição nem se apercebeu que os seus pensamentos tinham vagueado bem longe do seu livro, pensou que se sentia muito mais à vontade naquela espelunca do que nos restaurantes caros que costumava frequentar, pensou na sua infância, questionou-se porque nunca tinha saído do país, pensou que já tinham passado meses desde a última vez de tinha lido um livro, pensou em mil outras coisas deixando a sua mente vaguear livremente. Depois de acabar o café e o cigarro, bebeu o resto de vinho no copo de um trago. Deixou uma boa gorjeta e apanhou um táxi para casa, apercebendo-se pelo preço, que estava muito mais longe do que alguma vez tivera deambulado nos seus habituais passeios pela cidade. Assim que entrou em casa descalçou os sapatos, pegou no primeiro livro da sua pilha “a ler” e leu durante horas, parando de vez em quando para saborear a paz interior que sentia.

Lone estava sentado numa mesa no canto do bar sujo e cheio de fumo e viram-se assim que o escritor entrou, Lone acenou e o escritor aproximou-se puxando uma cadeira. Se vieste dizer-me que não vale a pena resistir, estás a gastar o teu tempo, já passei essa fase. Disparou o escritor. Como deves calcular, eu sei que já passaste essa fase, e é exactamente por isso que aqui estou. Vim dizer-te que o autor está muito satisfeito contigo, considerou-te o melhor até agora. Respondeu calmamente Lone enquanto desviava os olhos do copo para fitar o escritor. Devo ficar radiante? Perguntou sarcasticamente o escritor, mas sem conseguir evitar de se sentir algo especial. Podes sentir o que quiseres, mas há mais, vais ter um privilégio único até agora, ele quer que o conheças.
- Ele quer que eu o conheça…
- Sim, serás o primeiro, e quem sabe, o último.
- Mas tu conhece-lo não é?
- Eu não sou como tu, eu sou apenas um instrumento, uma extensão dele. Este encontro serviu apenas para não seres apanhado de surpresa.
- E o que me vai acontecer depois?
- Vais ter que guardar as tuas questões para ele.
- Mas onde, e quando, e como?

Assim que a última palavra se dissipou, um raio de sol atingiu-lhe o rosto fazendo-o contrair-se num esgar. Tinha adormecido no sofá outra vez e o seu corpo ressentia-se de duas noites mal dormidas. Enquanto ganhava coragem para se levantar, reconstituiu várias vezes o diálogo com Lone com receio de se esquecer, como habitualmente acontecia com os seus sonhos e deu por si questionando-se como se podia preparar para tal encontro. Sem conseguir encontrar uma resposta, sentiu-se um fantoche, o que despoletou um sentimento latente de revolta. Estou a ficar doido, pensou enquanto o diálogo com Lone ressoava no fundo da sua mente, completamente doido! Estou a viver uma fantasia e estou a deixar-me ir. Não! Não vou deixar isto afectar-me, se é a loucura a chegar, pelo menos vai ter luta! Vou acabar o meu livro e pôr esta história imbecil para trás das costas! Nunca mais quero sequer pensar no nome Stark Lone. Foi aqui que reparou que já estava a gritar bastante alto. Sem pensar mais, sentou-se à secretária e escreveu, escreveu como nunca, sentia que era a caneta que comandava a sua mão e não o contrário. Perdeu a noção do tempo enquanto os dias passavam e as páginas se amontoavam.

A casa era imponente, um verdadeiro palácio! As portas enormes, as mais altas já vira, abriram-se como se não tivessem peso e quando entrou e pisou o chão de mármore sentiu que o seu próprio corpo ficava leve, tão leve que parecia flutuar. Deu por si numa monstruosa biblioteca sem saber se tinha aberto a porta ou passado através dela. Uma sala comprida até perder de vista, ao longo de cujas paredes, estantes até ao tecto armazenavam mais livros do que alguma vez tinha visto juntos, pareciam estar ali todos os livros do mundo. Ao fundo da sala vislumbrava uma luz ténue da qual se foi aproximando. Ao passar pelas estantes a sua mente enchia-se de tantas vozes que era impossível compreender qualquer uma delas, à medida que avançava, uma das vozes começou a destacar-se até que conseguiu perceber a palavra Bem-vindo. Levantou o olhar e lá estava Lone, trazia uma expressão de genuíno contentamento. É hoje o grande dia! Exclamou. Afinal pouca gente tem a oportunidade de conhecer o seu criador. Um gesto de Lone encaminhou-o através das portas duplas que davam acesso a uma sala que, embora o fizesse sentir-se minúsculo, proporcionava uma inundante paz de espírito. Senta-te e descontrai, sugeriu Lone, ao que o escritor correspondeu, sentando-se numa das convidativas poltronas. Enquanto se afundava, sentiu que o seu corpo se dissipava, sentiu-se etéreo. Fechando os olhos por um momento deu por si sentado perante uma paisagem verdejante. Era certamente o sítio mais belo que jamais vira e transbordava calma e plenitude. Ouvia o gorgolejar de um ribeiro ao longe, e ao voltar o olhar na direcção do som reparou que não estava sozinho. Era ele, o seu autor! Embora, ao contrário do que estava à espera, o seu autor se apresentasse como uma pessoa bastante vulgar, sentia nele uma familiaridade tal, que era como se estivesse a olhar para si próprio; como se nunca o tendo visto antes, o tivesse conhecido toda a vida.
- Estou muito orgulhoso de ti, superaste todas as minhas expectativas! Chegaste mais longe do que qualquer outro antes.
- Obrigado, acho eu, fico muito satisfeito, mas e agora?
- Agora já cumpriste o teu propósito, o livro acabou.
- Vou portanto morrer, deixar de existir.
- Pelo contrário, tornar-te-ás imortal! Deixarás de existir como te conheces, mas tornar-te-ás um conceito, viverás para sempre!
- É um conceito complicado, existir para sempre quando na realidade não se existe?
- E o que é a realidade? Não estás aqui a falar comigo? Não tens a consciência, as memórias, o passado que te dei? A realidade é relativa, tu existes na realidade que criei para ti, tão real como qualquer outra. Mas nem mesmo a realidade é imutável, e a tua está prestes a mudar.

Não sabia como as palavras do seu autor faziam sentido para si, mas a verdade é que parecia que estava a ouvir verdades absolutas, logicamente correctas. Sabia que não podia fugir ao seu destino, mas a verdade é que nem sequer lhe ocorreu querer fazê-lo, sentia-se finalmente realizado pela primeira vez na sua existência. Todas as questões e dúvidas que tinha anteriormente desvaneciam-se e a sensação de dever cumprido preencheu-o.
Estou pronto! Exclamou decididamente. O autor esticou a mão, o escritor esticou a sua. Passaram ainda vários dias até a mulher-a-dias encontrar o corpo sem vida do escritor jazendo sobre a sua obra-prima.